Pequenas anotações sobre um raro Luiz Paulino dos Santos
Por André Sampaio
Sou do tempo e estou no tempo
Esse tempo me faz ver
Lembranças de outro tempo
Que me faz compreender
Alfredo Gregório de Melo
Um dia na rampa (1955) é filme do tempo da rampa do Mercado Modelo de Salvador Bahia Brasil. O mercado modelo original popular, não o da atual antiga alfândega, presente mercado para turista.
O mercado do tempo do filme pegou fogo numa tarde de domingo, no paralelo da hora do futebol do Vitória contra o Bahia: evidências de um crime.
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Há quem diga que aquilo tudo são três enormes bundas. Há até quem diga que são mesmo três colhões o Monumento à cidade de Salvador ou Fonte da rampa do mercado, escultura de Mário Cravo, que hoje reina solitária na locação rampa da feira livre de outros tempos.
Nada resta!
O fato é que agora, para saber como foi, se torna inevitável recorrer a Um dia na rampa. E daí advém um valor imediato de documento, impressão – registro da realidade – que muitos têm como vocação primordial do próprio cinema.
Eu não!
Acontece que não é por aí que Um dia na rampa está em tempo. Por aí Um dia na rampa presta serviço ao tempo, é marco no tempo, é fantasmagoria.
Assombração jamais!
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Nos metais, nas pedras e nos ossos, que são pedras também, – acredito – dá para ler toda a história do mundo, inclusive as partes que a ciência oculta. Outra arqueologia se faz necessária, mas tudo ressoa o tempo todo, disponível para quem aprende e ousa acessar, verdadeira cinemateca de raros e raros.
Prefiro Um dia na rampa sob estas outras ópticas, porque as devidas louvações da indiscutível relevância do registro cinematográfico, histórico, antropológico, sociológico, arquitetônico, já estão dadas.
Recentemente desencavado – ah, existe esse filme –, Um dia na rampa é a todo o momento solicitado para referenciar e ilustrar outros filmes. Nos últimos cinco anos já foi praticamente vendido plano a plano, mais cedido que vendido: glórias que o passar do tempo às vezes traz.
Evidente que as dimensões da autenticidade e plasticidade de Um dia na rampa não são oriundas do natural desenrolar do tempo. A força de um filme nunca meramente emana do chamado devir, é manifestação de uma atuação no tempo, que segue iluminando porque imprimiu para perpetuamente ressoar, vibrar, somar e viver no tempo.
Um filme é um ser vivo cheio de vontades.
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Cenas de Mestre Bugalho displicentemente jogando capoeira na beira do cais, retiradas de Um dia na rampa e inseridas no filme documento do processo público de inventariado da capoeira, constituem imagens decisivas no ganho de causa da capoeira: patrimônio imaterial do Brasil.
Mestre Bugalho em Um dia na rampa é uma aparição fantasmagórica, a concretude de uma realidade espiritual, alma da capoeira.
A imagem de um mandacaru envernizado para cena de filme de Jean Manzon é assombração manifesta.
Tudo é documento – vale o escrito –, mas cinematografia em sua essência lexicográfica pretende-se escrita da luz.
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Um dia na rampa ainda em tempo de, no século XXI, anunciar a novidade cinematográfica de 1957: tempos de filmagem/ 1958: tempos de finalização. Mais ou menos por aí.
Um dia na rampa já era documentário de invenção, documentário poético e até documentário sensorial.
É do tempo do moderno. É filme sinfonia, filme de Neorrealismo, filme de Cinema Novo.
Um dia na rampa é dos precursores do Cinema Novo brasileiro.
Diante da máxima afirmativa anterior, é fundamental alardear a importância da compreensão da desnaturalização nos processos ideológicos que levam à memória e ao esquecimento. Memória não existe sem esquecimento e ambas são ações, conveniências, construções, embate contínuo de forças a serviço de poderes que necessitam ora lembrar, ora esquecer.
Quero dizer que, quando alguém diz sobre Um dia na rampa – ah, existe esse filme –, isso não é coisa do tempo. É coisa dos homens.
Somente para evocar mais um dos alardeados jargões culturais da contemporaneidade, declaro: por seu formato de produção, Um dia na rampa já era um coletivo dos artistas: Luiz Paulino dos Santos, Valdemar Lima, Marinaldo da Costa Nunes, David da Costa Nunes, Orlando Alcovia Rêgo, Luiz Ludwig, Genaldo da Costa Nunes e Fausto da Costa Nunes, mais agregados.
E, sem conversa, o filme alinhavava ficção e documentário para fazer um filme de cinema. Interessava era fazer o cinema.
No dizer do próprio Luiz Paulino dos Santos: “é um filme de 10 minutos que é como você pegar uma garrafa com água e despejar o conteúdo. Não precisa de narração, não precisa de texto, e o filme é claro e escorrido assim.”
Filme fluido: fluxo de Um dia na rampa, música das imagens em montagem eisensteiniana, língua de ideogramas, cada dois três planos um haikai baiano, sintonia oriental de Luiz Paulino dos Santos, intuição de quem havia sido estafeta e corrido as ruas todas de Salvador entregando telegramas.
O Brasil não pertence ao Ocidente.
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Panorâmica vertical emenda com panorâmica horizontal que, em grande plano geral, revela o cenário principal. Corta para rápida silhueta de sujeito tocando berimbau. Cartela: “Rampa do Mercado Modelo, porto de saveiros que navegam a Baía de Todos os Santos. Os homens vêm toda manhã do mar à terra e retornam com a noite para as águas que dizem ser da Rainha Yemanjá. Esse filme, realizado graças à cooperação de todos os trabalhadores, documenta Um dia na rampa.”
As velas dos saveiros são telas de cinema. Começa o filme: música que acelera o ritmo e introduz a percussão em planos mais curtos do descarregar das mercadorias lançadas de mão em mão. Suíte Bahia: filme sinfonia: Um dia na rampa.
Entra em cena um carrão rabo de peixe de onde desembarcam duas madames. O motorista parte e as madames vão às compras. Luta de classe nas ações paralelas das madames versus empregada doméstica, que também vai às compras, mas chega e volta a pé. Choque de contrários no corte direto da dupla de madames para dupla de quituteiras com cestos na cabeça. Beabá do Cinema Novo, que muitos assoletraram sem nunca conseguir ler.
Coca-cola na barraca Estrela do Mar. Variados closes, rápidas ações de compra e venda e dinheiro no bolso, que retomam o caráter percussivo da montagem de planos novamente mais curtos. Segue o filme: música.
Ninguém fala nada, está tudo dito. Jorge Amado ficou de fazer um texto que, por sorte, não fez. O próprio, quando viu o filme, afirmou não saber onde seu texto poderia ter entrado.
Deus e as águas, escrito na tabuleta de uma barraca onde uma criança acende um fogareiro.
Num saveiro atracado novamente abanam um fogareiro: hora do almoço.
Marcação de virada do filme: música que segue.
Do reflexo de um saveiro distorcido nas águas do mar, corta para uma dose de cachaça que um homem vira. Documentário sensorial: o ponto de vista do cachaceiro é o saveiro distorcido nas águas.
Depois do almoço, um pouquinho de diversão. Afinal, tempo não é só dinheiro. Tempo é lazer, tempo é arte. Então tem cachaça, capoeira, jogo e romance: um sujeito conversa com uma moça na beira mar. Logo caminham para um saveiro atracado e somem em seu interior. Corta para…
Frente do saveiro encostando com vontade na parede do cais do porto.
O cineasta Zé Umberto Dias foi quem me apresentou Um dia na rampa, no Dimas da Bahia, em algum momento dos 8 anos que dediquei ao serviço de arqueologia do cinema na realização do filme Estafeta – Luiz Paulino dos Santos. Lembro que Zé Umberto gostava muito do filme e fez questão de chamar atenção para a metáfora sexual do saveiro contra a parede do cais.
Fim de feira.
Em cena, alguém recolhe um cesto vazio.
Os saveiros partem mar adentro na Baía de Todos os Santos.
Fim de mais Um dia na rampa.
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O filme começa com um português cabo eleitoral de Hélio Machado, candidato a prefeito de Salvador. O português queria distribuir fotografias para títulos de eleitor e trouxe da Europa uma câmera Arriflex 35mm, acreditando tirar muito retrato com um rolo de 120 metros. Nem velocidade, nem quantidade. Não deu certo.
A turma do coletivo Um dia na rampa logo fica sabendo da novidade do português, que, sem conseguir passar a câmera adiante, acaba emprestando. Fazer o quê?
Rodaram um filme: Bahia tradição e festa, cujo copião ficou preso no lendário laboratório Líder do Rio de Janeiro. O dinheirinho não deu.
Partiram para Um dia na rampa, aquela história de filmar a pé, carregando tudo nas costas, tempos heróicos do cinema brasileiro.
Conseguiram pagar o copião, mas não conseguiam finalizar o filme. O dinheirinho acabou.
Através de Martim Gonçalves, fundador da incrível Escola de Teatro da Bahia, conseguiram uma sessão do copião de Um dia na rampa para o Magnífico Reitor Edgard Santos, no antigo Cine Guarani. Magnífico conseguiu o dinheirinho que faltava.
Lançaram o filme no Cinema Liceu, em sessão do Cineclube da Bahia. Vasconcelos Maia, cronista do Jornal A tarde, escreveu sobre o filme e acabou fazendo amizade com Luiz Paulino dos Santos. Vasconcelos Maia era obá e apresentou Paulino ao universo do candomblé. Dessa imersão, Luiz Paulino dos Santos desenvolve Barravento, mas essa é outra história.
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Luiz Paulino dos Santos fez meu primeiro retrato, assim que desembarquei na Terra. É muito amigo do meu pai, Severino Dadá, montador de cinema, veterano de guerra.
Luiz Paulino dos Santos andava de costas para o cinema, lá nas montanhas do Vale do Matutu, vivendo em comunidade da Doutrina do Daime, que ajudou a fundar, no sul das Minas Gerais.
Luiz Paulino dos Santos é meu padrinho. Quis retribuir meu primeiro retrato e fiz uma cinebiografia dele chamada Estafeta. Daí ele, que andava de costas, virou de perfil para o cinema.
Edgard Navarro viu meu filme na Jornada da Bahia e chamou Paulino para ser o personagem título de seu novo filme, em breve nos cinemas: O Homem que não dormia.
Estou finalizando um suspense psicológico, também em breve nos cinemas, – Strovengah – filme cujo argumento original é de Luiz Paulino dos Santos.
Também estou sabendo, e não resisto anunciar, que Luiz Paulino dos Santos está preparando um novo roteiro para muito em breve voltar a filmar.
Luiz Paulino dos Santos deu as costas, virou de perfil e está de cara para o cinema.
Tenho dito.
André Sampaio