ALBERTO CAVALCANTI E O IDEAL DAS VANGUARDAS HISTÓRICAS EUROPÉIAS
Por Fernanda Aguiar Carneiro Martins
Na época das vanguardas históricas européias, é interessante e bastante curioso observar o quanto o ver se encontra no centro das preocupações estéticas de artistas e cineastas. A paixão pelo “cinema” – do grego Kinema, “movimento” – traz em si esse fator de novidade inerente a um novo modo de apreensão das imagens então projetadas no grande ecrã. Nesse contexto, precisamente, na segunda metade da década de 1920, o cinema de pesquisa e em avanço em seu tempo consolida o que se propunha a realizar desde o fim da grande guerra. Uma série de filmes põe em causa a intelectualização perceptiva do espaço, busca-se não mais reproduzir as concepções já estabelecidas, concernentes à organização do visível, à qual teria conhecido o seu apogeu com a perspectiva renascentista. Na verdade, desde o início da década de 1920, os cineastas interessam-se pelas tendências inovadoras, que mobilizam o domínio das artes plásticas.
As pesquisas formais desenvolvidas por pioneiros configuram soluções inéditas, criando obras fílmicas verdadeiros “casos limites”. Nesse sentido, O retorno à razão (Le retour à la raison, 1923), do fotógrafo Man Ray, Entreato (Entr’acte, 1924), do jornalista René Clair, inicialmente ator de cinema, Cinema anêmico (Anémic cinéma, 1926), do artista Marcel Duchamp, todos na origem de projetos radicais, vieram romper as normas estabelecidas. Já a partir de seus títulos intencionalmente irrelevantes, O Retorno à razão (1923) e Cinema anêmico (1926), demonstram um gosto pela improvisação e/ou pelo humor. Em Man Ray, trata-se de experimentar as variações luminosas em contato com corpos apreendidos sob a película fotossensível, enquanto em Marcel Duchamp o jogo de palavras do anagrama, compondo o título do filme, reaparece ao longo de inscrições em espirais sobre discos. Quanto a Entreato (1924), o movimento desacelerado do cortejo, que ocorre ao longo do filme, põe em jogo uma força física, introduzindo uma ordem do inconsciente.
Nesse contexto, o arquiteto cenógrafo Alberto Cavalcanti começou a dirigir seus próprios filmes, dando continuidade a suas pesquisas formais, marcadas pela vontade de conduzir o visível até as últimas consequências, em narrativas que se propunham a abolir o uso da língua, face às situações visuais criadas. Conforme o espírito vanguardista, encontramos em seus filmes uma abordagem experimental, por sua vez, heteróclita, que o conduz à realização de filmes diferentes. Realizações como Nada como o passar das horas (Rien que les heures,1926), À Deriva (En rade,1927) e A pequena Lilie (La p’tite Lilie, 1927) revelam uma grande liberdade de invenção. Nelas, o princípio da vanguarda narrativa faz descobrir novas formas de encadeamentos, inspiradas nos modelos musicais, a associação de imagens por intermédio de motivos, temas e ritmos desvelando um gosto cada vez mais acentuado por tudo o que escapa ao puramente representativo, mimético.
Em Alberto Cavalcanti, o caráter inovador de suas investigações se deve à paixão pela descoberta. Cavalcanti chegou a declarar: “O cinema é uma arte devido ao simples fato de possuir suas próprias leis estéticas, sua expressão própria”.[1] Interrogado sobre o realismo de seus filmes, afirmou: “… essa palavra realismo… me incomoda, pois tem algo de limitado demais, e, além de tudo, remete à literatura e à pintura. Realismo caso o queira, mas digamos então realismo fotográfico. E esse realismo permite todos os tipos de fantasias, de loucuras, de milagres, todos os caprichos fotográficos, todos os artifícios da imagem; todos os milagres da lente são permitidos. É o que eu tentei demonstrar com um filme como Nada como o passar das horas (1926) ou À Deriva (1927)”.[2]
Ademais, no seio da vanguarda, Nada como o passar das horas e À Deriva propõem uma reflexão sobre o pobre, o excluído. Eis a razão de Henri Poulaille incluir Alberto Cavalcanti na sua enquete do periódico Mon Ciné, “O cinema pode ser considerado um meio de expressão com um valor social?” (1928).[3] De todo modo, o aspecto documentário não se manifesta de modo a oferecer uma visão única, contínua e homogênea do “real”. As motivações de Nada como o passar das horas parecem se justificar, Cavalcanti defende o documentário sociológico, uma tendência talvez negligenciada se comparada à do documentário etnográfico, cuja existência remonta aos primórdios do cinema em “reportagens de viagem”, culminando com Nanook, o Esquimó (Nanook of the North, 1922), de Robert Flaherty. O cinema só evocava países longínquos, crepúsculos no Pacífico, tudo em harmonia, e ninguém imaginava que a cidade onde se vivia poderia ter interesse. Ora, eis o que Nada como o passar das horas põe em evidência, o que lhe confere imediatamente o aspecto de documento social, evocando o desemprego, a vida em bairros pobres, vinculado ainda à idéia de um fazer autoral.
Nada como o passar das horas: o documentário aliado a “todos os caprichos fotográficos”
Alberto Cavalcanti adquire notoriedade com Nada como o passar das horas (1926), sua segunda realização. A censura impôs restrições à exibição, o que ocasionou o fechamento temporário da sala de cinema parisiense Studio des Ursulines. Nada como o passar das horas (1926) inaugura as sinfonias urbanas, tendo como maiores expoentes Berlim, sinfonia de uma grande cidade (Berlin, die symphonie der grosstadt, 1927), de Walter Ruttmann, em seguida, O Homem com uma câmera (Chelovek s kinoapparatom, 1929), de Dziga Vertov. As três assim chamadas “sinfonias urbanas” se concentram num dia vivido numa grande cidade, (com exceção da obra de Vertov englobando três centros urbanos). No caso de Nada como o passar das horas, a ação se passa em Paris, enquanto que a do filme de Ruttmann, em Berlim tal como indicada no título. Em seu escrito, Dominique Noguez conclui que Nada como o passar das horas (1926) constitui um verdadeiro hino ao amor, tratando o destino de três mulheres, e possuindo em germe esta forma, que será ultrapassada no filme de Vertov, graças ao aspecto didático e de manifesto. Ora, no seu entender, não é senão o documentário de Ruttmann o que parece ser de uma exigência maior no que se refere ao gênero (ou melhor, subgênero) “sinfonias de cidades”, o encadeamento de planos pondo em relevo certos ritmos, cuja valorização do movimento suscita uma virtualidade musical.[4]
Na abertura de Nada como o passar das horas (1926), o intertítulo inicial anuncia que se trata de uma sequência de imagens sobre o tempo que passa e que ele (o filme) não pretende sintetizar nenhuma cidade. Desde então uma série de invenções figurativas e plásticas se manifestam: fumaças e jatos de água enquanto superfícies vibrantes, corpos enquanto silhuetas, apresentadas em meio à geometria da cidade, contrastes luminosos. A superposição de motivos e de linhas tal como as das ruas, de flores, de legumes e de lixos, de olhos reprodutíveis ao infinito, nos fazem descobrir um trabalho preciso da montagem. Uma influência eisensteiniana pode ser detectada à medida que um trabalho ideológico sobre o material filmado põe em jogo uma realidade menos neutra ou objetiva. Dito isso, o potencial do “olho-câmera” se faz igualmente presente, a lente captando o que o olho humano não poderia captar. Certas tomadas de vistas são feitas em locais em princípio sem interesse, ou seja, em lugares parisienses não turísticos. Vale lembrar, que Noureddine Ghali observa que um filme como O Encouraçado Potemkin (1925), de S. M. Eisenstein, foi estudado pela vanguarda francesa e, especialmente, por Alberto Cavalcanti.[5]
De maneira metódica, Nada como o passar das horas (1926) procede igualmente a apagamentos: a tela surge sendo recoberta manualmente de tinta branca, uma foto é rasgada, jatos de água (durante a lavagem das ruas) terminam ocupando todo o ecrã. Noutras palavras, tudo leva a crer que a superfície da imagem adquire um valor capital, a imagem sendo tematizada, o ver estando no centro das preocupações estéticas do filme. Vale salientar, que, nesse período histórico, o cinema devia aprender a gerar a sua herança fotográfica, eis porque datam dessa época concepções tais como as de “fisionomia” (Balázs) ou “fotogenia” (Delluc, Epstein). Assim sendo, uma pesquisa sobre os constituintes materiais do cinema e sua especificidade encontra-se em curso.
Doravante, a tríade Paris-Berlim-Moscou habitará para sempre a história da sétima arte. Na verdade, a idéia de filmar a cidade erigida como tema principal do filme havia sido anunciada no roteiro Dinâmica de uma grande cidade (Dynamique d’une grande ville, 1921), do húngaro László Moholy-Nagy, jamais transposto para o ecrã, mas de todo modo publicado na revista de vanguarda MA em 1924.[6] O repertório de obras fílmicas que celebram a cidade, com suas iluminações, seu ritmo e suas tragédias compreenderá todo um conjunto do gênero que, rejeitando a ficção, propõe-se a oferecer um aporte sobre o real. A segunda metade dos anos 1920, na França e no mundo, assistirá a um florescimento excepcional de documentários poéticos, etnográficos ou sociais, fornecendo um panorama de regiões e de países antes nunca explorados e isso até bem após a chegada do cinema falado. Exemplificam tal conjunto de filmes Estudos sobre Paris (Études sur Paris,1928), de André Sauvage, Marselha, velho porto (Marseille, vieux port,1929), de László Moholy-Nagy, A Propósito de Nice (À Propos de Nice, 1929), de Jean Vigo, em território francês. No exterior, Joris Ivens conferirá ares de nobreza ao documentário com A Chuva (Regen, 1929) e Luis Buñuel, com Terra sem pão (Les Hurdes, 1932).
De início olhar, em seguida, ver, o documentarista ensinará a surpreender valorizando tudo o que vibra e vive uma vida intensa em vastos espaços e entre os seres vivos. Face a essa geração de cineastas, Alain Virmaux e Odette Virmaux examinam que “(…) a passagem de um gênero a outro se faz facilmente. Não há renúncia a um modo de expressão, rumo a outro registro, porém fácil deslizamento. O documentarismo não constitui outro campo, outro território distinto da vanguarda; é de certa maneira a continuação”.[7] Eis onde Cavalcanti surge inscrito a exemplo de tantos outros cineastas. O ir e vir entre o documentário e a ficção é, pois, perfeitamente compreensível, Cavalcanti retornou à ficção com À Deriva (En rade,1927), esse filme sendo a transposição de uma novela do ator Philippe Hériat, que interpreta um dos personagens.
À Deriva e o “efeito close”
À Deriva (En rade,1927) representa a obra-prima de ficção de Cavalcanti do período mudo, aclamado pelos críticos (apesar de seu fracasso comercial), os quais o compararam a Assassinato em Marselha (Fièvre, 1921), de Louis Delluc, e a Coração fiel (Cœur fidèle,1923), de Jean Epstein, a história dos três filmes tendo lugar em Marselha e se concentrando no meio popular, das imediações do Velho Porto. Com efeito, Epstein e Cavalcanti põem em prática o objetivo almejado por Delluc, que devido a problemas financeiros teve de rodar seu filme nos estúdios Gaumont, em Paris, ambos Epstein e Cavalcanti filmando em Marselha. Se a intriga de Assassinato em Marselha (Fièvre, 1921) e a de Coração fiel (Cœur fidèle, 1923) se inspiram num fait divers, a de À Deriva (En rade, 1927) é igualmente simples e banal, todavia surge marcada pelo tom inacabado da narrativa, desenvolvida em torno do percurso de um jovem homem que aspira a uma nova vida além mar, porém não leva seu projeto até o fim.
Em À Deriva (En rade,1927), o primeiro plano (o close ou ainda o extremo close) exerce um papel preponderante. Alia-se a esse tipo de plano (utilizado na maior parte para filmar rostos), o plano geral (ou o grande plano geral usado para filmar paisagens). Nesse sentido, convém perceber o tom afetivo, o caráter fisionômico ou ainda fotogênico que lhes são inerentes. Desde, então, rostos e paisagens se equivalem exprimindo a mais forte carga de afeto, de poesia e de mistério. Rostos e paisagens põem em jogo um estado da alma, ou a alma do mundo, a natureza sendo captada segundo um temperamento. É assim que o close institui um regime da visão, oferecendo-se enquanto componente de todas as imagens do filme.
Um processo de “rostificação” tende a impregnar seres e coisas. No início do filme, há uma sequência na qual o trabalhador das docas conta sua história – “uma história de naufrágio”, como o intertítulo diz. Fumaças, vapores, luminosidades acentuadas compõem os primeiros planos de rostos de modo a lhes conferir um aspecto líquido (o do trabalhador das docas que arrisca chorar e cujos olhos claros brilham), aéreo (o do “idiota”, o antigo marinheiro, quase sempre com o olhar fixado num além), luminosos (o da servente sob uma forte iluminação), nebuloso (o do senhor que fuma). Esses rostos são ainda intercambiáveis, assim os olhos claros da servente podem lhe imprimir um aspecto líquido, ou melhor, com os cabelos despenteados, um aspecto nebuloso. Na verdade, esses rostos fazem descobrir os seus “traços de rosticidade”, aptos a sugerir “uma série intensiva de afetos”, com a qual há a perda de seus contornos (bem delineados), ou ainda, de sua unidade”.[8]
Essa sequência e outras se manifestam como se, em Cavalcanti, a água, o ar e a luz se tornassem palpáveis, infinitamente presentes. Esses efeitos mágicos correspondem a uma definição da arte do visual: a pintura e em seguida a fotografia se obstinaram em produzi-los. Dito isso, voltando à sequência analisada logo acima, Cavalcanti parece introduzir em seu cinema problemáticas pertencentes, em princípio, aos pintores, buscando explorar o “extraordinário no ordinário”. Foi talvez se baseando nesses pressupostos que Henri Langlois identificou em Cavalcanti aspectos do século XVIII. Langlois detecta o brio, a graça e o refinamento de seus filmes, já existentes numa sociedade que ainda consegue sobreviver. Por sua vez, Claude Beylie sublinha como algo recorrente na obra do cineasta a magia dos portos, presente em À Deriva (En rade, 1927). Antonio Rodrigues e Alain Marchand observam uma predileção do cineasta pelo cinema mudo (Griffith, Chaplin, Stroheim, Eisenstein e Flaherty). Enfim, para Cavalcanti, “a essência do cinema era silenciosa, apesar de suas pesquisas extremamente inteligentes com o som”.[9] Com efeito, Cavalcanti se revela como sendo um cineasta na imagem.
No caso de À Deriva (En rade, 1927), Alberto Cavalcanti explora a ambiência dos cenários naturais ou construídos em estúdio, as cenas de exteriores sendo rodadas em Marselha, com tomadas das imediações do Velho Porto, sem contar as ruas dos bairros pobres da cidade. Vale a pena se ater À Deriva, obra central da filmografia cavalcantiana do período, pois esse filme reconsidera uma forma de ver, apta a revolucionar nossos hábitos da percepção. Em geral, apesar da presença de planos gerais, esse filme favorece a elaboração de um regime da visão, fundado no poder inventivo da apreensão do detalhe, e isso mesmo no decorrer de tomadas de exteriores e de interiores:
“Uma floresta de mastros, um casco de navio, um recanto do cais e alguns degraus perpendiculares numa bacia, um bar sórdido, uma proprietária diferente, nos é suficiente ver, na tela de cinema, sob um ângulo conveniente.” [10]
Via o ato de “ver, na tela de cinema, sob um ângulo conveniente”, examinamos uma intimidade ao captar paisagens e corpos humanos, mesmo em momentos nos quais a câmera conserva uma distância em relação ao objeto filmado. Se a função do quadro define a imagem, delimitando-a, quer dizer, define o que é imagem e o que não o é (o que está fora da imagem), ela concerne igualmente à sua organização formal. Eis porque a atividade do quadro e dos enquadramentos, jamais limite neutro, permite criar uma composição dinâmica em À Deriva (En rade, 1927). Os planos sendo apreendidos, além de seu atributo técnico, próprios à sua escala, os enquadramentos encontram-se eles também livres da ideia de fixidez, eles nos fazem descobrir o equilíbrio ou o desequilíbrio de linhas, de massas, de volumes, de corpos, de luzes e de profundidades, em uma palavra, o valor plástico da imagem.
Alberto Cavalcanti nos dá conta de suas descobertas no término da sua filmagem de À Deriva (En rade, 1927): “Exatamente no momento em que a filmagem estava concluída, notamos, com agradável surpresa, que no primeiro, dos dois cenários principais, linhas verticais prevaleciam (um restaurante de marinheiros) e de personagens masculinos, trabalhadores das docas e marinheiros, em torno de uma única mulher, uma garçonete; e no segundo, linhas horizontais predominavam, englobando apenas mulheres em torno do único personagem masculino (uma lavanderia, onde o jovem homem habitava, filho da proprietária)”. [11] O diretor chama a atenção para um jogo existente entre linhas verticais e horizontais, ao longo da figuração dos personagens masculinos e femininos. De fato, tudo o que conduz à superfície da imagem é posto em evidência, por exemplo, essa oposição entre as linhas, que tende a dirigir nosso olhar para a disposição do cenário, empregado para representar o imaginário dos personagens, mais precisamente, a oposição que se estabelece no desenrolar da intriga entre os personagens masculinos e femininos.
Serguei M. Eisenstein sugere um modo de leitura do filme, segundo um esquema, criado a partir dos três tamanhos de plano, a saber, o plano de conjunto, o plano médio e o close. O estudioso postula três possibilidades de ler um filme, dependendo da postura assumida pelo espectador. Abordaremos aqui precisamente a “visão em close”. O cineasta teórico argumenta: « Não apenas é possível supor um terceiro modo – deve [sic] haver esse terceiro modo” uma vez que “com o auxílio do close (o detalhe aumentado), o espectador mergulha nas realidades as mais íntimas do ecrã: palpitar de cílios, mão trêmula, dedos tocando a renda de um punho… Tudo isso no momento requerido põe em destaque o personagem sob o viés das pequenas coisas que afinal são dissimuladas ou desvendadas.” [12] Na verdade, na época, os escritos sobre a formação de um diferente regime da visão proliferam, dedicando-se entre outros ao fenômeno do close. Sob essa perspectiva, Jean Epstein rejeita “os pontos de vista recomendados” e defende “os detalhes naturais, indígenas e fotogênicos”. Epstein afirma: “O close modifica o drama pela impressão de proximidade. A dor está ao alcance da mão. Se eu estiro o braço, eu te toco, intimidade. “[13] O cineasta francês sublinha não apenas o aporte que constitui a instalação de um ponto de vista inédito sobre a cena filmada, mas também as consequências do poder de ampliação do close sobre o entendimento da narrativa fílmica”. “A impressão de proximidade” que ele provoca no espectador se deve à construção de um espaço próximo e orgânico, do qual emana, notadamente, um componente emocional suscitado pelo drama “ao alcance da mão”, o que nos leva a uma dimensão táctil inerente ao ver.
Os primeiros planos e closes de rostos são muito recorrentes no filme. Nesse domínio, a reflexão segundo a qual “não há close de rosto, o rosto é ele próprio close, o close é em si próprio rosto e todos os dois são o afeto, a imagem-afeto” merece atenção.[14] Quando um rosto ocupa toda a superfície do ecrã uma comunhão, a saber, uma intimidade com o espectador, parece se instaurar. Filmar um rosto implica em si ver de perto, pouco importando a distância entre o rosto e a câmera. Close e rosto se confundindo e se identificando podem impregnar os planos e as sequências do filme inteiro. “O close é, pois, essa técnica da arte cujo uso, a serviço da fisionomia, da fotogenia, do rosto, fez uma condição artística, ou melhor, um modo de visão. Com efeito, trata-se menos de fabricar closes do que ver de perto, o que significa ter uma visão total da superfície do ecrã, e até mesmo uma visão totalitária. “[15] Noutras palavras, existe um “efeito close” que predomina quando se assiste ao filme de Cavalcanti, no qual mesmo os planos gerais ou médios se encontram investidos pelo regime de uma visão próxima.
Eis a técnica que À Deriva (En rade, 1927) experimenta criando uma maneira particular de construir o espaço, eu repito, na qual mesmo a utilização de planos gerais e de grandes planos gerais se incorpora a esse “efeito close”. Precisamente, o recurso ao grande plano geral reforça a presença de um ambiente de total desequilíbrio, assim várias vezes os personagens aparecem infinitamente pequenos na imagem, a priori não reconhecíveis, ao contrário dos cenários, notadamente do porto infinitamente grande, onde esses personagens se situam. Aliás, se a visão longínqua se oferece enquanto visão próxima, isso acontece porque a superfície da imagem se encontra em evidência, em seus jogos de oposições existentes entre o infinitamente pequeno (os personagens) e o infinitamente grande (o cenário do porto). No filme, desde a apresentação dos personagens, constata-se tal procedimento: os planos iniciais introduzem a mãe em sua casa e o filho no cais do porto. As aparições do antigo marinheiro tanto no porto quanto em sua tentativa de partir exemplificam igualmente tal ocorrência. Observa-se ainda o uso do grande plano geral, em tomadas da servente e da mãe no porto e, ao final do filme, quando a mãe olha seu filho, pela fresta da cortina, a câmera em travelling para trás dá lugar a uma apreensão do espaço da lavanderia, quando se vê a protagonista novamente infinitamente pequena no cenário. Os planos de conjunto, quanto a eles, nos mostram as diferenças de tamanho dos personagens, a saber, os contrastes entre eles como, por exemplo, o trabalhador das docas em relação à servente. Constatamos tal desproporção de tamanho entre os personagens, na sequência do filme, quando num gesto de ciúme (do antigo marinheiro), o trabalhador das docas toma a servente em seus braços de maneira brusca. Há ainda imagens que nos fazem notar tal desproporação entre a proprietária do restaurante (do cais do porto) e a servente.
Quanto ao recurso da profundidade de campo, ainda aqui um esquema de oposição faz descobrir que toda distância ou nenhuma é abolida. Esse esquema sugere assim a presença do universo do sonho, de um mundo em total desequilíbrio. Mais uma vez, o trabalho sobre o espaço chama a atenção para a superfície da imagem, notadamente nas passagens que concernem ao porto, as tomadas dos navios os mostram inteiros e de longe ou muito próximos, o casco ocupando às vezes toda uma parte do quadro. Na sequência de tentativa de partida do antigo marinheiro, tal visão do espaço em profundidade é exemplar, tomadas do horizonte acentuam as dimensões do vale; em certos planos, os rochedos também ocupam toda uma parte do quadro, fazendo redescobrir a superfície da imagem.
Conclusão
Possuindo uma estrutura em mosaico e em série ao mesmo tempo, Nada como o passar das horas combina elementos que são aos poucos apresentados pelos intertítulos – “… primeiros trabalhos”, “Cada um cumpre sua tarefa”, “À noite, o trabalho termina. Agora é o tempo do repouso e dos prazeres…” – encadeados em grupos. A partir de tal referência ao tempo, a ação estando compreendida num dia qualquer de uma grande cidade, o espectador pode se perguntar: além do tempo, quais temas o filme focaliza? Certamente, inserido no contexto ao qual pertence, Nada como o passar das horas comporta uma preocupação estética concernente à arte de filmar, uma importância fundamental sendo dada à imagem. Ao que parece, essa exaltação em torno do ato de filmar, pondo em jogo o poder da câmera, demonstra que a imagem fílmica e até mesmo as que a precedem, em suas vertentes pictural e fotográfica, surgem tematizadas. É interessante observar, nesse sentido, a presença de pinturas de Paris (por exemplo, de Chagal, de Delaunay) e fotografias (lembrando as de Eugène Atget), no decorrer do filme, o curioso é que essas reproduções tendem a “desaparecer” uma vez estando inseridas no novo meio de expressão. Ademais, no início de Nada como o passar das horas, o plano de ricos descendo uma escadaria aparece congelado e se transforma numa fotografia sendo rasgada, seus pequenos pedaços compõem em seguida uma nova imagem. No final, um split-screen atualiza as atividades diferentes num conjunto de imagens onde há uma mãe e sua criança, o filme terminando com o tráfego em sobre-impressão.
Nada como o passar das horas apresenta um conjunto de recursos técnico-estilísticos, afetando a aparência da imagem fotográfica (sobre-impressões, superexposições), além de certos efeitos ligados à composição, dando lugar a aproximações máximas e distanciamentos excessivos. Em meio a esses traços formais, o emprego do close se revela crucial, instituindo um regime da visão concentrado na apreensão do detalhe, investindo tudo o que vem integrar a “superfície crítica” do filme.[16] Nesse sentido, ao longo do filme, em intervalos irregulares, closes de um relógio indicam o tempo que passa. Alberto Cavalcanti reúne em seus três filmes vanguardistas os mais conhecidos do período – Nada como o passar das horas (1926), À Deriva (1927) e A pequena Lilie (1927) – inclinações distintas, a saber, documentário e ficção, no caso de A pequena Lilie a magia se vinculando a um investimento musical presente no agenciamento criativo dos intertítulos, concebidos enquanto partituras. Tais inclinações variadas revelam-se, no entanto, suscetíveis de manter um diálogo, graças ao experimentalismo da imagem.
Fernanda Aguiar Carneiro Martins é Doutora em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais, pela Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle. Coordena a pesquisa “O Som no Cinema segundo Alberto Cavalcanti” (CNPq) na Graduação em Cinema e Audiovisual da UFRB. É autora do capítulo “Impressionismo Francês”, publicado no livro História do Cinema Mundial.
NOTAS
[1] apud DEBU-BRIDEL, J. “Visite à Alberto Cavalcanti”, La Revue Fédéraliste : l´état du cinéma, Lyon/Bordeaux/Paris, 1927, p. 19.
[2] apud DEBU-BRIDEL, Ibid. Op. Cit. , 1927, p. 19.
[3] POULAILLE, Henry. « Une grande Enquête de Mon Ciné : Le Cinéma peut-il être considéré comme une valeur sociale ? », Mon Ciné, 7ème Année, mai/octobre 1928.
[4] O autor se esforça para desvendar as influências encontradas na origem das três realizações. As fontes seriam variadas. Além das provenientes da literatura tais como Baudelaire, Joyce, dos futuristas até Jules Romains, as picturais de Monet e de Toulouse-Lautrec, há os filmes Manhatta (1921) de Paul Strand e Charles Sheeler, Moscou (Moskva) de M. Kaufman, irmão de Vertov, Paris Adormecida (Paris qui dort,1924) e Entreato (Entr’acte, 1924), de René Clair, Ménilmontant (Ménilmontant,1924) de D. Kirsanov, e até mesmo o roteiro de Dinâmica da grande cidade (Dynamique de la grande ville) de László Moholy-Nagy, publicado em 1924. (NOGUEZ, Dominique. Éloge du Cinéma expérimental, Paris : Éds. Paris Expérimental, 1999, pp. 63-73).
[5] GHALI, Nouredinne. L’Avant-garde cinématographique en France dans les années vingt – idées, conceptions, théories, Paris : Éds. Paris Expérimental, 1995, p. 51.
[6] VIRMAUX, Alain, VIRMAUX, Odette. « Documentarisme et Avant-Garde », BRENEZ Nicole, LEBRAT, Christian (org.). Jeune, dure et pure! une histoire du cinéma d´avant-garde et expérimental en France, Paris/Milano: Cinémathèque Française/Mazzota, 2001, p. 105.
[7] VIRMAUX, Alain, VIRMAUX, Odette. « Documentarisme et Avant-Garde », BRENEZ Nicole, LEBRAT, Christian. Ibid (org.). Op. Cit., 2001, p. 105.
[8] DELEUZE, Gilles. Cinéma I. L’Image-mouvement (1983), Paris: Les Éditions de Minuit, 1999, p. 127. Nessa época, o pintor André Derain, amigo do cineasta, com quem ele tinha o hábito de conversar sobre arte, teve o projeto de realizar um filme incluindo apenas imagens de rostos. Sobre André Derain, Man Ray escreveu em sua autobiografia: “Ele tinha um projeto de filme e me pediu para o ajudar. Haveria, para contar a história, apenas closes de cabeças. Contratamos um técnico para nos ajudar a resolver certos problemas ; eu expliquei que evitaríamos as técnicas habituais de filmagem e mesmo de revelação; Derain me deu carta branca: eu podia empregar como quisesse os métodos que eu havia experimentado em fotografia. Derain faria apenas o roteiro e nos ajudaria a obter dos atores as expressões dramáticas que, por si só, contariam toda a história. Após discussões intermináveis, o perito desaprovou nosso projeto… Eu lhe lembrava que só havia sido contratado enquanto conselheiro técnico. Ele terminou declarando que o que nós queríamos fazer era impossível. Derain abandonou meu projeto, declarando que para o perito tudo era impossível” (RAY, Man. Autoportrait, trad. Anne Guérin, Arles, Actes Sud, 1998, p.292.)
[9] RODRIGUES Antonio, MARCHAND Alain. “Alberto Cavalcanti: an ´Extraordinary Ordinary Man´”, Griffithiana – Journal of Film History, nº 11-18, october, 1997, p. 193.
[10] AMUNATEGUI, Francisco. « LES ÉCRANS : En Rade (Cavalcanti) », La Revue Nouvelle, nº 37, décembre 1927, p. 82.
[11] CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade, Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957, p. 141.
[12] EISENSTEIN, S. M. « La Vision en gros plan », Cahiers du Cinéma, Paris, nº 232, 1971, p. 14.
[13] EPSTEIN, Jean. “Grossissement”, Revue Belge du Cinéma : « Gros Plan », Belgique, n°10, 1984-85, p. 35.
[14] O período do livro é o seguinte: “Quanto ao rosto ele próprio, não se dirá que o close o trata, lhe faça sofrer um tratamento qualquer: não há close de rosto, o rosto é em si próprio close, o close é em si mesmo rosto, e todos os dois são o afeto, a imagem-afeto.” DELEUZE, Gilles. Cinéma 1. L’Image-mouvement (1983), Paris: Les Éditions de Minuit, 1999, p. 126.
[15] AUMONT, Jacques. Du Visage au cinéma, Paris: Cahiers du Cinéma/ Éditions de l´Étoile, 1992, p. 92.
[16] A expressão “superfície crítica” é retomada de David Pellecuer. (PELLECUER, David. “Rien que les heures, Tout de l´Humanité“ In. BRENEZ Nicole, LEBRAT, Christian (org.). Ibid. Op. Cit., 2001, p. 117.)
BIBLIOGRAFIA
AUMONT, Jacques. Du Visage au cinéma, Paris: Éds. Cahiers du Cinéma, 1992.
BRENEZ, Nicole, LEBRAT, Christian (org.). Jeune, dure et pure! une histoire du cinéma d´avant-garde et expérimental en France, Paris/Milano: Cinémathèque Française/ Mazzota, 2001.
CAVALCANTI, Alberto. Filme e Realidade, Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1957.
DELEUZE, Gilles. Cinéma I. L’Image-mouvement (1983), Paris: Les Éditions de Minuit, 1999.
GHALI, Nouredinne. L’Avant-garde cinématographique en France dans les années vingt – idées, conceptions, théories, Paris : Paris Expérimental, 1995.
NOGUEZ, Dominique. Éloge du Cinéma Expérimental, Paris: Éds. Paris Expérimental, 1999.
RAY, Man. Autoportrait, trad. Anne Guérin, Arles: Éds. Actes Sud, 1998.