Por Guilherme Maia
Ponto de convergência de forças que vinham se constituindo desde os últimos anos do século XIX, a Semana de Arte Moderna de 1922 é um marco emblemático de profundas transformações no modo de fazer artístico no Brasil. Com epicentro na literatura, as ideias sobre arte e sociedade defendidas pelos modernos de 22 provocaram um sismo que reverberou em todos os campos da produção artística brasileira. Liderada pelos Andrade – Mário e Oswald – a geração iconoclasta de escritores e artistas plásticos que conceberam e organizaram a Semana desestruturou os alicerces do castelo romântico e iniciou a pavimentação do caminho que nos trouxe à pós-modernidade no campo da arte.
A contribuição das vanguardas de 22 à arte brasileira pode ser compreendida, segundo Hilda Lontra[1], em função dos dois parâmetros maiores do ideário do Modernismo: a reformulação da linguagem artística e o nacionalismo crítico. Em outras palavras, ruptura com modelos de expressão artística pré-estabelecidos e a busca por uma arte “nacional” que refletisse, na tensão dialética entre o particular e o universal, o confronto entre o atraso e o progresso no Brasil do princípio do século XX. Neste artigo, são discutidas as influências desses parâmetros do ideário modernista na música do cinema brasileiro moderno.
Antes, porém, de falar sobre a música no cinema, é importante tecer algumas considerações acerca da ideia de modernidade no âmbito exclusivo da música. No livro A música moderna[2], Paul Griffiths identifica na melodia para flauta que abre o Prélude a l’Après-Midi d’un Faune, de Claude Debussy, o sinal que anuncia a Era Moderna. Já nos primeiros quatro compassos, Debussy faz um movimento cromático ascendente e descendente no âmbito de um trítono,[3] sem dar ao ouvinte nenhuma pista concreta sobre a tonalidade central da música. Debussy faz soar os primeiros sinais do que viria a ser uma das características definidoras da música moderna: sua libertação do sistema de tonalidades maior-menor, base de quase toda a música ocidental desde o século XVIII. É no “bater de asas da borboleta” do Prélude que Griffiths localiza a gênese do movimento caótico que levou as estruturas formais, harmônicas, melódicas, rítmicas e timbrísticas do Romantismo a explodirem, fragmentando-se nas múltiplas formas musicais e técnicas composicionais modernas.
No âmbito da música de concerto moderna brasileira, é em torno das ideias do nacionalismo que, segundo José Maria Neves, se desenvolveram e se afirmaram diversos grupos de compositores, “alguns na linha da aceitação total e cega das normas do nacionalismo e dos regionalismos, outros, ao contrário, partindo de questionamento contínuo destas normas e da pregação de renovação técnica e estética a todo custo” [4].
O elo inicial da corrente mais ligada ao nacionalismo pode ser localizado no século XIX em Carlos Gomes e suas óperas, como Il guarany e Lo schiavo, com temática nacional, mas estrutura narrativa e música derivada de modelos estrangeiros. De Carlos Gomes até os primeiros anos do século XX, compositores como Brasílio Itiberê, Leopoldo Miguez, Henrique Oswald, Alexandre Levy, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Glauco Velásquez e Francisco Mignone – em ordem cronológica aproximada, encadearam um processo gradativo de abandono das influências estrangeiras clássico-românticas e buscaram uma linguagem artística musical brasileira, por meio da incorporação de elementos rítmicos, melódicos, formais e timbrísticos da música popular rural e urbana. Na segunda década do século XX, entra em cena o compositor que viria a ser a maior figura da música de concerto nacional até os dias de hoje. Síntese de uma formação heterodoxa profundamente enraizada na música popular urbana com um espírito artístico inquieto criativo e abundante, Heitor Villa-Lobos inaugura bravamente a era moderna na música brasileira.
Segundo o musicólogo Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, o balé Amazonas anuncia uma nova postura estética. É música essencialmente nacionalista, mas este nacionalismo já nada tem a ver com as tintas românticas das músicas de Levy, Nepomuceno e Velasquez. Assumindo plenamente um “primitivismo” violento, é através de uma forma de expressão rude e direta que se abre uma “nova fase na história da música brasileira: posse de legítima expressão nacional total e clara.”[5]
“É toda uma orquestra que avança arrastando-se pesada, quebrando galhos, derrubando árvores e derrubando tonalidades e tratados de composição.”[6] É assim que Mário de Andrade se referiu a Amazonas, após assistir à primeira execução do balé em São Paulo. Respondendo plenamente aos anseios do espírito modernista do primeiro quarto de século passado, a música de Villa-Lobos ocupou uma posição importante na cadeia de interinfluência que unia poetas, escritores, pintores e escultores em defesa de uma total revisão de valores e da criação de uma arte ao mesmo tempo moderna e brasileira. Não poderia ser outro o compositor convidado pelos modernos de São Paulo para participar dos festivais da Semana de 22.
Sucessores de Villa-Lobos, os compositores Camargo Guarnieri e Guerra-Peixe, fortemente influenciados pelas ideias de Mário de Andrade, deram continuidade ao modernismo-nacionalista. É importante observar que tanto Villa-Lobos quanto Guarnieri e Guerra-Peixe buscaram uma linguagem moderna, mas que, ao mesmo tempo, mantivesse abertos os canais de comunicação com o público. Assim, embora tenham recorrido a técnicas pós-românticas atonais, politonais ou dodecafônicas, jamais abandonaram completamente o tonalismo e a melodia. Para esses compositores, o povo brasileiro deveria estar no início e no fim da cadeia. É do povo que vem a matéria prima, é ele o motivo da inspiração, é a ele que se destina o produto terminado. Baseados, portanto, na firme convicção da funcionalidade da obra de arte, os modernistas nacionalistas mantiveram um vínculo com a tradição tonal e se colocaram em oposição às vanguardas que levavam às últimas instâncias a experimentação estética.
O veio da música de concerto brasileira, que dá maior ênfase à constante inovação e ao diálogo permanente com as novas pesquisas musicais internacionais, tem como ponto de partida a chegada ao Brasil, em 1937, do flautista, regente e compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter. Com sólida base na tradição musical alemã, Koellreutter buscou sempre aprofundar-se em novas técnicas composicionais e trouxe ao Brasil a prática sistemática das descobertas formais e harmônicas do dodecafonismo de Arnold Schoenberg. Professor, pensador e agitador cultural obstinado, Koellreutter, um formalista convicto e comprometido antes de tudo com a liberdade de expressão, exerceu enorme influência na música brasileira moderna.
Nos anos 1960 e 1970, principalmente, o trabalho diligente de Koellreutter, estruturando cursos livres e universitários por quase três décadas, frutificou no que pode ser considerado o grande momento da música de concerto moderna no Brasil. Concursos, festivais e bienais realizados em várias capitais do país deram visibilidade a uma intensa e criativa produção artística, onde serialismo, aleatoriedade, ruídos, música eletrônica, minimalismo, música cênica, happenings, colagens e superposições de técnicas composicionais davam nova feição à modernidade musical. Nos anos 1960, o modernismo-nacionalista de Villa-Lobos já é tradição. A nova música moderna continua sendo brasileira e isso, sem dúvida, graças às aventuras nacionalistas, mas nas décadas de 1960 e de 1970 tem uma fisionomia multifacetada e marcadamente distinta do caráter sonoro da obra de Villa-Lobos.
Cinema Novo: nacionalismo e ruptura com o modelo clássico de música para cinema
A música de Villa-Lobos é um traço comum importante entre a Semana de Arte Moderna de 22 e o Cinema Novo. Único compositor brasileiro a participar dos festivais dos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo[7], Villa-Lobos foi também o compositor de música de concerto cuja obra mais foi utilizada nas trilhas sonoras dos filmes do movimento cinemanovista, marcando presença, como trilha adaptada, em filmes como Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), O desafio (Paulo César Saraceni, 1965), Terra em transe (Glauber Rocha, 1967), A grande cidade (Cacá Diegues, 1966), Os herdeiros (Cacá Diegues, 1970) e Lúcia McCartney (Davi Neves, 1971).
A julgar pela presença marcante de Villa-Lobos nas trilhas sonoras do Cinema Novo, ao menos no que diz respeito à música, a questão do “nacional” teve mais importância do que a inovação estética e não se pode dizer que tenha havido uma relação muito próxima entre as vanguardas cinematográfica e musical dos anos 1960, como já foi observado por Lécio Augusto Ramos:
“Deve-se ressaltar que a vanguarda musical que eclodiu nos anos 60, e que revelou compositores como Ricardo Tacuchian, Willy Correa de Oliveira, Edino Krieger, Marlos Nobre, Esther Scliar, Rogério Duprat e outros, foi de certa forma ignorada pelo Cinema Novo. Foram registrados apenas dois casos de aproximação entre os dois movimentos: Noite vazia [Walter Hugo Khoury, 1964], com música de Duprat e A derrota, de 1966, de Mário Fiorani, com música de Esther Scliar. Não é difícil entender o motivo dessa incompatibilidade, já que o Cinema Novo havia assumido um compromisso com a música popular, na esperança de atingir as massas”.[8]
Embora Lécio Ramos deixe de citar alguns filmes onde a música das chamadas vanguardas foi também utilizada[9], uma análise das fichas técnicas dos filmes do movimento confirma o citado compromisso do Cinema Novo com a música popular. É no âmbito cinemanovista que a autoria da música dos filmes brasileiros vai aos poucos deixando de ser assinada pelos maestros-compositores descendentes de italianos, como Radamés Gnatalli, Lyrio Panicalli e Enrico Simonetti, e passando a ser creditada a compositores com atividade profissional centrada no campo da canção popular.
A relação do Cinema Novo com a canção popular pode ser compreendida como um vínculo com a tradição do nosso cinema comercial, já que na produção cinematográfica brasileira dos anos 1930, 1940 e 1950 eram frequentes os chamados “números musicais”. É curioso observar, ainda, que a Cinédia, a Atlântida e a Vera Cruz também utilizaram a estratégia de chegar ao público por meio da canção popular. Ao menos em um aspecto, entretanto, a música popular dos filmes do Cinema Novo diferencia-se da tradição comercial do nosso cinema. As canções dos musicarnavalescos, das chanchadas e dos “clássicos” da Vera Cruz eram os hits da época, ou seja, os grandes sucessos radiofônicos carnavalescos, românticos e nacionais ufanistas do período, objetos de consumo de massa. Já as canções populares das trilhas sonoras cinemanovistas, a partir das compostas por Zé Keti para os filmes Rio 40 graus e Rio Zona Norte, passam a ser ou a “música engajada”, que propunha reflexões sobre política e sociedade, ou a já consolidada Bossa Nova, “biscoito fino” da indústria fonográfica produzido e consumido por uma classe média de formação universitária e mais “culta”. Assim, compositores como Carlos Lira, Sérgio Ricardo, Tom Jobim, Edu Lobo, e Geraldo Vandré, entre outros, passam a ocupar o lugar antes dominado por nomes como Lamartine Babo, João de Barro, Noel Rosa, Assis Valente, Ary Barroso, Dorival Caymmi, Haroldo Lobo, Donga, Jararaca e Ratinho, Ataulfo Alves, Luiz Gonzaga, Mário Lago e Adelino Moreira.
Outro aspecto importante da música no Cinema Novo é o abandono gradual do modelo clássico de música para cinema. Segundo Cláudia Gorbman (1987), na virada dos anos 1930/1940, um modo de fazer cinema e música para cinema se estabeleceu em Hollywood não como um paradigma monolítico de regras invioláveis, mas como um discurso narrativo nítido, resultante da conjuntura de fatores artísticos, econômicos, ideológicos e técnicos. No livro Unheard melodies[10], Gorbman faz uma análise abrangente das funções da música no cinema clássico utilizando, como paradigma, a música para cinema de Max Steiner (1888-1971)[11]. Segundo Gorbman, esse modo de fazer música para cinema, onde os mesmos princípios que determinam a montagem clássica – lógica dramática e/ou psicológica – regem a composição, a mixagem e a edição da música, é dominante desde a gênese do cinema sonoro e pode ser flagrado no cinema “comercial” contemporâneo de vários países. De modo bastante sintético, o seguinte quadro resume as funções e os princípios segundo os quais a música opera no contexto do cinema clássico:
I – “Inaudibilidade” | A música não deve percebida pelo espectador de forma consciente e está subordinada aos veículos primários na narrativa (diálogos e imagens). |
II – Significante de emoção | A música explicita sentimentos e enfatiza emoções específicas sugeridas na narrativa. |
III – Função narrativa | a) Função narrativa referencial: a música fornece dicas referenciais e narrativas, indicando pontos de vista, demarcações formais e estabelecendo ambientes e personagens.b) Função narrativa conotativa: a música “interpreta” e “ilustra” eventos narrativos. |
IV – Continuidade | A música provê o filme de continuidade formal e rítmica (entre os planos, em transições entre cenas, e elipses temporais). |
V – Unidade | Por meio de repetição e de variação do material temático, a música contribui para a unidade formal da narrativa. |
VI – Flexibilidade | A música pode violar qualquer dos princípios acima, se essa “violação” estiver a serviço de um dos princípios anteriores. |
É importante ressaltar que o material composicional utilizado por Max Steiner era baseado no idioma orquestral romântico do século XIX de Richard Wagner e dos poemas sinfônicos de Franz Liszt e Richard Strauss[12]. Para Gorbman, o idioma romântico era – e ainda é – tonal e familiar, com valores conotativos compreensíveis para uma audiência de massa. Segundo Gorbman, o idioma musical deve ser profundamente familiar e suas conotações devem nos remeter a um conhecimento virtualmente reflexivo, para que a música possa operar correta e invisivelmente no discurso cinematográfico clássico.
Antes do Cinema Novo, a música no cinema brasileiro seguia, de uma maneira geral, os cânones clássicos. De Ganga bruta (Cinédia, Humberto Mauro, 1933), marco da transição do cinema mudo para o sonoro, a Os apavorados (Atlântida, Ismar Porto, 1962), último longa-metragem produzido pela Atlântida, a trilha sonora do cinema brasileiro é marcada pela ampla presença de canções no plano diegético e por música extradiegética de caráter clássico-romântico. Uma análise das fichas técnicas dos filmes produzidos pelas três companhias cinematográficas que mais se destacaram na produção cinematográfica brasileira desse período revela que os “italianos” como Radamés e Alexandre Gnatalli, Lyrio Panicali, Leo Peracchi, Gabriel Migliori e Enrico Simonetti, herdeiros da tradição romântica e operística italiana, dominaram a cena nacional no campo da música extradiegética.
Ganga bruta, O ébrio, Carnaval Atlântida, Nem Sansão nem Dalila, Matar ou correr, O Homem do Sputnick, Caiçara, O cangaceiro, Floradas na serra e Os apavorados são obras que refletem a forte influência do modelo clássico de música para cinema sobre o filme de gênero dominante no Brasil nos anos 1930, 1940 e 1950. Nesses filmes, na grande maioria das cenas e seqüências, a música opera subordinada ao fluxo dramático. No material composicional empregado na música extradiegética predominam claramente estruturas clássico-românticas baseadas no princípio da melodia acompanhada e em técnicas semelhantes ao leitmotiv wagneriano. O respeito aos princípios da unidade (repetição e variação de material temático) e da continuidade (edição “invisível” e música operando em transições entre cenas e elipses) é um procedimento recorrente.
É justamente no âmbito do Cinema Novo que, aos poucos, o modelo “tradicional” de uso de música no filme brasileiro vai sendo desconstruído por meio de mudanças no material composicional e no modo de usar esse material. Como é de conhecimento geral, Glauber Rocha, o mais veemente porta-voz do ideário cinemanovista, defendia a ruptura com a tradição hollywoodiana e o alinhamento com as vanguardas cinematográficas européias dos anos 1950 e 1960. Cultura e política: o ideário do Cinema Novo propunha um enfoque realista em aspectos sócio-culturais até então evitados, tratados com humor “chanchadesco” ou “glamourizados” no cinema brasileiro – a fome, a pobreza, a miséria – e uma ação política transformadora cujo principal objetivo era a libertação econômica e cultural do Brasil em relação ao domínio imperialista americano. Ressaltando o poder de comunicação da mídia cinematográfica, Glauber Rocha afirma que “o cinema, sendo o mais poderoso instrumento de comunicação existente, é uma arma indispensável e fundamental na luta contra o imperialismo”[13]. Glauber defende um “cinema de guerrilha”[14] como a única forma de combater a ditadura estética e econômica do cinema imperialista ocidental”[15]
Ao romper com a estética e com o modo de produção do filme americano dominante e do cinema brasileiro de modelo industrial, o Cinema Novo rompe também com a música utilizada nesse contexto. Dentro do esquema industrial do filme de espetáculo e de entretenimento, a música devia operar contribuindo para o estabelecimento do vínculo catártico do espectador com a história. Já o Cinema Novo, buscava estabelecer com o público uma relação diferenciada que deveria ter como função primordial “alfabetizar, informar, educar e conscientizar as massas ignorantes e as classes médias alienadas.”[16]. Assim, as estratégias clássicas, que contribuíam para situar o espectador numa posição “passiva e comodista” [17], passam a ser evitadas.
Em Rio Zona norte e Rio 40 graus, filmes que podem ser considerados precursores do movimento, Nelson Pereira dos Santos ainda é, de certa forma, fiel à tradição, pois dá ao “clássico” Radamés Gnatalli a incumbência de escrever a música extradiegética. Nestes dois filmes, a música extradiegética segue o paradigma hollywoodiano, mas em Vidas secas o diretor rompe de maneira radical com o modelo clássico, optando por substituir a música de caráter romântico pelo ruído de um carro-de-boi. Visando construir uma narrativa fílmica realista, Nelson Pereira deve ter considerado que o não-realismo intrínseco a toda e qualquer música que esteja fora da diegesis operaria em disjunção com seus objetivos. Em Vidas secas, as únicas intervenções de música (no sentido pré-moderno, ou seja, baseada no sistema tonal ou modal e tendo como fonte sonora instrumentos musicais ou voz) são diegéticas e estão relacionadas a aspectos culturais do universo representado pelas imagens: duas passagens do filme mostram manifestações folclóricas de canto e dança. A incorporação do ruído, pela música concreta francesa, ao repertório de recursos composicionais é um dos sinais da modernidade na música de concerto ocidental. O ruído do carro de boi de Vidas secas, portanto, pode ser considerado como um marco referencial da chegada dos “tempos modernos” musicais ao nosso cinema. Entretanto, não se pode dizer que a ousadia de Nelson Pereira dos Santos tenha se tornado o paradigma de um modo de fazer, pois, como será visto a seguir, nas trilhas sonoras cinemanovistas a música de caráter “nacional”, e até mesmo tonal ou modal, como no caso das canções, ocupou bem mais espaço.
Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964) é um bom exemplo da ênfase modernista-nacionalista na música do Cinema Novo. A matéria musical empregada na trilha sonora do filme é composta basicamente de três elementos: no plano extradiegético, trechos de obras de Villa-Lobos e canções compostas por Sérgio Ricardo. No plano diegético, cânticos religiosos rurais.
Em termos funcionais, a música de Villa-Lobos é claramente empregada ainda sob a égide do modelo clássico, operando em paralelo com o fluxo dramático. Ritmos ativos e vigorosos acompanham as cenas de luta, enquanto melodias dramáticas operam como significante de emoção em vários momentos do filme. As toadas modais com forte acento nordestino de Sérgio Ricardo atuam na função narrativa referencial, colaborando para a representação do lugar onde a história se passa e fazendo um comentário crítico e ideológico das situações dramáticas através das palavras da letra. Os cânticos religiosos operam também na função narrativa referencial, contribuindo para dar contornos ao ambiente e aos personagens da trama.
Moderno, portanto, na música de Deus e o diabo na terra do sol, tem mais a ver com a marca profundamente brasileira e crítica que a tríade Villa-Lobos/Sérgio Ricardo/folclore imprime na trilha sonora do que com experimentação e ousadia estética. Em Deus e o diabo, a música é “bem comportada” e homogênea, ainda não apresentando sinais fortes de ruptura com a tradição clássica. Somente mais tarde, em filmes como Terra em transe e Macunaíma, e, principalmente no Cinema Marginal, dois elementos desestabilizadores entram em cena: a atitude antropofágica e a fragmentação do discurso musical. Ruídos, colagens, superposições de músicas diferentes, material musical intencionalmente heterogêneo, internacional e multi-referente, e edição descontínua com cortes abruptos e justaposições bruscas introduzem na música do cinema brasileiro moderno um novo modo de fazer.
Tupi? Not just Tupi. Eis a resposta artística possível de um povo “sem caráter”, como nos definiu Mário de Andrade. Ser “nacional” é ser um antropófago que devora com o mesmo apetite o arcaico e o moderno, o “erudito” e o “vulgar”, o luxo e o lixo, o particular e o universal. Sob a influência da famosa questão shakesperandradiana, trazida de novo à tona no final dos anos 1960 pelo Tropicalismo, a música do cinema moderno brasileiro atinge um dos pontos mais distantes que até hoje chegou do modelo clássico norte-americano. Em Terra em transe, Glauber Rocha sobrepõe, em um cluster heterogêneo, ruído de multidão, Villa-Lobos e batucada de samba. Em Macunaíma, Joaquim Pedro de Andrade monta um amálgama fragmentado e hiper explícito de hinos, marchinhas, fox, ié-ié-ié, samba-canção, xaxado, bolero e música de concerto. Villa-Lobos, Borodim e Johann Strauss se misturam, na trilha sonora, a Jorge Ben, Francisco Alves, Roberto Carlos, Dalva de Oliveira, Luiz Gonzaga e Jards Macalé. Colagens musicais multi-referentes, polissêmicas e fragmentadas, as trilhas sonoras desses filmes mostram claramente uma atitude de ruptura total com o modelo dominante de música para cinema.
O bandido antropofágico.
Procedimentos semelhantes aos adotados em Terra em transe e Macunaíma podem ser também observados em um dos filmes mais frequentemente citados como emblema do Cinema Marginal: O Bandido da luz vermelha. A música de O Bandido da luz vermelha é uma antropófoga faminta e voraz que engole, sem mastigar, o cardápio variado do bandejão da industria cultural. Sganzerla, que assina a música do filme, despreza completamente os princípios clássicos da unidade, da continuidade e da inaudibilidade ao recortar, fundir e justapor muitos trechos curtos de obras bem populares do repertório sinfônico clássico-romântico, percussão de samba e de ritos afro-brasileiros, ié-ié-ié, rock, chorinho, baião, bolero, chá-chá-chá, guarânia, samba e samba-canção O resultado dessa mistura prolixa é um discurso musical exagerado e “gago”, que nunca se estabelece de fato, e dificulta, ou mesmo impossibilita qualquer fruição por parte do espectador.
É importante ainda observar que os “bispos sardinhas” deglutidos antropofagicamente por Sganzerla são sempre espécies de ícones de estilo, facilmente identificáveis pelo espectador. A Quinta Sinfonia (Beethoven), trechos das óperas O barbeiro de Sevilha e Il guarany (Carlos Gomes), as canções Castigo (Dolores Duran), Rock around the clock (J. Deknight & M. Freedman), Asa branca (L. Gonzaga e H. Teixeira), Sabor a mi (Alvaro Carillo), Molambo (Augusto Mesquita) e Malagueña salerosa (P. Galindo, E. Ramirez & E. Lecuona) são alguns dos hits presentes na trilha sonora. Se em muitos momentos do filme a relação imagem-música produz significados não explícitos, em outros, os significados são desmesuradamente óbvios e soam como um metaclichê, o que acontece, por exemplo, com o emprego da Quinta Sinfonia de Beethoven operando em passagens dramáticas.
Um outro aspecto interessante da música do Cinema Marginal emerge de um exame das fichas técnicas dos filmes[18]. A julgar pelo número de filmes sem créditos musicais, com créditos relativos à seleção musical, ou com música assinada pelos próprios diretores – quarenta e seis títulos, ou seja, quase 70% da amostra investigada – a tendência ao uso de trilhas adaptadas, que é também uma das características do Cinema Novo, tem continuidade no Cinema Marginal.[19] Alguns autores, como Lécio Ramos, atribuem essa tendência ao uso de trilhas adaptadas à falta de recursos financeiros e técnicos, que levavam os diretores a “providenciar eles mesmos a trilha sonora de seus filmes”[20]. Já para o compositor Jorge Antunes, não foram limitações de ordem financeira ou tecnológica que levaram os cineastas do Cinema Novo a optar por não arregimentar profissionais da música para seus filmes. Para ele, subjacente a essa ideia poderiam estar “as pretensões escondidas nas teorizações da política do cinema de autor”:
“O propalado ‘despojamento’ do Cinema Novo e do Cinema Marginal, por esta carência de recursos técnicos, psicológicos e expressivos, fez com que se aproximasse de um aparente cinema barato, que dispensava a contratação de compositores e músicos profissionais. Se essa hipótese fosse rebatida com violência, eu seria obrigado a acreditar em uma pretensiosa posição do cineasta no sentido de ser um ‘faz-tudo’, cuidando ele também da organização pretensamente musical da parte sonora”.[21]
Não cabe aqui julgar se é Lécio Ramos ou Jorge Antunes quem tem razão. Entretanto, desconsiderando o tom agressivo do comentário de Antunes, é no mínimo instigante imaginar os caminhos que seriam percorridos pela música do cinema brasileiro se houvesse ocorrido uma troca maior entre as vanguardas musicais e cinematográficas no Brasil. Assim como Eisenstein e Prokofief trabalharam em conjunto na elaboração de uma intersemiose complexa entre a música e a narrativa cinematográfica no cinema soviético do princípio do século XX[22], a parceria sistemática entre diretores e compositores de concerto poderia conduzir nosso cinema a novos caminhos muito promissores. Embora seja impossível deixar de reconhecer que a música popular teve e tem uma enorme importância no cinema brasileiro, é importante levar em consideração que a canção popular tem letra e, muitas vezes, é a linguagem poética das palavras, e não propriamente o discurso musical, que está em interação direta com a narrativa. Além disso, a música popular é, em geral, muito mais presa a clichês tonais e formatos pré-estabelecidos do que a música de concerto moderna e contemporânea que, durante o século XX, conquistou liberdades técnicas e estéticas numa velocidade sem precedentes na história da música.
A música e o cinema, como meios de expressão independentes, têm cada qual seus segredos que somente os “iniciados” conhecem. Talvez, uma boa trilha sonora seja justamente o resultado de uma diligente, generosa e confiante “troca de segredos” entre dois especialistas em linguagens diferentes que elaboram, em conjunto, uma terceira: uma cadeia audiovisual de significados, cujo sucesso como estrutura depende exatamente da qualidade da sinergia entre a música, os sons e os outros elementos da linguagem cinematográfica, ou seja, entre o áudio e o visual. Nacional ou não, radical ou não, uma música para cinema construída a partir de uma parceria inteligente e livre sempre será “moderna”.
Guilherme Maia é compositor, produtor musical, professor do curso de Cinema e Audiovisual do CAHL/UFRB e do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA. Mestre em Musicologia (UNIRIO) e doutor em Comunicação (Facom/UFBA).
NOTAS
[1] Lontra, H. “Tropicalismo: a explosão e seus estilhaços”. In: Helena, S. (org.). A forma da festa. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000.
[2] Griffiths, P. A música moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
[3] Intervalo crítico do sistema tonal pela qualidade da sua tensão harmônica. Era denominado diabolus in musica pelos teóricos medievais, ou seja, a representação do demoníaco através das notas musicais, e chegou a ser proibido pelo clero para uso no canto gregoriano. Segundo Griffiths, o trítono pode ser considerado o intervalo por meio do qual se deu a desconstrução do sistema tonal na música moderna.
[4] Neves, J. M. Música brasileira contemporânea. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1981, p. 13.
[5] Azevedo, L. H. C. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1956, p. 249.
[6] Andrade, M. Música doce música. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1942. (p. 158)
[7] O programa musical da Semana de 22, transcrito e analisado no livro O Coro dos Contrários, de José Miguel Wisnick, foi amplamente dominado pelas duas sonatas, dois trios, dois quartetos, um octeto (nas Danças Africanas), seis peças para canto e piano e sete peças para piano-solo escritas por Villa-Lobos entre 1914 e 1921. Nos festivais da Semana de 22 foram executadas, ainda, algumas poucas obras de compositores franceses, entre os quais se destacam Claude Debussy e Eric Satie.
[8] Ramos, L. A. “Trilha sonora” In: Ramos, F. & Miranda, L. F. (org.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Editora SENAC, 2000, p. 549.
[9] Capitu (Paulo César Saraceni, 1968) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969), com música de Marlos Nobre, Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr., 1969) e Anjo da noite (Walter Hugo Khoury, 1974), com música de Rogério Duprat, Como era gostoso o meu francês (Nélson Pereira dos Santos, 1972), Pindorama (Arnaldo Jabor, 1972) e Rainha Diaba (Antônio Carlos Fontoura, 1974), com música de Guilherme Vaz.
[10] Gorbman, C. Unheard Melodies. London: BFI Publishing, 1987.
[11] A autora justifica essa escolha pelo volume da obra desse compositor e pela influência que exerceu em Hollywood. Nascido na Áustria, com sólida formação musical dentro das tradições da ópera e da música sinfônica, Steiner participou, como compositor e diretor musical, de mais de trezentas produções cinematográficas. Suas composições para filmes como Gone With The Wind (E o vento levou, Victor Fleming, 1939), Mildred Pierce (Alma em suplício, Michael Kurtis, 1945) e King Kong (King Kong, Merian C. Cooper, 1933) formam um corpo estilístico homogêneo que contribuiu, de maneira decisiva, para o estabelecimento das estratégias de uso de música no cinema clássico.
[12] Segundo P. Griffith, a capacidade da música de “narrar” ações ou emoções encontra sua expressão maior nos poemas sinfônicos de Richard Strauss (1864-1949). Para o autor, Strauss elevou o gênero a extravagantes culminâncias e não teve rival em sua capacidade de traduzir musicalmente imagens narrativas, a tal ponto que, com algum conhecimento do tema, seus poemas sinfônicos podem ser “decodificados” como estórias à medida que os ouvimos. Não poderia haver exemplo mais notável do nível que a música atingira no século XIX como meio narrativo de emoções ou ações, nem seria possível ir mais longe nesta direção. (Griffiths, 1987, p.13).
[13] Rocha, G., Revolução do Cinema Novo, Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1981, p. 71.
[14] Grifo do autor.
[15] Ibid., p. 77.
[16] Ibid., p. 67.
[17] Neves, D. Cinema Novo no Brasil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1966, p.17.
[18] Sessenta e nove títulos reunidos nas filmografias do livro Cinema Marginal, A representação em seu limite (1987), de Fernão Ramos, e do catálogo da mostra Cinema Marginal e suas Fronteiras, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) na cidade de São Paulo.
[19] Outra permanência importante, não só em comparação com o ciclo cinemanovista, mas também com o cinema brasileiro de períodos anteriores, é o vínculo maior com a música popular do que com a música de concerto. Mesmo entre os compositores de música de concerto citados, encontramos três com ampla atuação na área da música popular: Rogério Duprat, Damiano Cozzela e Júlio Medaglia. Estes compositores, que ocuparam posição central na chamada vanguarda musical dos anos 1960, desempenharam também papel importante no Tropicalismo, escrevendo arranjos para alguns dos discos mais emblemáticos do movimento. Cozzela e Medaglia participaram do disco Caetano Veloso, de 1967, e Duprat assinou os arranjos dos discos Gilberto Gil (1968) e Tropicália – Panis Et Circenses (1968), com Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Nara Leão e Os Mutantes, entre outros.
[20] Ramos, F. & Miranda, L. F., ob. cit., p. 549.
[21] Ibid.
[22] Como demonstra Eisenstein nos livros O sentido do filme e A forma do filme.
Olá,
Muito bom, gostei bastante do artigo! Muito interessante!
Até salvei aqui nos meus favoritos!
Obrigado,
att,
Jussara