DJALIOH

O DIA EM QUE FLAUBERT LEU GILBERTO FREYRE

Por Guilherme Sarmiento

Assistir a estréia de Djalioh em Salvador, no Oi Futuro, em pleno teatro Castro Alves, me causou calafrios. Estava ali, sentado numa poltrona confortável, mas sentindo constantes incômodos conforme o filme expunha nossa herança cientificista, desafiando a platéia a encarar seus fantasmas bestiais através de uma tortuosa viagem estético-literária. Receava que alguém do movimento negro se levantasse da cadeira e, num ato de protesto, pedisse o desligamento imediato dos projetores. Ou que um membro da religião positivista brasileira, ao final da sessão, fizesse um longo discurso ressaltando a importância do darwinismo social para o entendimento das misérias mundiais. Mas o filme de Ricardo Miranda constrói labirintos, retendo o espectador numa estrutura que requer mais razão do que paixão para se sair dela.

Isto porque Djalioh não tem a pretensão de ser uma obra acabada. Comporta-se como um ensaio, ou seja, expõe-se o tempo todo como “leitura” ao invés de se fechar na linearidade de um ato dissimulado. Neste sentido, o labirinto em Djalioh está na sobreposição de camadas dadas pela execução do texto como cena. Três atores instalados em um chalé serrano, cercado pela umidade da floresta tropical, lêem Quidquid volueris, de Flaubert, deslocando o sentido e a inflexão do conto romântico até a contemporaneidade. Palavras arcaicas chocam-se em meio à visualidade e sonoridade digitais, compondo uma dimensão vertiginosa onde as formas não evoluem, mas se sobrepõem. Dentro do homem sobrevive o macaco, assim como dentro do cinema sobrevive a literatura e, numa espiral ainda mais profunda, dentro de ambas as artes, a oralidade. Nenhum sistema se exclui.

“Não gosto dos macacos e, no entanto, deveria gostar, pois eles me parecem uma imitação perfeita da natureza humana. Quando vejo esses animais, – não estou falando dos homens, – tenho a impressão de me ver num espelho de aumento: os mesmos sentimentos, os mesmos apetites brutais, um pouco menos de orgulho – e eis tudo”.

Assim se expressa o narrador do conto de Flaubert, numa de suas inúmeras reflexões sobre a bestialidade da natureza humana. Denominado como “estudos psicológicos”, Quidquid volueris adiantou em 20 anos as inquietações provocadas pelo livro a “A origem das espécies”, de Charles Darwin, quando as comparações entre o homem e o chipanzé tornaram-se correntes através do evolucionismo. Neste romantismo fantástico a caminho da ficção científica, longe ainda da psicanálise e da antropologia da virada do século XIX, o Brasil surge como a nação origem de um experimento genético hediondo. Um francês, de passagem pela América, induz sua escrava a copular com um macaco, e deste cruzamento inusitado nasce Djalioh. Flaubert, a exemplo de Mary Shelley, com seu Frankenstein, realiza uma contundente crítica social, evidenciando as oposições tão caras ao romantismo – máquina/organismo, razão/emoção, sociedade/natureza – através da caracterização das personagens Paul e Djalioh, criador e criatura. O primeiro, artificioso, racional e cínico; o segundo, selvagem, apaixonado e inocente.

No filme de Ricardo Miranda as oposições e aproximações românticas acabam diluídas pela opção de filmar os atores descaracterizados, simplesmente recitando o texto. Este posicionamento por vezes desdobra a atenção dos espectadores da realidade borbulhante das palavras para o deslocamento econômico, mas evidente, dos intérpretes e do aparato fílmico, fazendo com que a encenação crie seu próprio significado. Ou seja, o processo de realização torna-se um dos fundamentos da obra, procedimento ausente na peça literária de Flaubert.

Por isto, formalmente, Djalioh é anti-romântico. Trava um diálogo mais estreito com a corrente modernista – seja na literatura, seja no cinema –, realçando a dissolução entre as palavras e as coisas. Subsiste certa ironia velada e selvagem, antropofágica, no filme, quando se apropria da imagem um tanto cruel do Brasil realizada por Flaubert, devolvendo-a como um tratado sociológico cujo fim último é explicar nossa origem como nação. Afinal, Casa grande e senzala surgiu como resposta a todo um pensamento cientificista, que lamentava a mestiçagem e reputava aos negros o nosso atraso intelectual, assim como Quidquid volueris, com os recursos literários próprios de seu tempo, rebelou-se para defender a humanidade silenciosa e reprimida de seu protagonista.

Ao final da sessão de Djalioh senti que assistira a um filme ousado, ainda que sua austeridade dissesse o contrário. Flaubert e Freire uniam-se para refundar um país imaginário e universal, acolhidos pelo Teatro Castro Alves, irmanados pelas mãos amigas de Ricardo. Ninguém impediu a passagem do filme nestes tempos politicamente corretos. Graças a Irmã Dulce. O cinema tem destas coisas.

4 comentários sobre “DJALIOH

  1. Brenno

    Eu iria deixar dois comentários. Um a respeito do filme; outro a respeito da crítica feita aqui.

    Mas ocorre também a necessidade de registrar uma avaliação a esta outra lastimável crítica, ou melhor, aglomeração de palavras mal escritas, mal organizadas e completamente desprovidas de conteúdo significativo, indicada por Ângelo . Seu texto deixou-me com a sensação de que, mesmo que eu não soubesse nada sobre cinema, poderia seguir como um fiel arcaico a opinião de Guilherme Sarmiento e descartar a sua, baseado na simples máxima do efeito reflexivo natural de escrever-se bem a partir do momento em que se lê e observa-se também. Sinto que o autor do texto que sugeriu não passou por este processo. E, portanto, não teve nada mais a oferecer.

    Após este ‘anexo’ ao meu original intuito, deixo minha admiração tanto à obra, quanto às observações aqui registradas pelo talentoso crítico.

    Obrigado.