Por Emerson Dias
Como filmar o outro sem dominá-lo nem reduzi-lo? Como dar conta da força de um combate, de uma reivindicação de justiça e de dignidade, da riqueza de uma cultura, da singularidade de uma prática, caricatura-las, sem trai-las com uma tradução turística ou publicitária?
Jean-Louis Comolli
Acercadacana foi exibido no terceiro dia da mostra competitiva do II CachoeiraDoc, dividindo sessão com Entre Vãos, de Luiza Caetano e Bicicletas de Nhanderu, de Ariel Ortega e Patrícia Ferreira. Acercadacana trata dos conflitos agrários entre os proprietários de usinas de etanol e comunidades tradicionais. O filme de Felipe Peres Calheiros tem como personagem central Maria Francisca, proprietária de um sítio, ao qual reside com sua família há décadas, e se vê ameaçada por uma empresa de etanol que cobiça o seu terreno. Um documentário bastante modesto e que tem como potência a urgência de um acontecimento.
Parafraseando o próprio Felipe, Acercadacana se torna peculiar por se oferecer ao encontro. Um filme que abdica dos roteiros e se realiza sob o risco do real, onde assistimos a mise-en-scène de Maria Francisca defrontando-se à mise-en-scène do documentarista.
Vemos a isso claramente na cena em que o segurança da empresa vai até a sua propriedade. A câmera, uma ferramenta crítica, se faz arma, interpela o invasor fazendo-o correr. Nesse momento a mise-en-scène, antes carregada por Felipe, é agora “roubada” por dona Francisca, que conduz o plano. Nesse momento documentarista e documentando confundem-se, trazendo a sensação de que os dois são detentores de um mesmo discurso.
De maneira direta ou indireta, a forma estética e o aparato técnico de Acercadacana transbordam em implicações políticas e discursivas. O quesito técnico do filme termina por revelar a relação entre documentarista e documentado.
Muitos documentaristas jovens tem como ímpeto o rigor técnico e estilístico. Em oposição, Acercadacana tem como único rigor a urgência. Notamos isso num gesto bem simples do documentarista, quando ele cede uma pequena câmera digital e filmadora para dona Maria Francisca. Nesse modesto gesto, Felipe nada mais fez do que ceder a palavra, uma prática que tem como potência dar voz ao “objeto”, tornando-o sujeito ativo do fenômeno cinematográfico ao invés de passivo.
Deixando de lado as questões técnicas e estéticas, o documentarista investe nas imagens colhidas por dona Francisca, ainda que tenham sido imagens de baixa qualidade, e que nada tenha de semelhante com as imagens obtidas ao longo do documentário. Imagens capturadas de forma autônoma e verborrágica, que denunciam parte dos ataques feitos pela empresa à sua propriedade.
Se o documentário se faz indo de encontro ao mundo, muito dele se deve também quando se volta para a ilha de edição. Colocando essas imagens no documentário, Felipe não somente cede a voz como também compactua com o discurso. Ele se torna presente naquelas imagens, atua como um invisível ativo.
É um ato bastante simples e modesto, mas que revela para o espectador qual o nível de relação que os dois tinham e também mostra que tipo de acordo o documentador e o documentando fizeram para concretude do filme.
De maneira equivocada, muitos espectadores confundem Acercadacana com um “produto audiovisual” jornalístico. Isso acontece talvez por carregar um forte tom de denúncia ou por usar entrevistas como aporte documental. Ambas as linguagens tem como ponto comum o mundo dos acontecimentos e o discurso narrativo. O que as torna diferentes origina-se na abordagem: o documentário nega a “objetividade” jornalística carregada de fragmentação e segue rumo ao encontro, para o ponto de vista do sujeito.
A primeira sequência do filme me parece ser um bom laboratório para debatermos tal questão. Assistimos logo na primeira cena o depoimento do advogado da Pastoral da Terra, e nela o documentarista cede a fala ao advogado em um longo plano-sequência, sem cortes ou intervenções. Aqui encontramos a diferença primeira entre as duas linguagens: o documentário cede a voz para o documentado. Uma segunda observação sobre essa sequencia é o momento do primeiro corte, que só ocorre por causa do carro dos jornalistas da Rede Globo, ou seja, que só acontece por conta dos acontecimentos do mundo real. Não se trata de um formato engessado, amarrado com roteiros já pré-estabelecidos – típicos do jornalismo – o documentário se permite às imperfeições do mundo do real.
Essa cena, como todo o filme, torna clara a fronteira entre jornalismo e documentário. O primeiro contenta-se com a sua “objetividade”, “captura” as palavras e os corpos dos entrevistados, já o segundo cede a voz ao sujeito, entrega-se ao encontro.
Em resumo, Acercadacana é um documentário que se faz pela urgência de um evento, que se traduz na relação de um encontro. Documentário de ação direta. Um filme que talvez sirva como resposta às interrogações, no início do texto colocadas, do teórico Jean Louis Comolli.