UMA BREVE HISTÓRIA
Por Simplício Neto
Este percurso do filme de curta-metragem no Brasil guarda um aspecto de paráfrase de três obras canônicas, fundamentais para o que Jean-Claude Bernardet chamou de historiografia clássica do cinema brasileiro em seu livro homônimo. Neste, o autor questiona, entre outros aspectos do seu objeto, o processo de “periodização” da história de nosso cinema de longa-metragem. Algo proposto – com mais ou menos rigor – tanto por Introdução ao cinema brasileiro, de Alex Viany, quanto pelo Panorama do Cinema Brasileiro, de Paulo Emilio Salles Gomes (BERNARDET, 1995). Esta nada exaustiva paráfrase que se segue agora nasce menos do desafio de emular ou superar – quem dera! – o estilo dos mestres, e mais da curiosidade pessoal em detectar alguma comparação e paralelismo útil e, quiçá, agradável, com a história dos nossos longas, já mais conhecida.
A periodização histórica e o paralelismo, por exemplo, com a historiografia do longa-metragem parece não ter sido tentada com frequência no caso de nossos curtas. Salvo honrosas exceções, como a de Miriam Alencar, em O cinema em festivais e os caminhos do curta-metragem no Brasil, e a empreendida por Oswaldo Caldeira, Sergio Sanz e Manfredo Caldas, em Contribuição à História do Curta-metragem Brasileiro, a dita historiografia clássica, como mostra Bernardet, é de fato a historiografia do longa de ficção, apesar da presença constante dos documentários e dos de diversos formatos fílmicos no nosso “Cinema dos Primórdios”. Se esta historiografia é cheia de lacunas assumidas, a situação, no caso dos curtas, pode ser ainda mais obscura. Por isso desde já me desculpo pelas inevitáveis e possíveis imprecisões.
Na introdução ao livro citado de Bernardet, realizada por Eduardo Peñuela Cañizal, somos lembrados que “a periodização é, no fundo, um método clássico de escrever a história do cinema”, pois ela “se fundamenta num certo paralelismo entre a história do cinema e grandes eventos da história geral do século XX” (CAÑIZAL, Eduardo In BERNARDET, 1995, p. 9). Viany também nos introduz a uma periodização, a da produção de longas-metragens no Brasil. Caldeira, Sergio Sanz e Manfredo Caldas contribuem para outra, a dos curtas. Certo tom geral de humildade, que também acolho, se justifica pelas dificuldades de acesso tanto a documentos, quanto aos próprios filmes. Coisas de nossa vida cultural, maldição de nossos acervos, situações de pesquisa vividas por eles, por mim e por quem continuar nessa seara.
1. Uma introdução panorâmica
Bernardet acha curiosa a metáfora que brota da periodização inaugural dos nossos longas, a de Alex Viany, aquela que compara o cinema brasileiro com um ser humano, que nasce, vira criança numa infância nada “risonha e franca”, e cresce até quando “o rapazinho se fez homem”. Se há correlação com o processo de amadurecimento humano, no caso do curta, faz-se por conta do reconhecimento de sua especificidade como formato e da procura por seus espaços de exibição, a partir dos anos 30, de seu esforço como expressão autoral, a partir dos anos 60, e de seu potencial comercial e de entretenimento, a partir dos anos 80. Os periodizadores como Viany, e mesmo Paulo Emilio – nos aponta Bernardet –, preocupam-se com a ideia das origens do cinema, a la George Sadoul. Para adequar essa ideia ao contexto nacional, privilegiam a história da produção de filmes e não de sua exibição, um empreendimento mais árduo e intermitente em nossas terras. Este texto assume o paralelismo, mas se pauta pelas marcações históricas encontradas no circuito exibidor. O que parece mais indicado, exatamente por que a própria noção do que é um curta-metragem está condicionada ao seu espaço de circulação, como veremos.
Por conta dessa escolha não comento, portanto, os curtas antes de 1930, porque nessa fase é difícil precisar suas características. Como colocam Hernani Heffner, Luiz Felipe Miranda e Fernão Ramos no verbete sobre curta-metragem de sua Enciclopédia do Cinema Brasileiro, “no período silencioso, não existem as definições de curta, media, e longa-metragem, os filmes são definidos em sua metragem por partes” (RAMOS, MIRANDA, 2004, pp. 160-164). Um panorama definindo períodos de tempo com datação mais precisa, nos moldes do panorama de Paulo Emilio, que divide nossa produção de longas em cinco “épocas”, começaria, a nosso ver, na regulamentação da exibição do então chamado “complemento nacional”, nos anos 1930, definição primeira, que imporá um determinado formato temporal, um estilo estético e um circuito de exibição. Aqui começa a primeira “época” de nosso curta.
2. O complemento nacional
Getúlio Vargas chega ao poder com a Revolução de 1930, e com ele se abre espaço para as reivindicações de grupos que compartilhavam uma visão nacionalista, incluindo a ideia de universalização do ensino num Brasil ainda muito agrário e analfabeto. O entusiasmo com o cinema como ferramenta auxiliar nesse processo aparece nos discursos de Vargas, que se rodeia de intelectuais orientados pelo programa modernista-nacionalista, como o etnólogo entusiasta dos novos meios de comunicação de massa Roquette Pinto, pioneiro do nosso rádio, e membro da comissão encarregada de inaugurar nossa legislação cinematográfica. Um Decreto-Lei de 1932 cria uma “taxa cinematográfica para educação popular”, tirando do longa estrangeiro os recursos para a produção de curtas brasileiros de cunho educacional. Interferindo o Governo na exibição, o Ministério da Educação e Saúde passa a “fixar a proporção da metragem dos filmes nacionais a serem obrigatoriamente incluídos na programação de cada mês”. Ou seja, reconhece-se o espaço do filme de longa-metragem estrangeiro, mas se prevê a exibição obrigatória do filme curto nacional classificado como educativo no programa das salas de cinema, além, claro, da série de projetores comprados para a rede pública de ensino. O governo assume-se produtor de curtas criando, em 1936, o Instituto Nacional de Cinema Educativo. O INCE terá Roquette Pinto no comando, e seu relatório de 1942 afirma já ter a instituição produzido duzentos curtas “escolares, de 16 mm, silenciosos e sonoros, destinados a circular em escolas e institutos de cultura”, e “populares, sonoros, de 35 mm, encaminhados para o circuito das casas de exibição pública de todo o país”. (SIMIS, 2008, pp. 25-35)
O INCE contrata vários diretores para dar vazão a essa demanda, destacando-se o mineiro Humberto Mauro que, não conseguindo “viabilizar-se no instável cenário da primeira década do cinema sonoro”, e “apesar da escassa experiência no filme natural, que desdenhava em favor do posado”, torna-se “a câmera didática de Vargas” fazendo 357 filmes para o INCE até sua aposentadoria (LABAKI, 2006, pp. 39-40).
É a fase de afirmação do tal “complemento nacional”, primeira encarnação de nosso curta-metragem, espaço reservado ao didatismo, à não-ficção, à brasilidade e ao financiamento estatal, deixando o espaço “inverso”, do entretenimento, da narrativa ficcional, da novidade internacional e do investimento capitalista visando o lucro comercial, ao longa estrangeiro. Estas primeiras marcas serão sentidas por décadas. O INCE dividirá o espaço “complementar” na exibição com os departamentos de “atualidades”, que ajudaram muito a receita de estúdios como Cinédia e Atlântida. Nesse campo de produção de curtas-metragens, segundo Ramos, Heffner e Miranda, “o espaço de tempo entre 1932 e 1970 é dominado pelo cinejornal e pelo documentário, sendo raros os filmes de ficção”. Esta corrente consagrará nomes como o de Primo Carbonari, nos Cinejornais, Jean Manzon, nos institucionais laudatórios, além do de Humberto Mauro nos curtas educativos.
“O cineasta mineiro Humberto Mauro realiza centenas de documentário, filmando, no entanto, poucos curtas de ficção, entre eles, O apólogo (1939), em co-direção com Roquette Pinto, baseado no conto homônimo de Machado de Assis, Meus oito anos (1956) e A velha a fiar (1964)”. (RAMOS, MIRANDA, 2004, pp. 160-164)
O interessante é que Mauro encontra ambiente para a realização de curtas ficcionais mais por volta de 1950 e 1960. A meu ver, tal guinada é representativa, menos de uma abertura governamental para a ficção, e mais da busca do mineiro – que será chamado de primeiro cineasta autoral brasileiro pela geração de Glauber Rocha – por uma expressão pessoal, naquele mar de complementos didáticos sem personalidade. Isso coincide com o fato de que a partir de meados de 1950 uma nova geração de cineastas abre caminho para um empenho mais autoral, voltado pra as preocupações estéticas do chamado cinema modernas, advindas do pós-guerra e de movimentos como o Neorealismo italiano, a Nouvelle Vague e o Cinema-Verdade, franceses, e o Cinema Direto, norte-americano, dentre outros. Fazendo uso da ficção –ou não –, apelando para o apoio estatal e institucional – ou não –, um novo tipo de curta se impõe no Brasil graças a premiações em festivais internacionais, influenciando, inclusive, a estética da produção de longas. Começa uma segunda época do curta nacional.
3. Cinema Novo e Cinema Amador
Jean Claude Bernardet, na introdução de outro clássico seu, Cineastas e Imagens do Povo, fala dessa mudança de rumo no sentido da autoralidade:
“Até os anos 50, o curta-metragem brasileiro, embora importante – cinejornal, filmes turísticos ou oficiais, números musicais, etc. – e revelador de diversos aspectos da sociedade e da produção cinematográfica, não é um cinema crítico. É no decorrer da década de 50 e com os primeiros filmes de curta-metragem do Cinema Novo que essa forma de cinema deixa de ser a sala de espera do longa-metragem ou a compensação de quem não consegue produções mais importantes. Nele se cruzam problemas da sociedade brasileira e da linguagem cinematográfica”. (BERNARDET, 1985, p. 11)
Jovens encantados, cinéfilos aguerridos partem para os curtas como expressão pessoal e estética, embebidos de sua própria visão sócio-política sem finalidades propriamente didáticas. Em 1957, Luis Paulino dos Santos filma Um dia na rampa e, em 1958, fotografa O Pátio, de Glauber Rocha, curta que o influente crítico Walter da Silveira, guru do então nascente cinema baiano, elogia como onírico e surrealista. No ano de 1959, no Estado do Rio, Joaquim Pedro de Andrade e Paulo César Saraceni fazem seus primeiros filmes curtos. Daquele temos O poeta do Castelo e o Mestre de Apipucos, sobre Manuel Bandeira e Gilberto Freire, respectivamente. De Saraceni temos o “pioneiro” Arraial do Cabo, sobre uma colônia de pescadores de Cabo Frio, considerado marco na filmografia cinemanovista, pois seria “o primeiro documentário no qual se sente com intensidade a atração pela imagem do povo, por sua fisionomia”, onde “já encontramos maduras as sementes dos dilemas e da estética cinemanovista”. (RAMOS, 1990, pp. 333-337).
Na Paraíba, no ano seguinte, Linduarte Noronha realiza Aruanda. Ele teria chegado ao Instituto Nacional do Cinema Educativo com o roteiro embaixo do braço e recebido do próprio Humberto Mauro permissão para levar uma câmera emprestada direto para o seu estado. O filme também foi montado nas dependências do INCE, o que explica também seu caráter representativo de uma fase de transição. Assim como Arraial do Cabo, patrocinado pelo Museu Nacional do Rio de Janeiro, eles ainda guardam muitas afinidades com o modo didático clássico, ainda um pouco tímidos diante das técnicas mais radicais do Cinema Direto e do Cinema Verdade, mas inovando em outros aspectos – como a fotografia “estourada” e o comentário “esquerdista” – frente à tradição dos documentários do INCE, muito mais “envernizados” (RAMOS, 1990, pp. 333-337).
A seguir, em 1961, Joaquim Pedro, no Rio, parte para a ficção com seu Couro de gato. Curta que ganha vários prêmios em 1962, como o de Obberhausen, na Alemanha, e Sestri-Levante, Itália, sendo um dos primeiros sucessos internacionais do Cinema Novo. Alimenta-se, assim, a esperança de realização de curtas autorais e independentes de ficção, fugindo do padrão do “Complemento Nacional”. 1962 vê o verdadeiro surto de curtas de ficção que compõe o longa Cinco vezes favela, produzido pelo CPC da UNE. Couro de gato, já consagrado, é ali acoplado a Um favelado, de Marcos Farias; Zé da cachorra, de Miguel Borges; Escola de samba, alegria de viver, de Carlos Diegues; e a Pedreira de São Diogo, de Leon Hirszman. É também a tentativa de cavar um espaço na exibição pública, só que no lugar prestigiado reservado ao programa principal. Como diz o já citado verbete da Enciclopédia do Cinema Brasileiro, “um expediente que surge na década de 60 (também na Europa), é juntar alguns curtas ficcionais num longa, o que barateia sensivelmente a produção”, expediente utilizado mais à frente até pelos cineastas do Cinema Marginal, como em As libertinas (1967), de Antonio Lima, Carlos Reichenbach e João Callegaro, e pela Pornochanchada, cujas produtoras “utilizam-se desse recurso em seus filmes de estréia” (RAMOS, MIRANDA, 20024, PP 160-164).
1962 é também o ano em que a Bienal de São Paulo apresenta “Uma Homenagem ao Cinema Brasileiro”, com curadoria de Jean-Claude Bernardet, que exibe num mesmo programa Arraial do Cabo, Aruanda e os documentários curtos de estréia de Joaquim Pedro. Glauber Rocha partirá, orientado por sua estética da fome, em busca da representação da “terra remota e ensolarada” mostrada em Aruanda, escrevendo que o documentário brasileiro, de fato, nasce com ele. Ainda neste mesmo ano-marco de 1962, a Divisão de Assuntos Culturais do Itamaraty e a UNESCO organizam no Rio de Janeiro um seminário de introdução ao documentário. Ministrado pelo reconhecido documentarista sueco Ame Sucksdorff, que chega ao Brasil trazendo dois gravadores Nagra para uma geração ansiosa por entrar em contato com as novas técnicas do Cinema Verdade e do Cinema Direto (RAMOS, 2004, pp.83-85). Destaca-se entre os curtas realizados pela turma cinemanovista, que saiu das aulas do mestre sueco para filmar nas ruas, Maioria absoluta (1964), de Leon Hirszman, cujo Nagra fora operado por Arnaldo Jabor, que também operou o equipamento em Integração racial (1964), a investida de Saraceni neste campo do verité.
Por essa altura, em São Paulo, forma-se outro grupo de curtas-metragistas capitaneado pelo fotógrafo Thomas Farkas, que, entre setembro de 1964 e março de 1965, produz quatro documentários curtos sobre a realidade brasileira, aventura conhecida coma Caravana Farkas. Viramundo, de Geraldo Sarno, Memórias do Cangaço, de Paulo Gil Soares, e Subterrâneos do Futebol, de Maurice Capovilla, tentam dar conta das grandes questões nacionais. Também almejam ocupar a tela grande, sendo compilados em um mesmo longa, ainda nos anos 60, chamado Brasil verdade.
Essa década vê surgir as primeiras escolas de cinema por aqui. Bernardet, Paulo Emilio, Nelson Pereira e outros se unem no projeto de construção do primeiro curso de cinema em nível de graduação no Brasil. A UnB abraça o projeto, que em pouco tempo é abortado pelo endurecimento do regime militar. Nelson Pereira encontra abrigo em Niterói, fundando o curso de cinema da UFF; e Jean-Claude e seu mentor voltam à São Paulo, onde criam um curso de cinema na ECA-USP. O filme curto será, por motivos financeiros e pedagógicos, o formato de escolha das produções escolares. Uma nova geração influenciada pelo Cinema Novo quer filmar e mostrar seu trabalho, e encontra espaço nos festivais dedicados ao chamado então Cinema Amador, específico para curtas. Numa época de crescente endurecimento político, servirão de abrigo para a militância estética e política.
O Jornal do Brasil, do Rio, “era um dos poucos órgãos de imprensa que se preocupava com o cinema brasileiro”, e durante a década promoveu “uma série de reportagens, mostrando o que estava se passando no setor”. O “JB”, que “sempre manteve um calendário de promoções culturais”, patrocina o 1o. Festival Brasileiro de Cinema Amador, “que nasceu com caráter local”, em 1965, tendo como tema o quarto centenário da ex-capital federal:
“A ele concorreram filmes de 16 mm e 8 mm, mudos e sonoros, em preto e branco e cor (…) exibidos no Cinema Paissandu, que se transformara no ponto de encontro de cineastas, candidatos a carreira, críticos e toda uma juventude interessada no novo movimento em processo. Era a “geração Paissandu” (…) que aplaudia o festival (…) Era finalmente a grande chance de realizar um filme e mostrá-lo; era a oportunidade de ser visto, analisado e criticado pelos cineastas-ídolos do Cinema Novo”. (ALENCAR, 1978, p. 97)
Filmes como Olho por olho, de Andrea Tonacci, e Documentário, de Rogério Sganzerla, estreiam nesse festival. Já em 1969 ele conta com 165 curtas inscritos de todo pais, ganhando caráter nacional e firmando uma concorrência acirrada pelos prêmios. Tendo ajudado certa profissionalização da controversa carreira de curta-metragista autoral, com seu sucesso e crescimento continuado, o festival muda de nome em 1971, assumindo e formalizando a expressão curta-metragem em vez de cinema amador. E começa uma nova época.
4. Militância e experimentação
O Instituto Nacional de Cinema, órgão estatal que sobreveio ao INCE, encampa o Festival do JB em 1971. Assim nasce O Festival Brasileiro de Curta Metragem, agora dedicado ao 35 mm e aberto aos profissionais. A mudança de nome, junto com abertura à bitola profissional, é proposta pelo INCE, pois as leis brasileiras deixavam “o 16 mm inteiramente a descoberto e sem qualquer possibilidade de comercialização”. O documentarista Fernando Duarte – coautor, junto com Wladimir Carvalho, de “Vestibular 70”, segundo lugar na premiação desse primeiro FBCM – expressou na ocasião o espírito que nortearia os curta-metragistas da década, cobrando “medidas concretas”, que garantam “a divulgação e comercialização desses filmes”, até “intervindo mesmo no mercado exibidor”. (DUARTE in ALENCAR, 1978, p. 108).
Ao longo desses anos, o FBCM carioca, junto com as Jornadas Brasileiras de Curtas-Metragens, iniciadas em 1972, em Salvador, tornou-se o espaço privilegiado de discussão estética e política para uma nova geração. Esta se via um tanto alijada dos processos de fomento oficiais via Embrafilme. Isto tanto pelo corporativismo da instituição – dominada ainda pela geração dos anos 60 –, quanto pelo interesse geral desses novos realizadores pela experimentação de linguagem e pela luta contra a Ditadura Militar. Os experimentais e provocadores Semi-ótica, de Antônio Manuel, Alma no Olho, de Zózimo Bulbul, e Congo, de Arthur Omar, são marcos do período.
Roberto Moura comenta a preocupação com a linguagem, que era comum a toda essa geração de cineastas dos anos 70, iniciando-se no cinema no período de maior censura do regime militar:
“Algumas discussões eram centrais nessa movimentação de jovens realizadores, como a do caráter ilusionista da linguagem do cinema ficcional e a busca de respostas a isso, questão plantada pelos “movimentos” do Cinema Novo e radicalizada pelo Udigrudi e ainda profundamente influente, como referência dos recém-chegados. Assim, essa inquietação frente às linguagens estabelecidas é um aspecto central” (MOURA, 2003, pp. 80-84).
O associativismo, forjado aí na luta política por espaço estético, gera a Associação Brasileira de Documentaristas. Fundado em 1973, durante a segunda Jornada Baiana, o órgão – mesmo com este nome! – agregava os curtas-metragistas em geral, mesmo os ficcionistas. Prova de como ainda se confundia facilmente a ideia de curta com a de documentário. Uma herança persistente da era do “Complemento Nacional”, reforçada, em parte, pelo documentarismo militante que acompanharia a explosão das grandes greves no ABC paulista do final da década, em filmes curtas como Greve!, de João Batista de Andrade, e Porto de Santos, de Aloysio Raulino. Tal autor desta pérola do experimentalismo politizado da época foi, ele próprio, um dos presidentes da ABD.
No Rio, curtas como Sai dessa Exu!, de Roberto Moura, e Rocinha 77, de Sergio Peo, também são frutos dessa tendência à cooperação no fomento ao curta-metragem como alternativa “frente a limitação de recursos e a urgência de testemunhar cinematograficamente aqueles anos de chumbo” (MOURA, 2003, pp. 80-84).
“A apresentação dos filmes em festivais amadores e depois profissionais de curta-metragem, a criação da ABD e a luta até a regulamentação da lei, conduziriam o setor a seu momento de maior produtividade, quando esta entra em vigor, o que acontece no final da década de 70, início dos anos 80, quando é fundada no Rio por 45 realizadores a CORCINA – Cooperativa dos Realizadores Cinematográficos Autônomos” (MOURA, 2003, pp. 80-84).
O grande legado da ABD será a chamada Lei do Curta, um dispositivo legal que regulou de vez a exibição do formato, ficcional, experimental, documenta nas salas do circuito comercial do país. Tal luta chegou até 1979, quando uma assembleia no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, selou um acordo entre a ABD e os exibidores. Uma nova resolução do CONCINE, órgão legislativo da Embrafilme, resultou desse acordo e estendeu a obrigatoriedade de exibição, de curtas antes dos longas-metragens estrangeiros, em todo o país (CAETANO, 2006). Começava mais uma época.
5. O “sistema do curta-metragem” e a “Primavera do Curta”.
O começo da década seguinte seria marcado pelas denúncias da ABD contra exibidores que estariam distorcendo a lei, produzindo eles próprios alguns curtas de baixa qualidade, voltando o publico contra o formato e sua presença nas salas comerciais. De 1984 a 1987, resoluções seguidas do Concine vão instituindo o chamado “sistema do curta metragem”. Um júri composto por gente indicada pela ABD, pela Embrafilme, pelos sindicatos dos exibidores e produtores, e até por intelectuais pesquisadores de cinema, passa a selecionar os curtas aptos à exibição, como garantia de qualidade. Consolida-se um fundo com vistas ao fomento dos curtas, capitalizado por um percentual da renda das sessões. A segunda metade da década de 80 será então lembrada como o período de melhor funcionamento deste sistema, sendo chamada a “Primavera do Curta” (CAETANO, 2006).
O fato irônico, mas inevitável, será outra geração, diferente daquela do curta politizado e/ou experimental, que colherá os frutos dessa “Primavera”. Até porque sua pujança deve-se, claro, não apenas ao espaço criado pelo sistema, mas, sobretudo, pela tendência que os curtas dessa época apresentaram de um diálogo maior com o cinema ficcional e de gênero, garantindo uma boa recepção do público. Houve também uma boa entrada nos festivais, mesmo naqueles mais focados na exibição de longa-metragem, como Gramado e Brasília, muito por conta do fim do FBCM ainda em 1977.
1987 é o ano da criação da Casa de Cinema de Porto Alegre, nascida da união de onze realizadores gaúchos, como Jorge Furtado, Giba Assis Brasil e Carlos Gerbase, que vinham se destacando nesse processo de renovação estilística do curta brasileiro, junto com os realizadores paulistas afinados com uma nova estética chamada pejorativamente, por vezes, de “publicitária”, ao se apoiar em elementos de composição do cinema comercial, e no emprego de técnicos tarimbados pelo mercado de TV de São Paulo.
Em 1989, o curta Ilha das flores, de Jorge Furtado, vence o Festival de Berlim e é eleito pela crítica européia um dos 100 mais importantes curtas-metragens do século XX, a verdadeira sagração da “primavera do curta”. E, claro, tal sagração não caiu “como um raio em céu azul”, feito aquela famosa metáfora do 18 Brumário, de Marx. Para Ramos, Miranda e Heffner, há indícios de mudança de paradigmas já na virada dos anos 70 para os 80, quando “curtas paulistas flertam com a ficção”, destacando Trigresa (1978), Disaster Movie (1979), Maria da Luz (1981) e Diversões solitárias (1983), de Wilson de Barros”; além de A estória de Clara Crocodilo (1981), de Cristina Santeiro; Gaviões (1982), de André Klotzel. É nessa virada de década também que os gaúchos, que fundariam depois a Casa de Cinema, passam das experiências com o Super 8 e o longa ficcional – caso do seminal Deu pra ti, anos 70 – para a filmagem de curtas em 16 mm e 35 mm, como Temporal(1984) e O dia em que Dorival encarou a guarda (1986), ambos de Jorge Furtado e José Pedro Goulart (RAMOS, MIRANDA, 20024, pp. 160-164). Tal processo se cristaliza ao longo da década, portanto, em paralelo às conquistas da Lei do Curta.
Ilha das flores encarnaria justamente os sinais mais significativos de mudança, como a critica da suposta objetividade e autoridade da linguagem documental então praticada, a intertextualidade e a paródia dos estilos consagrados. A mesma empreitada de A garota das telas (1988), de Cao Hamburger, Frankestein Punk (1986), de Cao e Eliana Fonseca, e A revolta dos carnudos. Filmes de boa recepção popular e crítica. Mas esse bem sucedido “sistema do curta-metragem” acaba em 1990 com chegada ao poder de Fernando Collor de Mello e da ideologia anti-estatizante que acaba com Embrafilmes, Concines e afins. Uma nova época se inicia.
6. Mecenato e festivalização
Paradoxalmente, se o início da década de 90 é marcado pela extinção da Embrafilme, da Lei do Curta e de uma verdadeira derrocada na produção de longas nacionais, é também o nascedouro de dois grandes festivais de curtas. O Festival Internacional de Curtas de São Paulo, iniciado em 1990, e seu correlato carioca, o Curta Cinema, surgido um ano depois, tornaram-se os mais amplos espaços de celebração, critica e divulgação do formato até os dias de hoje. Eles nascem das paixões pelo curta, que brotaram da ainda então reverberante “Primavera” da década anterior. Os primeiros curtas exibidos guardam muito daquela estética, e um Jorge Furtado ainda mantém sua presença no novo espaço, graças a obras como Esta não é a sua vida, de 1991, e A matadeira, de 1994, por exemplo.
Apesar das trevas vividas pelos cineastas brasileiros, os cursos de cinema públicos, que foram se inflando de alunos ao longo da paixão primaveril, oxigenam as primeiras edições desses festivais. Eles garantem a produção de curtas quando nem longas eram feitos. Os festivais citados nascem com a ambição de manter a aura de resistência tradicional do curta, e o primeiro Curta Cinema apresenta debates sobre as questões do formato, e sua terceira edição reserva dois programas para uma oportuna retrospectiva dos principais curtas dos anos 60 e 70, numa espécie de rito de afirmação da linhagem ameaçada pela Era Collor.
A variedade de programas de exibição apresentados pelos dois eventos, dando conta tanto da tradição do cinema de animação, experimental, documentário ou militante, quanto das experiências ficcionais e de gênero consagradas na “Primavera”, demonstram que as estratégias estéticas e narrativas visando à conquista de publico, também aí são celebradas e desejadas.
Para Ramos, Miranda e Heffner, em termos estéticos, “talvez a marca mais distintiva do período venha a ser um ligeiro arrefecimento da ficção e uma reavaliação da força poética do documentário”, como em Vala comum, de João Godoy, Socorro Nobre, de Walter Salles, pois “ressurge alguma preocupação social”, como no caso do curta Rota ABC, de Francisco Cesar Filho (RAMOS, MIRANDA, 2004, PP 160-164). Segundos os autores:
“Outro aspecto que se acentua claramente ao correr doas anos é a sofisticação dos filmes, com o uso das mais modernas tecnologias (…) Amplia-se a abordagem do afeto, do erotismo e dos relacionamentos amorosos. É o caso de todos de; Cartão vermelho, de Laiz Bodanski; Geraldo Voador, de Bruno Vianna. Continuam raras propostas mais agressivas ou experimentais, destacando-se Ave e Juvenília, ambos de Paulo Sacramento (…) . Esboça-se aqui e ali também certo retorno a elementos da cultura popular e rural, como em Nelson Sargento, de Estevão Ciavatta Pantoja; A árvore da miséria, de Marcus Villar; e Mr. Abracadabra, de José Araripe Jr. Por fim permanecem vigorosos traços como o intimismo e a paródia, especialmente na obra de José Roberto Torero, ( Amor!, Amores Possíveis e Bolo) e o humor caustico”. (RAMOS, MIRANDA, 2004, PP 160-164)
E novos subgêneros do curta firmam-se e ganham adeptos e detratores: do curta-piada, ao curta-portifólio. Um mapeamento da produção empreendido pelos dois grandes festivais, por exemplo, nos demonstra a cada ano a exuberância da criatividade fílmica na seara do curta, não cerceada pelas contingências de produção que afetam o longa comercial. Nota-se a preferência de muitos diretores já consagrados pelo formato, não necessariamente usado como mero trampolim inicial para começar uma carreira no cinema. Fato comprovado pelo surgimento de um programa no Curta Cinema dedicado aos “grandes diretores em pequenas doses”, mostrando que mesmo gente de sucesso no mundo dos filmes mais extensos sabe que o curta é, antes de tudo, uma fronteira estética a ser explorada, um formato cheio de especificidades. Há uma clara propensão do festival carioca, por exemplo, a uma curadoria temática, que fez história graças a programas com nomes como “Adolescer” e “Mundo Bizarro”.
Mas, já que o espaço do circuito comercial se fechou, nessa década começa-se a discutir as alternativas de financiamento e distribuição para fora das grandes telas. Assim, é nesse momento que os gaúchos da Casa de Cinema de POA apostam em coletâneas em VHS com seus curtas consagrados, distribuindo a fita nas videolocadoras então em plena expansão.
A alternativa, alias, surge com a derrocada de Collor e a afirmação do mecenato e das leis de incentivo na virada política para o poderio tucano, com a subida de Itamar Franco e FHC. A renuncia fiscal, além de alavancar a dita “retomada’ do cinema brasileiro – retomada de longas, óbvio – na segunda metade da década de 90, vai garantir o crescimento continuo dos dois grandes festivais, que podem agora se esparramar pelos espaços físicos erguidos pelas leis de incentivo. É a Era dos Centros Culturais, como os do Banco do Brasil e do Itaú. E, para além do Eixo Rio-São Paulo, o mecenato institucional proporciona diversas iniciativas regionais. Várias capitais brasileiras ganham sua próprio festival de curtas. A maioria é competitiva, gerando um verdadeiro “brasileirão” do curta-metragem.
A abertura para patrocínios forma também o ambiente para vários projetos alternativos de exibição, saindo pela estrada e percorrendo todo o país, exibindo curtas brasileiros em praças públicas e escolas, como o Cine Mambembe. E, novidade das novidades, em 1995 surge a Internet comercial. No mesmo ano da nossa Lei do Cabo, tendo a TV por assinatura finalmente chegando por aqui. O galo canta, e aos poucos passa a ser ouvido. Ele anuncia a nossa época atual.
7. Começa o século XXI
Aqui fechamos nosso texto de forma breve, pois não há outro jeito quando o desafio é falar do contemporâneo e do processo ainda sendo testemunhado, no caso. Entramos agora numa nova década ainda digerindo os ecos dos anos 2000. Aponto apenas sua especificidade, fechando meu esforço proposto de periodização das fases da vida, baseadas na exibição, do curta-metragem brasileiro. Julgando completa, assim, a introdução panorâmica possível.
A Internet forma todo um novo espaço de exibição para a produção de filmes curtos. Surge uma iniciativa de porte institucional, como o site Porta Curtas, patrocinado pela Petrobras, mãe provedora do grande Ciclo do Petróleo no cinema brasileiro. O Porta Curtas mostra aí uma outra vantagem dos bancos de dados online, a catalogação dos títulos e fichas técnicas dos milhares de curtas já feitos no Brasil, numa cinemateca acessível 24hs por dia. O site começa quando a tecnologia de webstreaming e a banda larga ainda engatinham, no início da década. Hoje ele concorre com uma miríade de espaços virtuais onde o próprio realizador pode controlar sem intermediários a exibição e divulgação de seu trabalho, como o Youtube e o Vmeo. Festivais apenas online surgem, como o Fluxus.
A noção de lançamento nacional ou internacional aí se perde. Em paralelo, acaba a fronteira entre cinema e vídeo, entre película e fita, com o cinema digital eletrônico das REDs e 7ds. Na web, o prestígio não esta na bitola de captação, se 16mm, miniDV ou HD, mas sim na quantidade de acessos e comentários. Onde se aufere seu publico, se brasileiro ou estrangeiro, e a reação deste em tempo real. Esteticamente, todas as referências e linguagens impedem qualquer pretensão de mapeamento de uma tendência única. Tudo flui nas linhas de fuga deste rizoma que é a rede mundial de computadores. Influenciando, retroalimentando a exibição nos espaços físicos que resistem, impactando, até via pirataria, a frequência tanto dos Multiplex quanto dos Centros Cultuais. Os festivais e premiações bem ou mal acabam se pautando agora por nomes que fizerem seu batismo de fogo nos embates da rede.
Fica aqui minha contribuição, na espera do que virá.
Simplício Neto é documentarista e pesquisador de cinema. Redator do Site de exibição de curta metragens “Porta Curtas Petrobras”. Mestre e Doutorando em Comunicação pela UFF, deu aula em seu departamento de Cinema e Video. Roteirista dos médias Dib (1997) e Neurópolis (2007). Diretor dos curtas Coruja (2001), Carioca era um Rio (2010) e do longa Onde a Coruja Dorme (2010). Roterista de programas educativos e culturais da TVE (Revista do Cinema Brasileiro), Futura (Via TV, Afinando a Língua e Cine Conhecimento), Multishow (Lugar Incomum) e TV Brasil (Arte com Sergio Britto). Trabalhou em quatro edições do Curta Cinema, duas no site do evento e duas no Comitê de Seleção Internacional.
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SIMPLICIO NETO