PARTITURA DOS TRAÇOS

Carybé e o storyboard de Vadiação

d01a0e2a87ee54d9f6de09535e1ceca2

Por Guilherme Sarmiento

 

Quando o argentino Hector Júlio Paride Bernabó, mais conhecido como Carybé, chegou a Salvador, em 1938, não perdeu tempo. Nos seis meses em que passou na Bahia como desenhista contratado do jornal argentino Pregón, foi atrás de Lampião e Maria Bonita margeando o rio São Francisco; procurou Jorge Amado, autor de Jubiabá, de quem ficou amigo, e, num golpe de vista, conheceu Mestre Bimba, com quem aprendeu as artes da capoeira. Na década de 1950, foi fotografado por Pierre Verger jogando em frente ao Mercado Modelo. Por toda essa sintonia com a cultura popular, Alexandre Robatto Filho, então um dos mais importantes documentaristas do estado, não encontraria dificuldades em atrair o baiano de ascendência argentina para seu projeto de documentário Vadiação.

Carybé e Robatto no set de Vadiação

Robatto tinha muitas coisas em comum com Carybé. Ambos se criaram sobre um solo fértil, onde bastava agilidade de olhos e de mãos para que a arte saísse do barro, inspirada por sonoridades e movimentos de uma terra mítica. Os primeiros documentários assinados por Robatto datam de 1938, justamente no ano em que Carybé chegava em Salvador. Enquanto um traçava as baianas esguias no papel cançon, o outro imprimia no celulóide a memória esquiva de ruas, as exposições pecuárias e manifestações populares, com a singeleza e urgência de xilogravuristas de feira. Mal sabiam eles que seu trabalho fundava um modo novo de ver a Bahia, ao invés de reproduzir, simplesmente, a tipologia e a memorialística de uma época. Sons e imagens tomaram corpo e, hoje, constituem-se como elementos da identidade baiana.

Na década em que Alexandre Robatto Filho resolveu filmar Vadiação, ele e Carybé já eram homens seguros de seu ofício. Se até a década de 1940, o documentarista ainda realizava filmes de conteúdo memorialístico como Guerra das boiadas, Bailes carnavalescos do Aristocrático, Clube Bahiano de Tênis e Quatro séculos em desfile, em 1950 estava preparado para alçar vôos mais altos em termos de narrativa e exploração temática. Suas obras-primas foram realizadas neste período: Entre o mar e o tendal, filme sobre a pesca do xaréu nas praias do Chega-Nego, cujo arrojo de linguagem influenciou Barravento, de Glauber Rocha; Xaréu, abordando novamente o universo dos pescadores; e Vadiação. Com este último, Robatto tornar-se-ia o pioneiro no registro da capoeira na Bahia e no Brasil.

Carybé, por outro lado, em 1950, já era considerado um grande ilustrador e artista plástico baiano, juntando-se a nomes como Mário Cravo, Genaro de Carvalho e Jenner Augusto. Em 1951, desenhou para livros da Coleção Recôncavos e Bahia, imagens da terra e do povo, de Odorico Tavares, nos quais a plasticidade dos corpos nos jogos de capoeira adquiria a feição de pequenas e mágicas grafias orientais. Além disso, em 1952, já havia experimentado as artes do storyboard, realizando 600 desenhos para o filme O cangaceiro, de Lima Barreto. Portanto, conhecedor das artes do jogo e do traço, Carybé estava pronto para colaborar, em muitas frentes, para a concepção de um filme que dignificasse o ofício do capoeirista.

Vadiação, um pequeno documentário de 8 minutos, colocou diante das câmeras figuras históricas, como Mestre Bimba e Mestre Traíra, hoje reverenciados por adeptos da capoeira em todo o mundo. Além da importância do registro e do pioneirismo temático, vemos na tela uma cuidadosa elaboração dos enquadramentos, fruto dos estudos previamente concebidos por Carybé e, muitas vezes, seguidos à risca pelo documentarista Alexandre Robatto. No que restou do storyboard digitalizado, percebe-se uma obsessão pela decupagem: o toque do berimbau, do pandeiro, evidenciados pelos planos próximos, revezam-se com a evolução dos corpos malabaristas em planos médios e gerais. Ouvimos o timbre metálico e oco do instrumento sem precisar de suas ondas sonoras. Completamos um rabo-de-arraia antes da queda de um jogador.

Com seu storyboard, Carybé construiu uma partitura que sustentou, por si mesma, a linguagem do movimento. Junto com Alexandre Robatto, fez do cinema uma ode a corpos que evoluem levados por um sopro imemorial. Estava o cinema na capoeira antes mesmo da capoeira estar no cinema. Uma lição dos mestres das imagens.


Guilherme Sarmiento é cineasta, pesquisador e professor de Dramaturgia do curso de Cinema e Audiovisual da UFRB. Realizou, junto com outros quatro diretores, o primeiro longa-metragem realizado numa universidade, Conceição ou autor bom é autor morto, e foi um dos coordenadores do primeiro Festival Brasileiro de Cinema Universitário, realizado na UFF.

 

BIBLIOGRAFIA

Catálogo. Alexandre Robato Filho – Centenário de um cineasta baiano. Governo do Estado da Bahia, 2008.