Por Carlos Diegues
Mais que um parceiro de muitos filmes, Antonio Pitanga é um irmão que ocinema me deu.
Como não podia deixar de ser, meu amor por ele começou nas telas quando, antes de conhecê-lo, o vi no hoje injustamente esquecido, mas sempre extraordinário, Bahia de Todos os Santos, de Trigueirinho Neto, um dos filmes precursores daquilo que depois seria chamado de Cinema Novo.
Trigueirinho, grande cineasta vindo de São Paulo, o descobrira em Salvador, trabalhando nos Correios, e lhe dera um dos melhores papéis coadjuvantes de seu filme. Ele ainda assinava Antônio Sampaio, seu nome de batismo, embora começasse a ser conhecido por todos como Pitanga, o nome de seu personagem.
Dali, Glauber Rocha o trouxera para Barravento, primeiro filme de nosso maior cineasta, onde Antônio Sampaio ganhava o papel principal, um capoeirista anarquista, transgressor e revolucionário, vindo da cidade grande para agitar uma comunidade de pescadores conformistas e superticiosos.
Preparando a produção de meu primeiro longa-metragem, acompanhei a montagem de Barravento, comandada por Nelson Pereira dos Santos numa moviola do laboratório Líder, em Botafogo, Rio de Janeiro. Jamais me esquecerei do herói debaixo de um coqueiro, na praia de Buraquinho, a cantar o samba de Batatinha, quase um blue:
“Meu sofrimento ninguém vê
sou diplomado em matéria de sofrer”.
Decidi que ele seria o protagonista de Ganga Zumba, mesmo que ainda não o tivesse encontrado pessoalmente.
Com a ajuda de Glauber, contatei-o em Salvador e, pelo telefone mesmo, fechamos nosso acordo. Em maio de 1963, num fim de tarde outonal, recebi o jovem ator baiano, alegre e marrento, desembarcado de um pequeno avião de carreira, no modesto aeroporto de Campos, cidade do norte fluminense.
Poucos dias antes, já começáramos a filmar Ganga Zumba nas vizinhanças de Campos, em canaviais como os de Alagoas, minha terra, onde de fato se passara a história daqueles nossos heróis negros. Mas, na minha lembrança de hoje, essa filmagem só começara de fato a partir daquele primeiro dia de trabalho do protagonista, a carregar sobre os ombros feixes de cana-de-açúcar, cercado por Cartola, o lendário sambista da Mangueira, e Eliezer Gomes, o então celebrado Tião Medonho de Assalto ao trem pagador.
Na mesma semana, filmávamos o encontro de Antão com Cipriana, a primeira cena de amor entre o casal de escravos. Poucas vezes em minha vida de cineasta terei realizado uma cena de amor mais bela, sensual e comovente do que a do balé de corpos nas areias do rio Paraíba, onde rolavam nosso herói e a eterna Léa Garcia, uma atriz iluminada.
Vítimas de um produtor falido que tivera que nos abandonar no meio do caminho, voltamos às pressas para o Rio de Janeiro, onde terminamos Ganga Zumba na floresta da Tijuca, graças a Jarbas Barbosa que nos salvaria da catástrofe. Em regime de muita economia e sacrifícios, dividi com o ainda Antonio Sampaio minha casa e minha família, além de cama, roupas e refeições. Só não dividi com ele namoradas, coisa de que cuidou por sua própria conta, sensação masculina da praia carioca naquele inverno ensolarado.
Antes mesmo de concluir Ganga Zumba, começamos a criar juntos o segundo filme de nossa parceria, A grande cidade, onde seria novamente protagonista, fazendo o pícaro Calunga, ao lado de Annecy Rocha, vinda da Bahia como ele. A grande cidade seria o primeiro filme em que, por minha insistência, assinaria finalmente Antônio Pitanga, como já era chamado por amigos e admiradores.
Pitanga ainda fez comigo Quando o carnaval chegar, Joanna Francesa e Quilombo, tendo tido neste último um papel muito próximo ao de um co-diretor, por sua influência intelectual, política e artística na criação do filme, além de sua liderança junto à multidão de atores que trabalhou conosco. Entre um e outro desses filmes, escrevi para ele o roteiro de Na boca do mundo, primeira obra sob sua direção, realizada em Atafona, praia próxima de Campos, onde nos encontramos pela primeira vez.
Desde o início de sua carreira, a trajetória de Pitanga no cinema brasileiro se confundiu com a própria história do Cinema Novo. Além de seus trabalhos com Glauber Rocha, ele participou de vários outros filmes do movimento, tornando-se um rosto com ele identificado, como um retrato em sua carteira de identidade.
Cada vez sei menos o que é ser brasileiro, por sê-lo tanta coisa. Mas Antonio Pitanga é uma das sínteses de tudo quanto imagino possa servir à nossa diferença, à contribuição que podemos eventualmente dar à civilização humana. Ele transformou seus personagens no cinema brasileiro em uma antologia de sintomas daquilo que mais gostamos em nós mesmos.
Sem intelectualismo, mas com consciência do que fazia, Pitanga encontrou nas telas um jeito de cruzar capoeira e Brecht, Bahia e neorrealismo italiano, Belmondo e Jorge Amado, candomblé e Pietro Bardi, futebol e cultura. Nunca trabalhou longe do rico conflito entre intuição e conhecimento, esperteza e sinceridade, bom humor e generosidade, sensualidade e heroismo, eficiência e beleza. Uma espécie de arauto voluntário do que poderia ser o povo brasileiro.
Se tivéssemos que escolher um rosto para o cinema brasileiro, o de Antonio Pitanga seria certamente o mais forte candidato.
CD
Rio de Janeiro
24 junho 2011
Dia de São João