O MÁGICO E O DELEGADO

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Por Vonaldo Lopes

 

O realizador do filme O Mágico e o Delegado, (1983), Fernando Coni Campos (Conceição de Almeida, BA, 1933), poeta, artista plástico, e um homem, acima de tudo, de cinema, viveu sua infância e parte da adolescência em Castro Alves (cidade localizada nos extremos do recôncavo e início da caatinga), onde o pai, um médico, fora também prefeito. Lá já era frequentador do antigo cinema, mas logo se mudou para Salvador, onde estudou nos tradicionais Colégios Vieira e Maristas. Depois se mudou para São Paulo, onde fez artes plásticas e, finalmente, fixou-se no Rio de Janeiro. Participou de alguns salões de arte moderna, e chegou a trabalhar no escritório de Lúcio Costa.

Seu primeiro longa-metragem foi Luba – a morte em três tempos (1964). No mesmo ano, seu curta Brasília planejamento urbano foi premiado no XX Congresso de Arquitetura e Urbanismo, em Paris. Em 1968, Viagem ao fim do mundo ganha o Leopardo de Prata no Festival de Locarno, na Suíça. O filme, inspirado na obra Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, trazia a música tropicalista do jovem Caetano Veloso como trilha. Segue-se, então, O Homem e sua jaula, ainda inédito, e Sangue quente em tarde fria. Ambos de 1969. Em 1971, grava Uma nega chamada Tereza, com Jorge Benjor, usando conotações políticas, o que não agradou a ditadura.

O Mágico e o delegado foi seu último longa-metragem, marcando, assim, a volta a seu lugar de origem. Fernando une-se à Sani Filmes, de Oscar Santana, coprodutora do filme, que viria a ser o último realizado na Bahia até 2001, quando foi lançado Três histórias da Bahia. Também se cerca de nomes importantes, como o do fotógrafo Mário Carneiro, oriundo do Cinema Novo.

Em O Mágico e O Delegado, Fernando mostra todo seu talento de roteirista e diretor para contar a história de Dom Velasquez (Nelson Xavier), um ilusionista, e sua companheira, a dançarina e cantora Paloma (Tânia Alves). O casal chega numa pequena cidade do interior do Brasil e se depara com a truculência e o autoritarismo de um delegado, personagem de Luthero Luis.

O enredo de O Mágico e o delegado foi inspirado em uma breve passagem do romance Depois do ultimo trem, do gaúcho Josué Guimarães, e nas reminiscências da infância do próprio Fernando, em Castro Alves. Vale ressaltar que a cidade de Cachoeira também fez parte da infância do cineasta, daí se explica, no começo do filme, a ida para lá, onde Dom Velasquez realiza uma de suas primeiras façanhas, a hipnose do gerente do hotel, para em seguida partirem, pelo Rio Paraguassú, rumo à Castro Alves

A estreia do espetáculo de mágica e dança no antigo cinema é frustrada pela visita do delegado, que impõe uma pré-censura ao show. O mágico busca, então, seu público na feira livre, onde tudo ”pulsa” mais forte. Ali, encontramos todos os “personagens” das pequenas cidades, o bêbado, o louco, os repentistas e os artistas de rua, as prostitutas e a cafetina, as solteironas e as beatas, as donas de casa, enfim, todo o povo reunido. É o espaço perfeito para o mágico fabricar suas ilusões: a multiplicação dos alimentos e a gravidez da virgem. Os seus feitos, porém, não se sustentam e acabam revoltando a população. O delegado, então, prende-o. É importante situar o momento histórico em que o filme foi realizado, quando o milagre econômico, ou “O Milagre Brasileiro”, tão propagado pelo regime militar, caía por terra, e era necessária uma verdadeira mágica para sobreviver à recessão. Na sequência da feira livre, ele usa uma linguagem realista, documental, para retratar a época. Mas é mesmo o realismo fantástico que dá a tônica ao filme, as ilusões provocadas por Dom Velazquez dizem muito das ilusões que o próprio cinema produz. Entretanto, há uma pitada de sátira e humor, quando ouvimos os gemidos de gatos ao “sobrevoarmos” os telhados da cidade. Somos conduzidos, de uma forma muito natural, àquela cidade e à vida de sua gente. Algumas cenas, a princípio, parecem desconexas, mas são histórias paralelas, que se enquadram no conjunto da narrativa. O confronto das personagens principais, por si só, asseguraria a trama, mas ela vai além, e os relacionamentos familiares e sociais também são expostos.

O mágico Dom Velasquez e sua partner Paloma representam a anarquia, a fantasia, a alegria, a brincadeira, o lado mais lúdico da vida, aquilo que transgride a ordem, os padrões e o sistema estabelecido, que o delegado tanto defende. O filme mostra o confronto desses dois pólos, um constante jogo de poder, batalhas que se travam. Vemos a intolerância e a intransigência do delegado no trato com os habitantes do lugarejo, proclamando-se “a própria lei”, em contraponto ao modo solidário de viver do mágico que, ao ser detido, logo se torna um ídolo entre os companheiros de cela. A sequência dos fogos de artifício é uma das mais líricas do filme, juntamente com a surpreendente cena final. O confronto entre o mágico e o delegado, o discurso do mágico sobre o poder e as armas que cada um possui, a comparação entre a vara mágica e o revólver, é um dos ápices do enredo. Ali, o mágico tem a chance de sobrepujar o inimigo, mas não o faz por ser superior ao oponente. É, então, levado à solitária, de onde são vislumbrados banquetes e orgias, mas acaba mesmo morrendo de inanição. No entanto, sua maior fome parece ser a de liberdade.

O grande trunfo de Fernando é fazer de um filme leve e não ambicioso, um forte discurso sobre a fome, a solidão, os medos, a liberdade e, também, a violência e não violência. A leveza está na personalidade do mágico, sempre com uma postura nobre e quase sacerdotal, e mesmo nas cenas que poderiam soar vulgares, no entanto, são tratadas na dose certa.

Outro elemento marcante da obra é a música, seja nos números de Tânia Alves, em um resgate do repertório latino e de Carmen Miranda, na trilha original (destaque para a bela Onde moras, de Nelson Jacobina) ou na execução de mestres como Mozart, emoldurando a trama e a tornando envolvente.

A tentativa de Fernando Coni Campos, em fazer um cinema popular, ou seja, do povo para o povo, parece alcançar seu êxito em O Mágico e o delegado, mas seu longa anterior, “Ladrões de cinema (1977), (uma referência a Ladrões de bicicleta, de Vittorio De Sica), já apontava nessa direção. A história de um grupo de moradores de uma favela carioca, que rouba equipamentos dos gringos em pleno carnaval e resolve fazer seu próprio filme, é um dos roteiros mais festejados do cinema brasileiro. O Mágico e o delegado é um filme acessível, que agrada facilmente. É uma obra popular, artesanal, e não industrial.

Em 1983, triunfa no Festival de Brasília, levando três prêmios, melhor filme, melhor ator (Nelson Xavier) e melhor atriz coadjuvante (Maria Silva). Em 1984, é exibido no Festival de Cinema de Roterdam, na Holanda.

Fernando filmou também alguns documentários, em sua maioria, tendo as artes plásticas como tema, entre eles, Do Grotesco ao arabesco (1965), Tarsila, 50 anos de pintura (1969), Painel tiradentes, portinari (1975), A pintura de Cláudio Tozzi (1980). Champs, como era carinhosamente chamado pelos amigos, tinha a poesia e as artes como duas grandes paixões. Dizia que encontrou no Cinema uma maneira de conjugar essas duas formas de expressão, que tanto o interessavam. Para ele: “cinema não é só imagem, é imagem e som, e a palavra faz parte do universo fílmico, por isso precisa ser dita como discurso”.

Assistir a Mágico e o delegado é mergulhar no universo interiorano do Brasil, é um espetáculo mambembe, é uma viagem para algum lugar perdido da nossa própria memória. O filme é dedicado ao amigo Olney São Paulo – outro importante nome do cinema baiano –, e se encerra com uma frase do Padre Antonio Vieira, cada um vive como sonha.

Fernando morreu perto do Natal de 1989, assistindo o filme Escola de Sereias. Deixou o cinema brasileiro um pouco órfão, sobretudo se pensarmos sobre a sua contribuição e seu legado ao meio cinematográfico e artístico do país. Deixou também muita saudade! Saudade do poeta, do contador de histórias, saudade do mágico Dom Fernando.