Por Fernão Pessoa Ramos
Estudos de Cinema é ainda uma área acadêmica em busca de reconhecimento. No caso brasileiro, a área de conhecimento “Cinema”, para órgãos de fomento à pesquisa como o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, situa-se no campo das “Artes”, embora historicamente tenha se vinculado a Departamentos e Sociedades Científicas da área de “Comunicação”. Temos hoje cursos de Cinema, ou de Cinema e Audiovisual, nas principais universidades do país, com uma nítida expansão nos últimos dez anos. Na universidade pública, os cursos pioneiros na área são os da Universidade de Brasília – UNB e o da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP, seguidos pela Universidade Federal Fluminense – UFF. No ensino particular, a Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP (São Paulo) mantém, desde a década de 1970, curso com foco em cinema. Nos últimos dez anos, graduações em cinema têm proliferado pelo Brasil. Universidades como a Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Pontífica Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC/RJ, a Universidade Vale do Rio dos Sinos (Rio Grande do Sul) – UNISINOS, a Pontífica Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC/RGS, a Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, a Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, a Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB, a Universidade Federal do Ceará – UFC, a Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR, a Universidade Tuiuti do Paraná, o Centro Universitário SENAC/SP, a Universidade Estácio de Sá, a Universidade Anhembi-Morumbi possuem Departamentos oferecendo formação em cinema. Cursos particulares de Cinema e Audiovisual tiveram forte incremento nos últimos dez anos, tanto em São Paulo e no Rio de Janeiro, como em outras localidades do país. Na pós-graduação stricto sensu, são oferecidos diplomas de mestrado e de doutorado com orientação em Cinema, em Programas da UNICAMP, USP, UFF, UFSCAR (mestrado) e também Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, além da Universidade de Brasília. Universidades particulares como Anhembi-Morumbi, UNISINOS, FAAP, Universidade Católica de Pernambuco, Tuiuti, SENAC, mantêm cursos de especialização ou mestrado em cinema.
Algumas questões metodológicas devem ser mencionadas ao traçarmos a inserção institucional dos Estudos de Cinema na universidade brasileira. O campo coloca-se de forma abrangente dentro de Departamentos de Artes e Comunicações, possuindo a particularidade da demanda de formação prática. Uma boa parcela de alunos que entram em cursos de cinema tem interesse em aprender a fazer cinema: utilizar uma câmera, dirigir, produzir, atuar, fotografar, montar, sonorizar, fazer roteiros, etc. A maior parte dos cursos de graduação, no Brasil e no mundo, encontra-se predominantemente voltada para este público, sendo ministrada por professores com carreira profissional na produção cinematográfica. No currículo, acessoriamente, está presente uma série de disciplinas envolvendo história e teoria do cinema. Predominantemente, os cursos em Estudos de Cinema (onde não costuma haver ênfase na parte prática) encontram-se voltados para a pós-graduação.
A área de Estudos de Cinema envolve um conjunto de expressões audiovisuais, mais ou menos articuladas em dimensão narrativa, a partir de uma miríade de estilos. Cinema é antes de tudo uma “forma narrativa” (em seus primeiros tempos, e em alguns trabalhos de vanguarda, também “espetacular”) que envolve imagens em movimento (em sua maioria conformadas pela forma da câmera) e sons. Nas extremidades da definição do campo cinematográfico encontramos animações digitais, trabalhos experimentais plásticos em proximidade com a vídeo-arte, ou narrativas extensas que cotejam novelas ou mini-séries televisivas. A narrativa com imagens e sons pode ter um corte “ficcional” (quando entretemos o espectador com hipóteses sobre personagens e tramas fictícias) ou “documentário” (quando entretemos asserções, postulados, sobre o mundo histórico ou pessoal). Muitas vezes as definições não são tão claras e as cartas estão misturadas, mas o campo do cinema pode ser definido de maneira precisa, se pensado de modo amplo e sem preconceitos. Estudos cruzados, interdisciplinares, entre Literatura e Cinema, Pintura e Cinema, Teatro e Cinema, História e Cinema, Imagem Digital e Cinema etc, possuem ampla bibliografia. Estudos de Cinema, portanto, não é o ensino prático de como fazer cinema (embora possa e deva interagir com esta dimensão) e também não é o estudo das mídias (televisão, internet), nem das humanidades (antropologia e história), das artes plásticas, da literatura, ou do teatro. É tudo isso, trazendo em seu centro irradiador a forma narrativa cinematográfica em sua unidade, os filmes, interagindo com seus autores.
No núcleo dos Estudos de Cinema vislumbramos três disciplinas diversas: “História do Cinema”, “Teoria do Cinema” e “Análise Fílmica”. Em História do Cinema, trabalhamos a dimensão diacrônica da arte cinematográfica, seus diferentes períodos e movimentos. Analisamos também as produções nacionais (História do Cinema Brasileiro, Chinês, Francês, etc). Neste campo cabem estudos autorais, centrados em personalidades da História do Cinema (o cinema de Bergman, Welles, Renoir, Dreyer, Kubrick, Rocha, etc). Em geral, estudos sobre História do Cinema detêm-se no cinema ficcional. Recentemente, tem aumentado o espaço da pesquisa em cinema documentário dentro da história da produção cinematográfica mundial. Na abordagem dos momentos em que as vanguardas do século XX cotejam o cinema (expressionismo alemão, construtivismo russo, impressionismo francês, realismo italiano, surrealismo, cinema experimental, o pós-modernismo, etc.) podemos constatar uma abrangência que se delineia para além do estreitamente narrativo.
Temas que envolvem a própria noção de história e a possibilidade de sua periodização são trabalhados pela bibliografia em Teoria do Cinema. Noções essenciais para o estabelecimento desta história, como a noção de autor, são aprofundadas. Outro ponto que tem chamado a atenção na Teoria do Cinema é o questionamento da noção de “nacionalidade” na definição dos diversos cinemas nacionais (o Cinema Brasileiro, Francês, Americano, Português, Chinês, Indiano, etc.). Temas caros ao universo dos “Estudos Culturais” (feminismo, minorias étnicas, estudos de gênero, a questão do sujeito) percorreram de modo intenso o campo dos estudos de cinema nos últimos dez anos. Também o horizonte da filosofia analítica e do cognitivismo foi mapeado de modo polêmico. Nos anos 60/70/80, o conceitual do estruturalismo francês, a semiologia (Metz) e depois o pós-estruturalismo de Deleuze, Lacan, Derrida e outros, tiveram forte influência. A teoria clássica do cinema também compõe este campo de estudo, através da influência do impressionismo (Epstein, Dulac, Balázs), do construtivismo (Vertov, Eisenstein), da fenomenologia (Bazin, Zavattini), do realismo (Kracauer). A reflexão recente sobre cinema documentário mostra-se densa, acompanhando um aprofundamento da tendência analítica/cognitivista na contraposição aos Estudos Culturais. A Teoria do Cinema é, portanto, uma disciplina dos Estudos de Cinema que fundamenta estudos históricos e autorais.
Um terceiro horizonte dos Estudos de Cinema pode ser delimitado na Análise Fílmica. Definimos assim a pesquisa que se debruça sobre o filme propriamente e suas unidades (fotogramas, planos, seqüências, cenas, etc.). A análise fílmica detalha a dimensão estilística do cinema, servindo de substrato para a pesquisa histórica/autoral. O ponto clássico da análise fílmica é a montagem, conceito em moda dos anos 1920 até os anos 1960. Elementos estilísticos como profundidade-de-campo, plano-seqüência, entrada e saída de campo, espaço fora-de-campo, mise-en-scène, raccord, falso raccord, olhar, interpretação de atores, música, falas, roteiro, fotografia, cenografia, etc., compõem os tijolos sobre os quais se constrói a estilística cinematográfica. A análise fílmica fornece substância concreta para o trabalho com a teoria do cinema, embasando a reflexão. Olhar o estilo é o último degrau que se consegue percorrer no corpo-a-corpo com o filme. Em função do movimento contínuo, e da ampla quantidade de elementos que marcam a estilística cinematográfica, analisar exige uma verdadeira educação do olhar. O objetivo desta educação deve ser o abandono dos níveis mais imediatos de conteúdo, conseguindo o “leitor” elevar-se até a dimensão da mise-en-scène propriamente.
Isto posto, resta mencionar que, no caso brasileiro, a inserção acadêmica dos cursos de cinema dá-se, principalmente, junto à área de Comunicação. Trata-se de relação um pouco forçada, sem reconhecimento de ambas as partes, e que foi definindo-se por si mesma, no decorrer dos anos, apesar de expectativas iniciais diversas (como deixa antever a tabela de áreas do CNPq). Trata-se de uma relação de dois pólos, que nem sempre resultou em intercâmbio frutífero. Efetivamente, quem trabalha com História, ou Teoria do Cinema, sabe que a bibliografia básica de comunicação diz pouco a respeito dos Estudos de Cinema. Para embasar tal afirmação, basta percorrer o horizonte bibliográfico dos principais autores que pensam o cinema e conhecem a história de seus filmes. Pensar o cinema como forma de comunicação midiática é empobrecer seu campo referencial. Forçando a comparação, e fechando a equação, digamos que o cinema está para a mídia que o veicula, assim como a literatura está para a mídia livro. Não se gastam volumes falando da invenção da imprensa para comentar a história da literatura. Seria razoável gastar volumes falando de novas tecnologias, novas mídias, para analisar filmes, sua história e seus autores? Estudar cinema, hoje, não seria um pouco como estudar literatura? Embora já tenha possuído a chancela de novidade tecnológica, Estudos de Cinema é atualmente um campo acadêmico que, na maior parte de suas disciplinas, não encontra no fator de renovação tecnológica um elemento determinante. Trata-se de uma forma discursiva com imagens e sons, estabilizada, predominantemente narrativa, que oscila entre a tradição da vanguarda – onde costumamos encontrar formações mais fragmentadas/poéticas, e o modelo mais clássico. Além de sua forma ficcional, podemos igualmente localizar a tradição documentária, a ser determinada, predominantemente, a partir de um discurso de caráter assertivo sobre o universo exterior à câmera. Em termos de linguagem, a narrativa ficcional e a narrativa documentária possuem proximidade entre si, apesar de particularidades histórico-estilísticas. A definição do campo cinematográfico como relativo a uma forma de narrar com estrutura estável, não implica em ignorarmos as constantes formulações inovadoras. Fato que é próprio tanto ao cinema como a outras artes.
É importante não confundir mídia e forma narrativa veiculada nesta mídia. Algumas formas narrativas, ou espetaculares, são particulares à mídia televisiva, outras não. O cinema deve ser entendido enquanto forma narrativa que pode ser veiculado por mídias diversas: pela televisiva, pela mídia sala de cinema ou, mais recentemente, pela Internet ou outras mídias digitais. A veiculação do cinema pela mídia televisiva flexiona sua forma narrativa, mas de modo pouco significativo. Os chamados telefilmes, quando existem, são antes de tudo filmes, com diferenças em sua forma de produção que estão longe de os singularizarem. As séries televisivas são muito próximas da tradição cinematográfica e respiram por inteiro em seu ambiente. São feitas para o casamento com a mídia televisiva ou a internet. Podemos pensá-las como filmes estendidos, com produção um pouco mais ligeira e rápida (o que resulta em estilo distinto). A relação entre séries e telenovelas é evidente, assim como as especificidades que as distinguem do resto. Temos um formato, o “filme longo”, ou de longa-metragem, que é singular e que pode ser abordado como tal, com ganhos, pela análise. Filmes (longas) existem e filmes não são séries, nem telenovelas, nem vídeo-arte. Filmes existem e são um ótimo ponto de partida para análises em cinema. Se sua existência tem pouca relação com a mídia que o veicula (em termos de frutos para a análise), não podemos considerá-lo mídia em si. O tombo seria maior. A televisão, como mídia de pleno direito, possui uma realidade própria que vai bem além da forma narrativa com imagens em movimento e sons que encontramos em mini-séries e telenovelas. A forma espetacular de programas de auditório, noticiários, transmissões ao vivo, musicais, talkshows, eventos esportivos, etc., compõe um horizonte para além do campo cinematográfico que pode e deve ser estudado em sua especificidade. Do mesmo modo, os campos da mídia digital são amplos e podem ser explorados nas mais diversas direções. Mas cabe cautela para não querer flexibilizar tudo e todos a qualquer custo. Podemos desembocar numa espécie de futurologia, fetiche da tecnologia e vazia de conteúdo.
A noção de que a tradição cinematográfica precisa ser estudada em sua confluência com outras mídias advém de outro raciocínio falacioso, que tem sua origem no pensamento fixado na renovação tecnológica. O cinema, por ter em sua base imagens e sons captados por uma máquina, através de técnicas audiovisuais, é particularmente sensível a esta ideologia. Imagina-se uma evolução linear, tendo como horizonte a dimensão do novo e uma superação excludente da convivência entre formas díspares, norteada unicamente pelo fator inovação tecnológica. Fatores sociais e econômicos que impedem a evolução linear do eixo tecnológico são ignorados. O principal mito que o evolucionismo tecnológico produziu é o da confluência, ou convergência, dos meios. Na realidade, assistimos hoje a uma divergência dos meios, com a convivência simultânea de linguagens imagético-sonoras distintas, veiculadas através de mídias distintas, apresentando momentos-pico de convergência, que podem ser localizados pontualmente. É o fascínio com o “gadget” tecnológico, e a necessidade econômica da realização de seu valor, que transforma a convergência pontual em algo sistêmico. O resultado é uma análise excessivamente sobre-determinada pela potencialidade de síntese entre suportes e linguagens.
Na medida em que a arte cinematográfica sofre, desde sua origem, a mediação da técnica, é comum o discurso que nega sua especificidade histórica. Ao sobredeterminar a questão tecnológica, transforma Estudos de Cinema em Estudos de Mídia. O cinema seria uma máquina, uma mídia, e não uma forma narrativa, que tenderia a desaparecer como outras máquinas antigas do século XIX. Nossa visão, portanto, é que o cinema é uma forma narrativa relativamente estável, veiculada através de mídias diversas, oscilando em sua forma em função do quesito tecnológico, entre outros. Para a visão evolucionista, se uma mídia evolui tecnologicamente, a narrativa que esta veicula também deve desaparecer. Como isto não ocorre, surge uma esquizofrenia entre análise e conteúdo, expressa na demanda insistente de um outro Cinema, que se adapte à nova máquina midiática. Postura que traz um ranço normativo, querendo determinar como o cinema deve ser, ou desaparecer, com o surgimento da televisão, da internet, ou de novas máquinas produtoras de imagens e sons. A visão tecnológica evolucionista, que possui forte presença na universidade brasileira, tem dificuldades em lidar com a evidência da simultaneidade entre novas e antigas mídias, que não convergem. Para lidar com esta dificuldade, criou-se o conceito de “audiovisual” que expressa, entre outros aspectos mais interessantes, o desejo da redução cinema/mídia. Na realidade, o campo dos Estudos de Cinema tem em seu núcleo a dimensão diacrônica da narrativa cinematográfica, dimensão que realça sua estilística particular. É para esta estilística, e sua história, que se orientam os Estudos de Cinema, abrindo-se enquanto área de atuação na universidade.
Fernão Pessoa Ramos é professor titular do Departamento de Cinema da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. É autor de Mas afinal… o que é mesmo documentário? (Ed. Senac) e Cinema Marginal (1968/1974): a representação em seu limite (Brasiliense). Organizou História do Cinema Brasileiro (Art Editora) e Teoria Contemporânea do Cinema (Ed. Senac).
Sou estudante do curso de Comunição Social, estou me encaminhando para o 3º período, mas tenho pensado e pesquisado muito sobre os cursos de pós-graduação. Cinema é o meu foco! Sinto uma ânsia para entender e viver o universo cinematográfico, saber como a mágica funciona. Eu tinha uma visão superficial do que me espera, até que me deparei com esse texto, que proporcionou uma visão ampla do que é preciso para existir o cinema. Uma abrangência muito mais profunda está em questão e o mestrado nesse multimeio é a base teórica fundamental para a prática tão esperada e futura no doutorado. Acho que estou ainda mais encantada com esse mundo que nos remete a todo momento à busca do novo e ao resgate da vanguarda, visando o equilíbrio perfeito e singular.
Obrigada, Fernão Pessoa Ramos.
E até breve.
Karen Oliveira.
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