Por Luís Alberto Rocha Melo
O cinema deve ser a tradução de um tempo histórico a ser vivido – e, sobretudo, compreendido − no presente. Se o cinema tem tal capacidade de refletir a contemporaneidade, e já que seu poder de penetração nas mais vastas e diversificadas camadas da sociedade não oferece termos de comparação se relacionado às outras artes, é justamente através do cinema que um artista ou um intelectual pode se expressar com maior probabilidade e capacidade de ser visto e ouvido por muitos. O cinema é uma arma; cabe aos criadores (e também aos pensadores) utilizá-la da forma mais justa.
Mas nem sempre o mais justo está nos filmes em si. Há um grande volume de produções voltadas unicamente ao lucro e à exploração da massa de pagantes, o que afasta os homens inteligentes do convívio com o cinema, transformando-o em uma arte menor. Essa dupla natureza do cinema – positiva e negativa – tem sua raiz na dualidade central do fenômeno cinematográfico, isto é, o fato de se tratar ao mesmo tempo de uma arte e de uma indústria.
O cinema tem a seus pés uma enorme audiência, mas, apesar disso, também pode ser considerado uma arte órfã, na medida em que lhe falta direção, propósito, programa e, muitas vezes, inteligência para trilhar o caminho mais justo em uma sociedade injusta.
Por outro lado, o trabalho do artista não é suficiente. É necessário que a arte possa ser explicada, traduzida – em última instância, levada ao entendimento dos que a consomem. Esta é, sobretudo, a missão da crítica: complementar ou – em certos casos – provocar e antecipar o trabalho do artista. O crítico é o mediador entre a arte e o público. Se o cinema é uma arte, então o crítico cinematográfico será duplamente responsável, pois o cinema, pelo seu poder, é o “signo de uma civilização que nasce”, uma civilização que tem como fundamentos de uma “psicologia coletiva” a percepção do mundo como imagem e movimento.[1]
Hoje nos parece surpreendente que essa forma de compreensão do cinema – resumida nos tópicos acima – tenha tido espaço no Brasil do início dos anos 1940, bem antes do período de arejamento e reflorescimento cultural que se seguiu ao pós-guerra. Mais significativo ainda é o fato de que o autor dessas reflexões, Walter da Silveira, ainda hoje seja um nome tão pouco estudado pelos que se dedicam a historiar o cinema brasileiro. Afinal, no panorama da crítica dos anos 1940-50 – incluindo aí as atuações de nomes importantes como Pedro Lima, Otávio de Farias, Vinícius de Moraes, Alex Viany, Moniz Vianna, Francisco Luiz de Almeida Salles e Paulo Emílio Salles Gomes – a postura de Walter da Silveira é de uma inegável singularidade. A surpresa aumenta na medida em que se compreende que tais reflexões foram feitas no âmbito de uma então provinciana Salvador.
Não é apenas pelo fato de ter sido um homem de letras – com uma carreira também voltada à advocacia e à política – que Walter da Silveira pode ser visto como um intelectual ligado ao cinema. O que define Walter da Silveira como um intelectual é justamente a sua postura insistente diante do cinema como fenômeno artístico, cultural, social e político.
Um exemplo: nos anos 1940, Walter da Silveira elaborou algumas importantes reflexões sobre o cinema brasileiro não a partir de questões locais mas de um fato amplo e concreto, isto é, a Segunda Guerra Mundial. Para o crítico, a guerra não só operava uma transformação em escala mundial, mas abria portas para profundas alterações internas, particulares a cada país, para as quais o artista e o intelectual deveriam estar não só atentos como, na medida do possível, efetivamente engajados.
A função do intelectual é interpretar os fatos. Mas, em tempos obscuros ou belicosos, ele deve ultrapassar a missão de intérprete “para atingir a uma autêntica missão de mestre”, não ficando “acima”, mas “ao lado” do “homem da rua”.[2]
O engajamento de Walter da Silveira ocorre efetivamente em duas plataformas: a partir de 1943, começa a escrever de forma conseqüente em defesa de um cinema “nacional”. Dois anos depois, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro, que ainda estava na ilegalidade, chegando a candidatar-se a deputado estadual pelo PCB no ano seguinte.[3]
O artigo “Esta é a hora do cinema nacional”, publicado em 1943 no jornal O Imparcial, antecipa em muitos pontos as discussões que serão travadas somente dez anos depois nos congressos nacionais de cinema realizados no Rio e em São Paulo, nos quais, por sinal, Walter da Silveira também teve participação direta.
Na análise elaborada pelo crítico, entrecruzam-se a guerra contra o fascismo e as possibilidades de emancipação política e econômica advindas dessa mesma guerra. É nessa conjuntura que se forjam as reais possibilidades de se implementar uma indústria de cinema no Brasil, bastando para tanto a consciência nacional que uniria industriais e intelectuais na defesa de uma arte independente.
Afirmar-se como nação significa conquistar independência econômica. A guerra abre flancos importantes, pois a substituição de importações é uma realidade. Assim, o cinema brasileiro, que deve enxergar-se como uma indústria em meio a tantas outras nacionais, precisa estar atento para perceber o momento de sua “libertação”.[4]
O que chama a atenção em “Esta é a hora do cinema nacional” é o fato de que, ao invés de buscar a contraposição mecânica entre imperialismo opressor e nacionalismo resistente, muito comum no pensamento de esquerda daquele momento, Walter da Silveira percebe que é preciso entender o mecanismo desigual da economia cinematográfica em termos internacionais.
Isso nos conduz ao problema do que seria “nacional” nos filmes brasileiros. Aqui também a questão se estrutura a partir da compreensão do cinema como fenômeno global. Assim, se é lícito falar em independência ou autonomia da indústria como um fim desejado, é preciso levar em consideração que o cinema nasce como “experiência simultânea de vários países” e que, portanto, assenta-se igualmente na “interdependência” das “diversas escolas nacionais”.[5]
A questão do “nacional” ultrapassa a exigência de “temas” ou “assuntos” brasileiros, até porque as assim chamadas “escolas nacionais” não surgem por obra e graça de cineastas inspirados, mas por determinação de certas “condições históricas”, aos quais os criadores estão subordinados.
“É que o cinema, sendo uma arte eminentemente internacional como fim, é uma arte eminentemente nacional como origem. E por isso coloca o cineasta, o homem cinematográfico, com os olhos no horizonte, mas os pés presos à terra, como o mais ecumênico, e ao mesmo tempo, como o mais nacional de todos os artistas”.[6]
Para Walter da Silveira, o cinema brasileiro carece justamente de uma “escola nacional”, levando-se em consideração o que isso significa em termos não apenas artísticos, mas também econômicos e políticos. Mais: não basta que o cinema se afirme como “expressão” ou como “conteúdo” se não há, em ambos, “seriedade” e “dignidade”.[7]
À parte a questão econômica de dominação do mercado, o que, sobretudo, provoca o atraso do cinema brasileiro, no entender de Walter da Silveira, é a ausência de “inteligência”, pois “não se formou até hoje, entre nós, um espírito teórico sobre o cinema, uma sistematização de conhecimentos cinematográficos”.[8]
É neste ponto que a crítica cinematográfica ganha um papel primordial. Já em 1945, Walter da Silveira afirmava que, de todas as artes, a que mais necessitava de intervenção da crítica era o cinema, justamente por sua enorme penetração popular.[9] A função do crítico coaduna-se, assim, com a do intelectual: ele será um “esclarecedor”, para um público nem sempre preparado para assimilar o que vem a ser “justo”.
Poucos críticos se preocuparam tanto em refletir sobre o próprio ato de escrever sobre cinema. Ao situar o papel da crítica como uma das principais ferramentas na construção de uma “escola nacional”, Walter da Silveira freqüentemente procedia ao reexame da própria função do crítico. Este não deveria “julgar” uma obra, mas “interpretá-la”. Ao interpretar o cinema, arte que é reflexo da contemporaneidade, o crítico age como um intelectual comprometido com seu próprio tempo. Porém, um intelectual de um outro tipo, isento de determinados preconceitos típicos de uma tradição literária.[10]
Esta postura de um intelectual que caminha ao lado do “povo” − mas que, por isso mesmo, corre o risco de estar só diante de seus pares −, norteará não só as reivindicações do grupo dos cineastas e críticos do PCB interessados na defesa de um cinema independente, nos anos 1950, como será baliza para a noção de arte engajada sustentada pelo Cinema Novo, na década seguinte.
Luís Alberto Rocha Melo é cineasta e pesquisador, doutorando em Comunicação, Imagem e Informação pela Universidade Federal Fluminense e redator da revista Contracampo (www.contracampo.com.br). Autor do capítulo “Gêneros, produtores e autores: linhas de produção no cinema brasileiro recente”, publicado em Cinema Brasileiro 1995-2005: Ensaios sobre uma década (org.: Daniel Caetano, Rio de Janeiro: Azougue/Contracampo, 2005). Foi pesquisador do Projeto Alex Viany (2007-2008), que disponibilizou o acervo do crítico, cineasta e historiador Alex Viany na internet. Realizou os documentários Alex Viany (1990), O desejo de Deus (1992), A projeção no cinema (1993) Fernando Py (1994), Fragmentos – Uma narrativa intranquila (1997), O trapezista (1999), O galante rei da Boca (2004), e o curta-metragem de ficção Que cavação é essa? (2008).
NOTAS
[1] SILVEIRA, Walter. “Valor do cinema como arte”. O Imparcial. Salvador: 1943. In: ______. Walter da Silveira. O eterno e o efêmero (vol. 1). DIAS, José Umberto (org.). Salvador: Oiti, 2006, pp. 88-9.
[2] SILVEIRA, Walter da. “Missão dos intelectuais”. O Imparcial. Salvador: 1942. In: ______. Op.cit. (vol. 4), pp. 59-60.
[3] Como muitos intelectuais e artistas, Walter da Silveira romperia com o PCB em 1956, após as denúncias do XX Congresso do PCUS. Em 1959, elegeu-se deputado estadual pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
[4] SILVEIRA, Walter. “Esta é a hora do cinema nacional”. O Imparcial: Salvador, 1943. In: _________. Op. cit., p. 92.
[5] SILVEIRA, Walter. “Posição do cinema”. Caderno da Bahia. Salvador: 1949. In: _______. Op.cit. (vol. 1), p. 196
[6] SILVEIRA, Walter. “Posição do cinema”, cit. In: _________. Op. cit., p. 198.
[7] SILVEIRA, Walter. “Bases e perspectivas do cinema brasileiro (II)”. Diário de Notícias. Salvador: 06 abr 1952. In: _______. Op. cit. (vol. 1), p. 251.
[8] SILVEIRA, Walter. “Bases e perspectivas do cinema brasileiro (V)”. Diário de Notícias. Salvador: 27 abr 1952. In: _______. Op. cit. (vol. 1), pp. 257-8.
[9] SILVEIRA, Walter. “Função da crítica cinematográfica”. O Momento. Salvador: 04 jun 1945. In: _______. Op. cit. (vol. 1), p. 137.
[10] SILVEIRA, Walter. “Cinema − Arte contemporânea”. Palestra realizada na União dos Estudantes da Bahia (UEB). Salvador: 1943. In: _______. Op. cit. (vol. 1), p. 109.
BIBLIOGRAFIA
AUTRAN, Arthur. Alex Viany: crítico e historiador. São Paulo: Perspectiva; Rio de Janeiro: Petrobras, 2003.
CHAUI, Marilena. “Intelectual engajado: uma figura em extinção?”. In: NOVAES, Adauto. O silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
Caderno de crítica (5). Rio de Janeiro: Fundação do Cinema Brasileiro/MinC, maio 1988.
SILVEIRA, Walter da. “A crítica cinematográfica no Brasil (apontamentos para uma possível história)”. Tempo brasileiro (9-10). Ano IV. Rio de Janeiro: abr-jun 1969.
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