AS INCONSTÂNCIAS DE UM CINEMA QUE SE DIZ UNIVERSITÁRIO (NA BAHIA)

Por Bruno Machado

É possível ver o crescimento do cinema universitário como um modelo que se estabelece cada vez mais com naturalidade. Não simplesmente o cinema feito nas universidades, mas o cinema feito nas universidades de cinema, um modelo possível de linguagem e apropriações singulares que clame por um espaço irrestrito na sua base restrita (claramente uma associação metafórica ligada a sua “limitação” espacial), cheio de dúvidas e incógnitas.

Há um formato estipulado? Um modelo único? E, que tal, uma cartilha? O processo de se pensar e de se fazer cinema, dentro de uma universidade, propõe como resultado obras apenas universitárias e acadêmicas? E uma pesquisa sobre cinema universitário? Google? Wikipédia? Tudo resumido e historicamente datado? Como enquadrar um cinema que, talvez, busque exatamente não ser enquadrado e limitado? As expectativas para entender essa “vertente” são tentadoras, ao tempo que a atenção e os instintos são tomados pelo desejo de decifrá-lo.

O Festival Perro Loco, festival de cinema universitário que envolve países da America Latina, em texto publicado na revista do evento de 2009, tenta descrever esse “tipo de cinema”, apontando três características, geralmente em comum entre as obras, que ganham notoriedade e as definem bem: o formato curta-metragem, o baixo orçamento e a experimentação. Tríplice que se entrelaça e até se confunde (ou se incrusta) com o conceito de cinema universitário.

Em contraposição à fácil absorção do longa-metragem pelas salas de cinema, poucos filmes de curta ganham esse espaço, restando-lhes os festivais, as específicas mostras e, atualmente, a internet. Mas, ao mesmo tempo, sua curta duração e sua linguagem própria possibilitam que as outras duas características (o baixo orçamento e a experimentação) sejam exploradas sem resultarem em produtos inferiores e de baixa qualidade, além de possibilitarem ao estudante o aprendizado através da prática (inovando, errando e reinventando). Logo, esse formato, que já nasce com as origens do cinema – mas que só ganha conceito com o surgimento dos filmes com durações cada vez maiores -, parece ter se encaixado bem às necessidades dos estudantes e jovens cineastas.

Já o baixo orçamento e a experimentação, de certa forma, comunicam-se entre si, ou até se justificam. A verdade é que no cinema universitário não ocorre um compromisso comercial (e logicamente também não há retornos financeiros), o que possibilita um surto de criatividade, experimentação e intercâmbio de linguagens nas obras. O filme torna-se o espaço para o jovem cineasta aperfeiçoar sua técnica, criar seu perfil, sua marca e pensar uma identidade cinematográfica que, poderá ou não, ser carregada com ele depois de sua passagem na universidade.

Porém, a experimentação e a liberdade que o cinema universitário possibilita devem estar tanto relacionadas com as normas e regras hegemônicas quanto ao próprio cinema universitário, afinal, ao criar uma cartilha do cinema universitário, ele estaria colocando na prática uma limitação desnecessária. Logo, esse cinema propõe mais questionar uma cartilha existente (já que o modelo de cinema que estamos acostumados é apenas um modelo estético determinado histórica e, principalmente, comercialmente) do que ser um manual de como o estudante universitário deve proceder, caracterizando o perfil multifacetado desse modelo (afinal, cinema universitário é curta, é média e longa-metragem; é experimental e clássico-narrativo; é trash e político etc.).

Posto em debate essas especificações, acaba-se demonstrando o forte caráter desse cinema em ser mais como um aprendizado da técnica e do saber do que como material concreto e utilizável após a formação acadêmica. Claro, algumas obras ganham destaque e reverberam pelos festivais e definem a carreira do criador, mas será que cineastas buscam realmente vender as produções que realizavam como estudantes? Visivelmente, os poderes desse cinema ainda aparentam estar sendo descobertos, assim como suas inconstâncias e enigmas.

Uma faculdade de cinema proporciona levantar todas essas questões apresentadas. Realizar um cinema reflexivo, que pense, estude, entenda conceitos, estéticas, linguagens e teorias e que acrescente a presença das inovações e das indagações dos próprios realizadores. Ambições que funcionam pela potencialidade do ambiente e pela troca de conhecimentos que uma universidade possibilita.

Dessa forma, ao associar o cinema às universidades de cinema (e no caso, no estado da Bahia), apenas busca-se conseguir um recorte que envolva uma formação no campo audiovisual, ou seja, uma questão de graduação e não de complementação de uma graduação (disciplinas optativas ou interesses próprios dos discentes). Limita-se, assim, no estado, ao pioneirismo da Faculdade de Tecnologia e Ciência (FTC) e depois aos cursos da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), da Unijorge e o da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Mas o interesse não é só apontar a existência desses cursos, como também buscar resgatar algum fio histórico, algum momento do cinema baiano que tenha influenciado o “surgimento” dessa vertente universitária.

Para chegar ao objetivo, dois caminhos devem ser apresentados: o surgimento das primeiras universidades de cinema no país e o apanhado histórico do cinema na Bahia.

No Brasil, o primeiro curso superior de cinema foio da Universidade de Brasília, UnB, em 1965. Seguido pelos três mais conhecidos e reconhecidos nacionalmente, o da Universidade de São Paulo (fundado em 1966 por Cícero Cristiano de Souza e Paulo Emílio Salles), o curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense (fundado em 1969 por Nelson Pereira dos Santos) e o curso da Fundação Armando Álvares Penteado, FAAP (fundado em 1972). Na Bahia, o primeiro curso superior só chegaria em 2001, idealizado por Messias Bandeira, na Faculdade de Tecnologia e Ciência, FTC, ou seja, com mais de trinta anos de diferença.

Porém, pode-se propor um resgate histórico no estado e traçar pontos que relacionem o desejo de fazer cinema e seus ensinamentos. Em principio, 1950 é o ano que se deve colocar como uma possível ponta. Não é, efetivamente, o nascimento de uma faculdade de cinema, mas o forte nascimento de um pensar cinema na Bahia, quando cineclubes eram os encarregados de levar discussões e cursos rápidos sobre a sétima arte para os interessados.

Pelas mãos de Walter da Silveira nascia, nesse ano, o Clube de Cinema da Bahia. Disposto a servir como escapatória para os filmes hollywoodianos, que tomavam as salas de cinema baianas, o cineclube trazia as diferentes estéticas e linguagens que o cinema apresentara até então, como a vanguarda russa dos anos 20, o expressionismo alemão, a escola de documentários inglesa, o neorrealismo italiano etc. Percebe-se todo o interesse de Walter em levantar a discussão da linguagem e da teoria do cinema, em tempos de aproximação, por parte dos exibidores, com as obras americanas.

Com o surgimento da Escola de Teatro da UFBA, Walter ainda tentaria a criação de um ensino superior de cinema ali, mas sem a concretização efetiva. Já em 1968, ele e Guido Araújo foram convidados pela universidade para ministrar um curso de História e Estética do Cinema (nasce aqui o Grupo Experimental de Cinema), com distribuição de diplomas pela universidade. Walter ficava responsável pelas aulas teóricas, enquanto o Guido Araújo se encarregava das práticas.

Logo surgiria a ideia também de agregar um cineclube. Com projetores emprestados do ICBA e filmes providenciados pelos dois, a empreitada enchia em cada exibição. Porém, a iniciativa teve duração curta, finalizado pelas polêmicas do AI-5. O curso tendia a continuar, mas com a morte de Walter da Silveira, em 1970, Guido viria a ficar sozinho com o projeto.

É interessante lembrar o papel do Walter da Silveira na construção de uma mentalidade cinematográfica no estado (seu interesse em repassar conhecimento, principalmente) e suas influências sobre os participantes do Clube de Cinema da Bahia, como Glauber Rocha, do curso da UFBA, como André Luiz Oliveira (Meteorango Kid, o herói intergalático), José Umberto (O anjo negro, Revoada), José Frazão (Akpalô) e André Setaro.

Ainda iriam surgir novas propostas para a área. André Setaro, professor adjunto da UFBA, relembra que, na década de 1980, a Fundação Cultural do Estado da Bahia patrocinou, através da Dimas, cursos rápidos de cinema, sobre história, linguagem, estética e roteiro. E que a própria UFBA também nutria algum interesse, ofertando disciplinas optativas no campo audiovisual, mas não com o intuito de formar uma mentalidade cinematográfica. A iniciativa tinha apenas o objetivo de apresentar ideias e pensamentos para os graduandos em jornalismo e produção cultural.

Já em 2001, com a FTC, surge a primeira faculdade de cinema na Bahia. Seu papel era o de trabalhar a sétima arte a partir de um curso superior no estado, com alguns anos de diferença das primeiras nacionais, mas como pioneira em todo o Nordeste. Sua formação, mesclando a teoria com a prática, já demonstrava seu interesse em fomentar a mentalidade cinematográfica entre os alunos.

No envolvimento da faculdade com a produção, Cesar Fernando de Oliveira, ex-aluno da FTC, comenta que ocorria mais uma vontade dos próprios alunos do que um plano de incentivo vindo da faculdade. Sendo que essa produção estaria vinculada aos fundamentos pedagógicos do curso, sendo estes, exercícios das disciplinas, na maior parte interdisciplinares. Para a exibição e a crítica, as obras ficavam restritas aos seus limites acadêmicos, com pequenas mostras e debates internos, onde as apresentações eram orais e passageiras. Claro, a faculdade também incentivava os alunos a participarem de congressos, seminários e a inscreverem suas obras universitárias nos circuitos de festivais, além da exibição na sua TV universitária. Porém, até hoje não realizou seu próprio festival universitário.

Pelo caminho das universidades públicas, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia foi a primeira no Nordeste a apresentar um curso de cinema e audiovisual como ensino superior, iniciando seu processo letivo no segundo semestre de 2008. Voltado tanto para uma perspectiva teórica quanto prática, o curso segue ainda construindo seus ideais e objetivos, assim como sua metodologia. Sua localidade, na cidade de Cachoeira, possibilita um olhar valioso sobre a história e a cultura do local, e a diversidade do corpo discente proporcionam também uma heterogênea visão sobre a produção universitária, rendendo, além de debates sobre as próprias produções, alguns resultados significantes como editais ganhos, exibição das obras em mostras, prêmios em festivais e pequenos sucessos pela internet.

A UESB e a UFBA, atualmente, concretizam seus cursos superiores de cinema, aumentando a presença do pensamento e difusão do cinema universitário na Bahia, o qual, porém, ainda sofre pela falta de grandes espaços para ser exibido e discutido. Diferente do Festival Brasileiro de Cinema Universitário (FCBU) que, desde 1995, e atualmente em sua décima sexta edição, propõe debate e discussão sobre o pensamento cinematográfico universitário no âmbito nacional, o primeiro festival universitário aqui na Bahia só se concretizou em 2010, pelas mãos de Max Bittencourt, professor e coordenador do núcleo na Unijorge para a produção de eventos sobre cinema e audiovisual (a Unijorge também possui um curso de produção audiovisual, sendo mais voltado para a prática e enquadrado como um curso superior de tecnologia).

Logo, não se nega o poder cinematográfico da Bahia, seu passado influente sobre grandes cineastas e suas ideologias. Mas a recém-descoberta dessa linha de produção vinda das universidades ainda não mostrou todo seu potencial e suas necessidades, afinal, são apenas dez anos desde o surgimento do primeiro curso superior por aqui. Período de experimentação e invenção, de exercícios de criatividade. Mas ainda um pequeno passo na descoberta do poder social desse cinema jovem e desafiador em território baiano.

Bruno Machado é estudante do quinto período de cinema da UFRB e compõe o conjunto de bolsistas do PET-CINEMA, orientado pela professora Rita Lima.

REFERÊNCIAS

Cinema Universitário: Cinema Universitário, labirinto de perspectivas. Texto presente na revista digital, da edição de 2009, do Festival Perro Loco. http://www.perroloco.com.br/2009/arquivos/Revista_P3RRO_LOCO.pdf; Último acesso em 15 de Junho de 2011.

COELHO, Thiago Barboza de Oliveira. Walter da Silveira e o Clube de Cinema da Bahia. http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19159.pdf; Último acesso em 10 de Junho de 2011.

SETARO, André. As Inconstâncias de um cinema que se diz Baiano. http://www.cinecachoeira.com.br/2010/11/as-inconstancias-de-um-cinema-que-se-quer-baiano/; Último acesso em 15 de Junho de 2011.

SETARO, André. Em entrevista. Cachoeira, Bahia. 21 de Maio de 2011

UMBERTO, José. Em entrevista. Cachoeira, Bahia. 31 de Maio de 2011

OLIVEIRA, Cesar Fernando de. Em entrevista. Cachoeira, Bahia. 11 de Junho de 2011