MÁSCARA DA TRAIÇÃO E CINEMA POLICIAL

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Por Rafael de Luna

A década de 1950 foi um período de grandes mudanças no cinema brasileiro, com aumento no número de filmes produzidos, inovações nos modos de produção, elevação do nível técnico dos profissionais e dos equipamentos disponíveis e o investimento numa maior diversidade de gêneros. Acompanhando a recepção ao ciclo de filmes norte-americanos sobre crimes realizados no pós-guerra (incluindo aí o que se convencionou chamar de film noir) e a crescente conscientização política do meio cinematográfico brasileiro (com a grande influência do Partido Comunista Brasileiro – PCB), nota-se nesse período a presença mais acentuada de filmes nacionais sobre a marginalidade e criminalidade urbana.

Num cenário dominado por comédias, filmes musicais e carnavalescos, os “dramas sérios” estavam associados a maiores ambições artísticas, assim como a maiores dificuldades de produção. Entretanto, o desafio de realizar filmes policiais foi simultaneamente enfrentado no início da década de 1950 pela produtora independente carioca Cine-Produções Fenelon (Dominó Negro, de Moacry Fenelon, 1950), pelo estúdio das chanchadas, a Atlântida (Amei um bicheiro, de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, 1952) e pela ambiciosa companhia paulista Vera Cruz (Na senda do crime, de Famínio Bollini Cerri, 1954, e Veneno, de Gianni Pons, 1954). Se estes filmes estariam associados a uma antiga geração ou aos “aventureiros” italianos, a partir do final da década o gênero seria explorado também por expoentes de uma nova, ambiciosa e talentosa geração de cineastas brasileiros. Dois nomes podem ser destacados nessa trajetória: o de um cineasta carioca e de um baiano. No caso do primeiro, depois de aprender a fazer cinema trabalhando com e nas chanchadas, o jovem Roberto Farias partiu para o cinema “sério” com filmes sobre bandidos trágicos, Cidade Ameaçada (1960), e crimes que acabam mal, Assalto ao trem pagador (1962), sendo este último um dos primeiros filmes, junto com Os cafajestes (dir. Ruy Guerra, 1962), a merecerem a alcunha de Cinema Novo Brasileiro.

Enquanto isso, o principal expoente do chamado “Ciclo do Cinema Baiano”, até a emergência de Glauber Rocha, era um fã de filmes policiais chamado Roberto Pires. Seus primeiros longas-metragens, Redenção (1955-1959), A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962), traziam, em maior ou menor medida, elementos policialescos. Além dos atrativos do gênero, havia o interesse local pelo fait-divers e a popularidade de crimes e criminosos já conhecidos pelas manchetes de jornais, que estimulava a curiosidade das platéias e o interesse dos cineastas. Em 1966, por exemplo, David Neves apontou para a ausência desses elementos intertextuais como explicação para o fracasso comercial de Tocaia no Asfalto no Rio de Janeiro, em novembro de 1962, apesar do sucesso de bilheteria de Assalto ao trem pagador e de A Grande feira, respectivamente, no Rio e em Salvador. [1]

Os anos 1960 presenciaram, por sua vez, um grande número de produções policiais, podendo ser destacado o papel do ator, diretor e produtor Jece Valadão – o nome por trás do já citado Os cafajestes –, que exploraria o personagem do cafajeste ou marginal em inúmeros títulos ao longo dessa década. Nesse período, muitos baianos viriam para o Rio de Janeiro, verdadeira capital do cinema brasileiro, colaborando para a explosão do Cinema Novo entre 1963-1964, com a trilogia do sertão nordestino Vidas Secas, Deus e o Diabo na Terra do Sol e Os Fuzis, enquanto o tema da criminalidade urbana ficaria, em grande parte, restrita ao chamado “cinema comercial”. As manchetes de jornal continuariam servindo de fonte de inspiração para muitas dessas produções – como o extraordinário Massacre do Supermercado (dir. J. B. Tanko, 1968) ou para a primeira produção carioca de Roberto Pires, Crime no Sacopã (1963) – assim como para a explosão do cinema marginal, com O bandido da luz vermelha (dir. Rogério Sganzerla, 1968) e Matou a família e foi ao cinema (dir. Julio Bressane, 1968).

Talvez nada pareça mais diferente do cinema do lixo dos filmes preto-e-branco de Bressane e Sganzerla do que a produção colorida de Roberto Pires desse mesmo ano de 1968, estrelada por Tarcísio Meira, Glória Menezes e Cláudio Marzo, astros do cinema e da TV e que, pouco depois, chegariam ao topo do estrelato com a novela Irmãos Coragem (Rede Globo, 1970-1). Máscara da Traição foi produzida pela Mapa Filmes, criada por Zelito Viana, Glauber Rocha, Walter Lima Jr. e Paulo César Saraceni. Essa produtora de cineastas do Cinema Novo havia sido responsável por sucessos como Menino de engenho (dir. Walter Lima Jr., 1966) e Terra em Transe (dir. Glauber Rocha, 1967). Entretanto, já diante do dilema de enfrentar o mercado cinematográfico e viabilizar economicamente a produção de filmes, a Mapa investiu em filmes coloridos, ainda menos freqüentes na produção brasileira, e que tentavam conciliar crítica política e sofisticação narrativa com elementos de gêneros consagrados, fosse o western e o filme de cangaço, em O dragão da maldade contra o santo guerreiro (dir. Glauber Rocha, 1969), fosse a ficção científica em Brasil ano 2000 (dir. Walter Lima Jr., 1969).

A estratégia da Mapa Filmes também vinha sendo seguida por outra produtora formada por diretores ligados ao Cinema Novo, a Saga Filmes, de Leon Hirszman, Marcos Farias e Eduardo Coutinho, que investia em produções coloridas que transitavam da comédia musical jovem – Garota de Ipanema (dir. Leon Hirszman, 1967) – ao filme de cangaço, com a adaptação shakespeariana Faustão (dir. Eduardo Coutinho, 1970).

Esse seria o contexto de produção do “filme de assalto” de Roberto Pires. No melhor estilo do cinema noir, Máscara da Traição conta, em flashback, a história do contador César (Cláudio Marzo), diariamente humilhado pelo seu arrogante patrão Carlos (Tarcísio Meira) na tesouraria do estádio de futebol do Maracanã, onde trabalham. Frustrado em sua rotina no trabalho e em suas ambições artísticas (é um pintor e desenhista amador), César acaba se envolvendo com a rica e sofisticada Cristina (Glória Menezes), esposa de seu chefe, e juntos elaboram o plano de um mirabolante assalto que incriminará Carlos e permitirá que ambos fujam com todo o dinheiro. Como em vários filmes noir – podemos lembrar de Os assassinos (The Killers, 1946) ou Baixeza (Criss cross, 1949), ambos dirigidos por Robert Siodmak e estrelados por Burt Lancaster –, o jovem ambicioso é seduzido por uma dama rica e fatal e acaba envolvido num crime que tem tudo para acabar mal. Aliás, a definição da estrutura clássica do “filme de assalto” contou com a colaboração de dois filmes que trazem claros traços do noir – o clima de pessimismo, obsessão, fatalismo envolvendo personagens sórdidos e corruptos –, que são O Segredo das Jóias (The asphalt jungle, dir. John Huston, 1950) e O grande golpe (The killing, dir. Stanley Kubrick, 1956), influências óbvias para Máscara da Traição.

O cinema brasileiro já tinha investido anteriormente em relatos de assaltos mirabolantes, como Assalto ao trem pagador, mas sobretudo Mulheres e milhões (dir. Jorge Ileli, 1961), claramente calcado no sucesso, por exemplo, de Rififi (Du Rififi chez les hommes, 1955), produção francesa dirigida pelo americano Jules Dassin – diretor de clássicos noir, como o amargo filme de prisão Brutalidade (Brute Force, 1947) e o policial-documentário A cidade nua (The naked city, 1948) –, que deixara os Estados Unidos devido à perseguição política durante a caça às bruxas do Macarthismo. Entretanto, o filme de assalto na década de 1960, na esteira de Onze homens e um segredo (Ocean’s Eleven, dir., Lewis Milestone, 1960) e das aventuras de James Bond, passara a ser marcado menos pelo fatalismo preto-e-branco do film noir e mais pelos efeitos especiais e ações mirabolantes, espetaculares e coloridas dos criminosos. Essa tendência já se revela em Máscara da traição, cujos créditos surgem em uma animação com grafismos reveladores dessa tendência pop – pensar nas séries de 007 e da Pantera Cor-de-Rosa –, visível também, por exemplo, no contemporâneo Roberto Carlos em ritmo de aventura (dir. Roberto Farias, 1968).

É na referência a esse tipo de cinema que está o traço mais interessante do filme de Roberto Pires, além de seu notório talento na decupagem e montagem das cenas, sendo, junto com seu xará Farias, o cineasta brasileiro dos anos 1960 que melhor dominava a dinâmica da linguagem clássica consagrada pelo cinema americano. O plano mirabolante traçado pela mulher e seu amante é dar um sonífero a Carlos para que César tome seu lugar e, como responsável pela renda das bilheterias do Maracanã, roube o dinheiro que iria do estádio para o cofre do banco. Como ele faria isso? Carlos não é um cientista, ladrão profissional ou agente secreto, mas um burocrata – e dublê de artista – sem nenhuma ferramenta especial ou apetrecho fantástico. Mas é assim que, como um escultor, ele molda uma máscara de borracha com o formato do rosto de Carlos. Como um pintor, ele pinta a máscara para que ela se assemelhe ao marido traído. Como um ator, ele aprende a andar e falar como seu antigo chefe. Sem acesso a tecnologias sofisticadas, as únicas armas de César são o talento e a obsessão. Seu ódio contra o marido da mulher que ele deseja e dono do poder e riqueza que ele ambiciona, é justamente o que move seu esforço para imitá-lo, para conseguir, literalmente, transformar-se nele.

A óbvia inverosimilhança do plano de César é superada com grande astúcia não apenas pelo personagem, como pelo diretor (e talentoso montador) Roberto Pires, através de truques simples, mas eficazes para, por exemplo, mostrar na mesma imagem Tarcísio Meira contracenando com ele mesmo – na verdade, Carlos frente a frente com César transformado em Carlos. Os cortes precisos nas cenas em que o personagem de Cláudio Marzo veste sua máscara e assume os traços de Tarcísio Meira mostram a engenhosidade do filme que antecipou, com muita criatividade e muito menos recursos, truques repetidos décadas mais tarde por John Woo em A outra face (Face/off, 1997) e Missão Impossível 2 (Mission Impossible II, 2000).

Em Máscara da traição, para alcançar seu objetivo, o pobre artista frustrado brasileiro (e ladrão iniciante) César não tem outros meios além de livros estrangeiros sobre maquiagem que ele compra numa livraria. Entretanto, através de sua dedicação e talento, ele, no final das contas, atinge plenamente seu objetivo, conseguindo enganar a todos – tanto os funcionários do banco quanto os guardas que conduzem o carro-forte – de que é Carlos quem está na frente deles. Nesse sentido, o protagonista do filme sugere claramente ligações com a posição do próprio Roberto Pires no contexto do cinema brasileiro dos anos 1960. Sob a influência e prestígio dos cinemas novos europeus, asiáticos e latino-americanos, era recorrente a diferenciação entre os “autores” – diretores que exprimiam traços pessoais em seus filmes únicos e originais, verdadeiras obras de arte ou de vanguarda – e os “artesões”, que podiam até dominar a “carpintaria” do cinema clássico, mas não iam além de filmes até “engenhosos”, mas geralmente alinhados ao cinema de gêneros que resultava em produtos sempre iguais.[2] Não à toa, diretores de bem-sucedidos filmes policiais como Roberto Farias e Roberto Pires podiam ser considerados os melhores “artesões” do cinema brasileiro, mas, na visão de grande parte da crítica, não se equiparavam obviamente a artistas como Glauber Rocha ou Nelson Pereira dos Santos.

O primeiro encontro à sós entre César e Cristina ocorre numa galeria de arte, onde o primeiro tem a oportunidade de declarar sua aversão à arte moderna e a câmera faz um movimento panorâmico pelas pinturas abstratas que mereceram seu desprezo (“minha visão estética é diferente disso aí”, diz). Pintor frustrado, mas capaz de desenhar retratos realistas (como um que ele faz de Carlos para ajudar na confecção da máscara) e até caricaturas críticas (o mesmo retrato do patrão, mas dotado de chifres como um demônio), a arte que César aprecia e faz bem não é o simples realismo, mas é a arte do ilusionismo. O assalto planejado por Cristina e executado por César não somente é a chance de roubar o dinheiro e a esposa do chefe, como provar para o homem que o menosprezava sua verdadeira capacidade intelectual e artística. A máscara que o permite se transformar na pessoa que mais odeia é chamada por ele próprio de sua “obra-prima”.[3]

De forma semelhante, o cinema de Roberto Pires se distinguiria das obras do “cinema moderno brasileiro”, grosso modo, por pautar-se, seguindo as regras da linguagem clássica, no ilusionismo do cinema. Não é o cinema questionador de um realismo considerado burguês e hollywoodiano, que busca descontruir a linguagem clássica narrativa, mas o cinema que seduz pela ilusão, pelo artifício, pela simulação. Mas não é também o cinema do espetáculo vazio de efeitos especiais tecnológicos. Trata-se da ilusão do mágico que conhece os truques velhos, mas eficazes, daquele que não tem à sua disposição milhões de dólares, apenas o talento, a habilidade e a força de vontade. Um cinema brasileiro que não tenta ser igual ao cinema americano, mas que deseja, com parcos recursos, alcançar seu objetivo de proporcionar magia e ilusão – meta de um cinema cuja origem estaria, aliás, não em D. W. Griffith, mas no francês George Meliés.

Por outro lado, esse desejo do filme por um cinema da ilusão – encarnado, sobretudo, por Hollywood – é matizado no próprio sentimento de César por Carlos, cujo ódio (ou inveja, também pode-se pensar) é o que move seu desejo por se tornar igual a ele. Não à toa, há um inevitável cinismo noir nesse projeto, aproximando ainda mais Máscara da traição de O grande golpe. No filme de Kubrick, os erros trágicos que se sucedem ao meticuloso assalto de um hipódromo se encerram num aeroporto, quando a mala com todo o dinheiro se abre por acidente em plena pista de vôo e as notas – e os improváveis sonhos de riqueza do ladrão – literalmente voam e desaparecem no ar. No filme de Roberto Pires, revela-se, ao final, a trama sinistra que César, o artista ingênuo – e não “gênio”, como pensou –, se meteu. Ele conseguiu iludir a todos, mas desde o início era ele o principal iludido. Se a vã esperança de aliança da intelectualidade com a burguesia para a revolução já havia sido dissecada em Terra em transe, apoiando-se na tradição do gênero mais cínico do cinema americano Máscara da traição demonstra seu anti-elitismo enveredando pelo recorrente destino final de personagens masculinos proletários e tolos explorados e traídos por personagens ricos, poderosos, e, quase sempre, femininos – a principal lembrança aqui seria Dama de Shanghai (dir. Orson Welles, 1947).

Como em O grande golpe, o final do filme brasileiro ocorre no embarque para um vôo no Aeroporto Santos Dummont, em cena que, por outro lado, se assemelha à fuga final de Serginho com o ladrão boliviano de Toda nudez será castigada (dir. Arnaldo Jabor, 1973), e encerra no filme de Roberto Pires com um claro cinismo tão noir quanto nelson-rodrigueano, dramaturgo que, não por acaso, faz uma rápida aparição no próprio Máscara da traição.

Rafael de Luna Freire é professor e pesquisador na área de Preservação Audiovisual e História do Cinema Brasileiro. É doutorando no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, diretor da Associação Cultural Tela Brasilis (www.telabrasilis.org.br) e autor do blog www.preservacaoaudiovisual.blogspot.com

NOTAS


[1] NEVES, David. Cinema novo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1966, p. 18-9.

[2]Conferir, por exemplo, o artigo “Autores e Artesões”, de Paulo Emílio Sales Gomes, publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 14 de abril de 1961. Paulo Emílio até reconhece a arbitrariedade e simplismo dessa divisão, mas acata essa diferenciação pelas vantagens que apresenta, exemplificando essa distinção com os nomes de Carlos Coimbra e Trigueirinho Neto (In: GOMES, Paulo Emilio Sales. Crítica de cinema no Suplemento Literário, volume 2. São Paulo: Paz e Terra/Embrafilme, 1981).

[3]A analogia entre César e Roberto Pires, pintor e cineasta, é reforçada pelo segundo encontro entre ele e Cristina ocorrer no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), local amplamente conhecido nos anos 1960 por sua Cinemateca, o principal reduto da arte cinematográfica na cidade.

BIBLIOGRAFIA

NEVES, David. Cinema novo no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1966.

GOMES, Paulo Emilio Sales. Crítica de cinema no Suplemento Literário, volume 2. São Paulo: Paz e Terra/Embrafilme, 1981.

 

 

 

2 comentários sobre “MÁSCARA DA TRAIÇÃO E CINEMA POLICIAL

  1. Ron Wolpa

    Como colecionador apaixonado por cinema possuo todos os títulos do cinema noir americano mencionados aqui e muitos outros.
    Felizmente consegui baixar os tres principais filmes do Roberto Pires (Redenção, A grande feira e Tocaia no Asfalto). Acredito que o cineasta bahiano fez um trabalho fantástico , filmando com dificuldades e limitações , manufaturando lentes , simplesmente incrível ! Hoje finalmente tive acesso a uma cópia de baixa resolução , mas fico assim mesmo feliz por poder rever Máscara da Traição.
    Infelizmente é dificil conseguir certas raridades do cinema nacional mencionadas no texto.

    1. guilhermesarmiento Autor do post

      Alguns filmes do Roberto Pires foram restaurados e lançados recentemente, porém a Máscara da Traição – um filme singular dentro da cinematografia brasileira – não consta nessa lista.