ESPLENDOR E MALDIÇÃO EM MANHÃ CINZENTA[1]
Por Maria David Santos
“Eu sou um jóvem que tem inclinação invulgar para o cinema. Porém, como neste mundo aquilo que mais desejamos nos foge sempre da mão, eu luto com incríveis dificuldades para alcançar o meu objetivo” (Carta de Olney São Paulo para Alex Viany em 5 de outubro de 1956).
É bem verdade que a “inclinação invulgar” do escritor e cineasta baiano Olney Alberto São Paulo[2] para o cinema o acompanharia ao longo da vida e da trajetória que o marcará como um dos importantes símbolos culturais da cidade de Feira de Santana, ficando no imaginário local como aquele que colocou a cidade na tela do cinema e na política cinematográfica brasileira, com direito a homenagens em eventos locais, como o catálogo da “exposição de nomes da cidade”. No entanto, Olney também ficaria conhecido nos círculos de intelectuais e artistas, ou talvez ainda mais no imaginário cultural brasileiro, como o cineasta maldito do sertão.
Olney São Paulo aproximou-se de profissionais do cinema entre os anos de 1954/55, em Feira de Santana. E foi esta a ocasião em que o cineasta Alex Viany instalara-se na cidade para as filmagens de Die windrose (Rosa dos Ventos), escrito por Jorge Amado, com roteiro de Alberto Cavalcanti e Trigueirinho Neto. Em 1966, como prefaciador do único livro publicado A antevéspera e o canto do sol (1969), Alex Viany relembraria um pouco deste percurso e dos primeiros passos persistentes deste cineasta do sertão, ao mesmo tempo calado, maravilhado, curioso e tímido, na percepção do crítico e diretor brasileiro:
“[…] o mais apaixonado era um rapaz que não fizera dezenove anos e que já então procurava uma definição artística – ou mais precisamente cinematográfica – na imprensa e no rádio. Viera de Riachão de Jacuípe, estudara em Feira de Santana, estabelecera contatos com a gente da nova geração que, em Salvador, com Glauber Rocha à frente, começava a vislumbrar novos rumos para o cinema brasileiro” (Prefácio de Alex Viany no livro A antevépera e o canto do sol de Olney São Paulo)”.
Os contatos com Alex Viany ainda em Feira de Santana foram importantes na carreira de Olney, uma vez que ele pode ver como se fazia um filme na prática e que “o cinema não era um bicho de sete cabeças como […] pensava que fosse” [3]. Então, em 1956, Olney viria a estreiar as relações com a sétima arte com o curta-metragem Um crime na rua; trabalhou em Mandacaru Vermelho, de Nelson Pereira dos Santos, como assistente de direção, em 1962; também neste mesmo ano foi assistente em uma produção baiana chamada de O caipora; em 1964, estreia com o seu primeiro longa-metragem O grito da terra; produz os documentários O profeta de Feira de Santana (1971), Cachoeira, documento da história (1972), e Como nasce uma cidade (1973). A partir dessas experiências, Olney transfere-se para a cidade do Rio de Janeiro, em 1966, onde intensifica as suas atividades de cineasta. Como escritor, publica o seu único livro de contos e novelas A antevéspera e o canto do sol (1969), editado pela José Álvaro Editor. Ainda neste mesmo ano participou da Antologia 12 contistas da Bahia.
Após várias tentativas de fazer um segundo filme de longa-metragem, acabou surgindo o conhecido média-metragem Manhã cinzenta (1969), que toma por base um dos seus contos de mesmo nome, presente no livro A antevéspera e o canto do sol. Em entrevista a Francisco Alves dos Santos, do Diário Paraná, em 1975, Olney comenta sobre o fato de seu filme nunca ter sido exibido comercialmente por causa da proibição da censura e, no entanto, tornara-se a sua obra mais famosa:
“Bom, aí eu já estava morando no Rio. Vim pro Rio no final de 66, praticamente começo de 1967. Eu já tinha o roteiro escrito desde os tempos de Feira de Santana. No Rio, aproveitando a crise estudantial de 1968, eu tinha um bom material de produção para realizar o filme – o filme que jamais eu teria feito, porque não haveria condições de tramar toda aquela movimentação de gente, se não fossem os acontecimentos políticos de 1968”.[4]
A proposta inicial de Manhã Cinzenta era que viesse a compor um projeto de um filme com três histórias. Dois episódios seriam acrescentados, a saber, uma comédia e um cinema-verdade, além do já existente, que ficou como a versão final. No entanto, com a apreensão de Manhã Cinzenta e a censura, o projeto foi abandonado por Olney São Paulo, ficando apenas um filme de caráter independente que, embora ficasse inédito no Brasil, ganhou muita repercussão em outros países. Exemplo desse reconhecimento e da valorização foi a premiação recebida na Alemanha, bem como as participações em festivais de Cannes, em 1970; Cracóvia, na Polônia; Viña del Mar, no Chile; Pesaro, na Itália, e em Londres.
A censura sofrida pela cinematografia brasileira durante a ditadura militar, como bem explica a doutora em cinema Leonor Souza Pinto em seu artigo sobre os (Des)caminhos da censura no cinema brasileiro: os anos de ditadura, não está relacionada com a classificação etária, definição de horário ou programação. Na verdade, está relacionada à repressão das liberdades individuais, à negação dos direitos de livre expressão e à manipulação de informação e de vidas. Se o ato de fazer cinema no Brasil sempre foi uma tarefa difícil nas décadas anteriores a de 1960, agora, com a implantação do AI-5 (Ato institucional) em dezembro de 1968, os “cineastas passam por um verdadeiro sufoco, sofrem humilhações, vivem situações Kafkianas, ameaçadoras”[5].
O filme Manhã cinzenta não foi liberado pelo Serviço de Censura de Diversões Públicas, e teve a denúncia formalizada com base na ideia de que a película era altamente subversiva, pois trazia, segundo o entendimento deste órgão, uma mensagem que visava indispor o povo com as autoridades constituídas, especialmente contra os militares, segundo declaração do promotor Walter Wigderowitz, da terceira Auditoria do Exército do Rio de Janeiro. Olney Alberto São Paulo foi incurso na Lei de Segurança Nacional. Esta, por sua vez, dava amplos poderes ao Ministério da Justiça, no que diz respeito à apreensão de livros, jornais, revistas, boletins, panfletos, filmes, fotografias ou gravação de qualquer espécie, podendo ainda, se julgada necessária, a suspensão de impressões, gravações, filmagens ou apresentações, proibição de circulação, distribuição ou venda do material em questão.
Se a censura via no filme Manhã cinzenta um ato de subversão, inclusive no fato de as exibições terem sido realizadas às escondidas (apenas para pessoas mais próximas, como amigos, técnicos e artistas), para Olney seu filme era “um canto desesperado ao amor e à liberdade”, como declarava em entrevista ao jornal Última hora, em 26 de setembro de 1969, no Rio de Janeiro.
Para além dos aspectos literários e cinematográficos, havia também uma identificação com o Cinema Novo, ainda que “pelo menos culturalmente”, nas falas de Olney. Desde o final dos anos 1950, o movimento alterou as configurações do fazer cinema no país. Este mesmo cinema expressou uma relação direta com o momento político em filmes em que a voz do intelectual militante foi sobreposta à do profissional de cinema:
“O Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção, em nome da vida, da atualidade e da criação. (…) atualidade era a realidade brasileira, a vida era o engajamento ideológico, criação era buscar uma linguagem adequada às condições precárias e capaz de exprimir uma visão desalienadora, crítica, da experiência social”.[6]
A busca por esses ideais traduziu-se na “estética da fome”, ideais encabeçados por Glauber Rocha, em que a escassez de recursos técnicos acabou se transformando em força expressiva, fazendo com que o cineasta encontrasse a linguagem em sintonia com os seus temas. “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” era o lema de cineastas que, nos anos 60, se propuseram a realizar filmes de autor, baratos, com preocupações sociais enraizadas na cultura brasileira. Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos, Deus e o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, e Os fuzis, de Rui Guerra, pertencem à considerada primeira fase do movimento, concentrada na temática rural, que focaliza problemas básicos da sociedade brasileira, como a miséria dos camponeses nordestinos.
A segunda fase do Cinema Novo é compreendida pelos anos de 1965 e 1966. Durante esse período, o movimento foi dominado pelo novo contexto histórico, especificamente, o Golpe militar de 1964. As capitais estaduais, com seus dilemas, suas contradições e injustiças, passaram a ser o cenário principal das produções cinemanovistas. A abordagem centraliza-se na classe média urbana, como em A falecida, de Leon Hirzman. O desafio, de Paulo César Sarraceni, São Paulo S/A, do cineasta paulista Luís Sérgio Person, e A grande cidade, de Cacá Diegues.
A terceira e última fase do movimento aconteceu entre 1967 e 1969, e a sua principal característica foi a autocrítica, não apenas com relação à atuação dos intelectuais e da esquerda na história recente do país, mas do próprio Cinema Novo. Os diretores enfatizaram suas contradições e denunciaram o fracasso das utopias presentes na primeira fase do movimento. O filme mais representativo desse momento foi Terra em transe, de Glauber Rocha.
A partir do estudo de Leite (2005) sobre as três fases do Cinema Novo, o filme Manhã cinzenta enquadra-se em sua segunda fase. Trata-se de um média-metragem que focaliza o ambiente de repressão, onde estudantes e trabalhadores são presos e processados, segundo a lógica de personagens alegorizados a partir dos sistemas, como o nazismo, que servem de modelo ao narrador para contrapor civilização e barbárie no âmbito do projeto ocidental, o que de forma direta e indireta diz respeito à realidade social e política brasileira do período. A cena do julgamento de Alda, a protagonista, é emblemática dessa apropriação alegórica de um regime para denunciar outro, tão violento e insensato quanto o seu precedente:
“- Excelência! Existe um pormenor, Excelência! Não consta na ficha da moça que ela tenha sangue judeu!
– Sangue judeu?! Quem exigiria tão hedionda particularidade? Não! Não era preciso. Bastava somente uma coisa e isso já existia em todos: a cor! Aquilo seria um julgamento de cores. O requerimento do verde, o processo do amarelo, a apelação do lilás, a prorrogação do azul e sobretudo, acima de tudo, a condenação perpétua e irrecorrível do vermelho: – o matiz da guerra!” [7]
Segundo Simões, “o filme de Olney não chegou a ter existência real, mas serviu de prova física contra ele. O suficiente para levá-lo ao inferno”. O que parece ter sido o caminho para um ponto final na vida do artista se constitui aqui enquanto ponto de partida, uma vez que a morte prematura desse mártir do cinema brasileiro – assim denominado por Glauber Rocha em seu livro Revolução do cinema novo – é resultante das pressões políticas durante a ditadura militar no Brasil. Estas mesmas pressões não foram, positivamente, suficientes para apagar por completo da história cultural do país o legado deixado por Olney São Paulo. Mas é também verdade que “Olney continua sendo uma lacuna na historiografia da cultura brasileira” [8], como bem afirmou Carlos Alberto, em artigo publicado n’O Estado de São Paulo em 1998, por ocasião dos vinte anos de morte de Olney.
Em 15 de fevereiro de 1978, após três paradas cardíacas, Olney São Paulo definhou aos 41 anos, vítima de um câncer. Porém, como disse ele mesmo em um conto inacabado escrito em 1977: “A morte é a morte é a morte. A morte não é o fim da vida e, sim, antes e mais que tudo é a vida o princípio da morte”.
Maria David Santos é Mestranda em Literatura e Diversidade Cultural pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Bolsista FAPESB. E-mail: mariadavidsantos@yahoo.com.br.
NOTAS
[1] O trabalho aqui proposto tem suas discussões e debates ampliados no artigo de mesmo nome apresentado no III Seminário Nacional de Literatura e Cultura (SENALIC), da Universidade Federal de Sergipe, campus de São Cristóvão, em junho de 2011.
[2] Olney Alberto São Paulo nasceu em Riachão do Jacuípe em 7 de agosto de 1936, cidade encravada no sertão baiano e distante 72 Km de Feira de Santana. Em 1948, estudou no Colégio Santanópolis, instituição privada, cuja formação estava voltada para o ensino técnico em Feira de Santana, onde Olney fez o curso de contabilidade, vindo a se tornar depois um professor. É nessa instituição que ele cria uma companhia de teatro e um jornal cultural estudantil, atividades estas desenvolvidas e que mais tarde se tornariam o embrião dos ideais de vida que este futuro artista traçaria como história de vida até a sua morte prematura em 15 de fevereiro de 1978.
[3] SANTOS, “Olney São Paulo, na cinemateca em dezembro”. Diário do Paraná, 6 dez. 1975.
[4] SANTOS, op. cit., 1975.
[5] SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999, p. 120.
[6] XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001, p.120.
[7] SÃO PAULO, Olney Alberto. A antevéspera e o canto do sol – contos e novelas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1969.
[8] Artigo cedido pelo autor via e-mail para a composição da pesquisa em torno do escritor e cineasta baiano Olney Alberto São Paulo.
BIBLIOGRAFIA
HOLLANDA, Heloisa Buarque de; GONCALVES, Marcos Augusto. Cultura e participação nos anos 60. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
JOSE, Angela. Olney São Paulo e a peleja do cinema sertanejo: Quartet, 1999.
LEITE, Sidney Ferreira. Cinema brasileiro: das origens à retomada. 1 ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2005.
PINTO, Leonor E. Souza. “(Des)caminhos da censura no cinema brasileiro: os anos de ditadura”. Disponível em: <http://www.memoriacinebr.com.br/>.
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
_______. Revolução do cinema novo. Paulo: Cosac & Naify, 2004.
SÃO PAULO, Olney Alberto. A antevéspera e o canto do sol – contos e novelas. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1969.
_______. “Olney São Paulo, na cinemateca em dezembro”, entrevista a Francisco Alves dos santos. Diário do Paraná, 6 dez. 1975).
_______. “Olney define sua Manhã como um canto de amor e liberdade”, entrevista. Última Hora, Rio de Janeiro, 26 set. 1969.
_______. Manhã cinzenta. Brasil, 21min, P/B, 35mm, 1969. Roteiro, direção e produção. Câmera: José Carlos Avellar / Montagem: Luis Tanin / Gerente de produção: Jorge Dias / Assistentes: Sonélio Costa, Evaldo Falcão, Poty, Carlos Pinto / Dublagem: Echio Reis / Técnicos de som: Raimundo Granjeiro e Antonio Gomes / Sonoplastia: Geraldo José / Reportagem adicional: Equipe Herbert Richers S.A., TV Globo – canal 4 / Narração: Ricardo Cravo e Ivan Souza / Trabalho de Arte: Antonio Manoel e Newton Sá / Elenco: Sonélio Costa, Janete Chermont, Maria Helena Saldanha, Jorge Dias, Nestor Noya, Poty, Cláudio Paiva, Antonio Manoel, Paulo Neves, Carlos Pinto, Adnor Pitanga, Márcio Curi, Nagla, Tuna Espinheira, Paulo Sérgio e Violeta; em participações especiais: Flávio Moreira da Costa, Iberê Cavalcanti, Neville d’Almeida, Zena Félix / Produção: Santana Filmes S.A.
SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 1999.
XAVIER, Ismail. O cinema brasileiro moderno. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
Pingback: Departamento de Educação de Conceição do Coité» Blog Archive » 50 anos do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” é tema de seminário na Uneb Coité
Pingback: Manhã Cinzenta - 1969 - Nacional
Pingback: Um filme escondido da Ditadura por 25 anos | Zambukaki