O ROTEIRO DE O ANJO NEGRO

Por Guilherme Sarmiento

Há mais ou menos quarenta anos, o cineasta e crítico José Umberto, numa noite de insônia e febre, deitou no papel um conjunto de imagens delirantes, fruto de dois anos de reflexões agora transformadas em sintomas de uma virose repentina. Tinha 19 anos quando escreveu seu longa de estréia: O anjo negro.

Entre 1968 e 1972, o autor realizava críticas cinematográficas diárias para o Jornal da Bahia. Assistir aos filmes e, logo em seguida, analisá-los para a publicação, deu ao jovem José Umberto a certeza de que toda a realização fílmica sustentava-se através de elaborações prévias de idéias, de conceitos. Provavam isto a Nouvelle Vague e suas lideranças, cujos talentos dividiam-se entre os textos publicados na Cahiers du cinéma e as películas exibidas nos festivais e salas de cinema. Enquanto escrevia para a afamada folha baiana, o cineasta ia amadurecendo o seu projeto de, um dia, oferecer ao público sua interpretação particular do Brasil através de texto, imagem e som.

Para levar o projeto até o fim, a experiência como crítico somou-se à formação acadêmica. Quando José Umberto começou a escrever O anjo negro, tinha acabado de concluir a licenciatura em Ciências Sociais pela UFBA. Lá entrou em contato com autores fundamentais para o entendimento da formação da sociedade brasileira, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr, dentre outras inspirações para a composição de suas personagens arquetípicas. Sua paixão pela antropologia, especialmente pelos estudos sobre a cultura afrobrasileira, fez com que conhecesse Mário Gusmão – o futuro protagonista de seu filme – em um curso sobre diáspora africana.

Para completar este mix de referências, temos o contexto da época. Inspirações aparentemente mais óbvias foram minimizadas, ou completamente descartadas, por José Umberto no momento de listar as influências diretas para a concepção do roteiro. Ele desconhecia a peça homônima de Nelson Rodrigues e, apesar do universo fílmico esbarrar diversas vezes em um humor trágico tipicamente rodrigueano, a presença do dramaturgo carioca não foi considerada na origem da ideia central do filme. A influência de Teorema, de Pasolini, apontada por muitos como a base dramatúrgica de O anjo negro, é igualmente desconsiderada. Elencar a obra dentro do movimento udigrudi baiano também trás certo desconforto para o autor.

Referências diretas e conscientes de O anjo negro, segundo as palavras do próprio José Umberto, foram, como dito anteriormente, as leituras dos sociólogos brasileiros. Isto fica bastante claro no modo como o autor constrói suas personagens no roteiro. Todos são concebidas a partir de uma tipologia sociológica, ou seja, para caracterizá-las, contou menos uma rigorosa constituição psicológica do que uma aderência alegórica, capaz de criar um microcosmos ilustrativo das transformações da sociedade patriarcal no âmbito da narrativa. Dentro desta perspectiva, Hércules, o juiz de futebol, representa o poder e, de certa forma, a indústria de massa; o rebelde Carlinhos, a revolução comportamental vinda da juventude; o velho Getúlio, a decadência do patriarcalismo baiano; Calunga, o anjo negro, as forças elementares provindas da senzala, reprimidas, que emergem na superfície do substrato social brasileiro para impor sua presença criadora.

Vemos também, mesmo quando atenuadas pelo universo rural, as referências tropicalistas presentes no roteiro, mesclando o tradicionalismo de uma temática brasileira com citações ao universo pop das histórias em quadrinhos e da cultura de massa. Igualmente confessadas pelo autor, as subversões construídas pela narrativa devem-se não somente à imersão no universo elementar dos orixás, mas ao boom do realismo fantástico latinoamericano chegado ao Brasil na época – leitura de nomes importantes desta corrente literária, como Gabriel Garcia Marquez, ajudaram a compor a atmosfera irreal e delirante de O anjo negro.

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O filme O anjo negro manteve-se fiel ao roteiro, destacando suas intenções alegóricas e as aprofundando ao nível da imagem, sobretudo na confecção dos figurinos e no uso da cor. Algumas sequências perderam um pouco da dramaticidade, como, por exemplo, o momento em que o Anjo Negro é atropelado por Hércules – no filme, a cena constrói-se de forma fragmentada, prejudicando o entendimento da ação. Também perdeu um pouco do impacto a transposição cênica do momento central do filme, onde a personagem de Mário Gusmão invade a casa burguesa, subvertendo a ordem patriarcal. Nem sempre se consegue transpor integralmente as idéias escritas para o suporte fílmico, ainda mais em uma obra de baixo orçamento. Houve um contratempo nas filmagens, forçando a conclusão da importante cena no período de uma única noite.

Enfim, para entender melhor o roteiro, nada melhor do que lê-lo e tirar suas próprias conclusões. Acesse-o clicando abaixo e boa leitura.

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3 comentários sobre “O ROTEIRO DE O ANJO NEGRO

  1. José Umberto Dias

    Querida Luisa,
    Sou o diretor do filme, José Umberto
    Você é filha da Eliana Tosta?
    Como tá ela?
    Meu telefone em Salvador/BA é 71- 32313549