O HOMEM QUE NÃO DORMIA

Por Guilherme Sarmiento

A primeira vez que eu ouvi falar sobre o projeto O homem que não dormia, de Edgard Navarro, foi na residência de meu amigo André Sampaio, no Rio de Janeiro, há mais ou menos três anos atrás. Luiz Paulino dos Santos, quando baixava da Serra do Matutu, em Minas Gerais, hospedava-se na Gávea, na casa do cineasta carioca, e ali, em meio a uma conversa cheia de fantasmas e revelações, um dos fundadores do cinema novo me sussurrou mais este mistério, que só fez atiçar minha curiosidade. Desde então, vinha aguardando com ansiedade a estréia da película.

E, com certeza, este sentimento não era só meu. Na avant-première do filme, realizada no encerramento da Mostra Oi Futuro, no Teatro Castro Alves, a nova experiência cinematográfica de Edgard Navarro criou grandes expectativas. Lotou a sala principal, de 1200 lugares, tornando-se um evento cinematográfico marcante dentro do calendário cinematográfico baiano. Mas isto não quer dizer que O homem que não dormia seja um filme para o grande público. Muitos estranharam a sagrada escatologia do diretor de Superoutro e Eu me lembro.

O homem que não dormia tem como base a mitologia medieval do Judeu Errante, Ahasverus, condenado a errar eternamente pela face da Terra desde que negara ajuda a Cristo, empurrando-o no momento da Paixão. Pela blasfêmia, foi castigado a penar até o fim dos tempos. A lenda era cultuada entre os escritores românticos, virando, inclusive, poema no livro de estréia de Castro Alves, Espumas Flutuantes:

Sabes quem foi Ahasverus?… –

o precito,O mísero Judeu,

que tinha escrito

Na fronte o selo atroz!

Eterno Viajor de eterna senda…

Espantado a fugir de tenda em tenda,

Fugindo embalde à vingadora voz!

Edgard Navarro pega este tema popular e, como ele mesmo disse na estréia de O homem que não dormia, transforma-o num coquetel de referências que saem de Alan Kardec e chegam aos grandes nomes da psicanálise, Freud, Jung e Lacan. Com seu deboche natural e sua visão muito particular de sacralidade, onde os mucos e excrementos do corpo revelam-se líquidos batismais, o filme transforma as referências espíritas, tão em voga dentro da cinematografia brasileira recente, em um elemento de manifestação autoral, revelando novas possibilidades de representação do sagrado. Somente através do delírio poético, da desmesura, chega-se à revelação de dimensões que se abrem para a eternidade.

Além de seu viés espiritualista, reflexo das preocupações esotéricas do autor, o filme, por sua vertente poética, induz leituras alegóricas quando responsabiliza a alma vagante de um coronel despótico pela insônia das personagens. Em sua Macondo particular, uma pequena cidade da Chapada Diamantina, Navarro inventa um mundo onde passado e presente interpenetram-se de forma mágica para espelhar os males do Brasil. Andamos por cima da ossada de coronéis mal enterrados e parte de nossas insônias advém desta herança de crimes, de crueldades, que a história recente ainda não apagou.

Apesar do roteiro frágil, O homem que não dormia possui momentos memoráveis, de grande intensidade dramática, revigorando a inventividade do cinema brasileiro. A escolha de Luiz Paulino para o papel do viajante foi um sensível acerto de Navarro, por todas as referências de vida que enriquecem as possibilidades interpretativas da obra. Paulino trás a aura dos líderes religiosos e, como o Judeu Errante, arrasta atrás de si um episódio sempre lembrado em sua carreira de cineasta: o desentendimento com Glauber Rocha durante realização de Barravento. No documentário O estafeta, dirigido por André Sampaio, o próprio Paulino chamou sua relação com Glauber, a quem considera um irmão, de “kármica”. Junta-se ao cinemanovista uma trupe de atores que, apoiados no preparo de Marcondes Dourado, são a força motriz do filme.

Só se pode ter um sono tranqüilo após se enfrentar os próprios fantasmas e, com este filme, completados 32 anos de labuta, Edgard Navarro jogou na tela parte de seus pesadelos que, na verdade, representam um pouco de nosso inconsciente reprimido. Após a estréia, certamente, dormiu com a consciência tranqüila, deixando para a posteridade mais uma de suas aventuras espirituais.

 

 

Um comentário sobre “O HOMEM QUE NÃO DORMIA

  1. Eric

    Prezados,

    Assisti ao filme hoje e infelizmente minha avaliação é bem diferente… o que resta é um filme pretensioso, que anseia ser uma atualização de Glauber Rocha, mas que, na verdade, termina por ser tosco e beirando o ridículo. De bom, apenas a boa fotografia e algumas cenas muito pontuais que captam a beleza bruta da natureza. Em tudo o mais, um desperdício. Difícil chegar ao final da projeção – muitos desistem no início e no meio. Como destaques particularmente negativos, podemos apontar o roteiro e a montagem, fortíssimos candidatos a uma hipotética franboesa de ouro latina…