Por Guilherme Sarmiento
Todos os dias, entre meio dia e uma da tarde, desço ao térreo do meu prédio e sigo até um pequeno cômodo envidraçado, no qual os condôminos com as mensalidades em dia podem desfrutar de duas esteiras, um elíptico e alguns acessórios para exercícios aeróbicos básicos. Neste horário todos estão almoçando e posso, sem atrair o olhar de nenhum curioso, remexer roboticamente meu corpo sobre máquinas aceleradas e bufar, às vezes urrar, a cada três minutos de esforço físico contínuo. Para deixar a mente na superfície deste emaranhado de tensões e contrações musculares, para que seja somente um ponto vagando na sublimação de gazes epidérmicos, há uma pequena televisão de plasma colocada em lugar estratégico. Foi ali que voltei a assistir à Mtv.
Lúcia Santaella, num livro interessante chamado Matrizes da linguagem e do pensamento, considerou a dança como parte da matriz sonora ao invés de incluí-la na visual, ou mesmo, na audiovisual. Para ela, o dançarino encarna o som através do movimento, a base anímica para conter as pulsões primeiras da expressão artística. Se sentado diante deste texto denso tais conceitos beiram à abstração, malhando diante da Mtv geram-se as condições ideais para seu completo entendimento. Ver a Lady Gaga contorcendo o corpo enquanto desliza, através da montagem, pela programação de arranjos eletrônicos e digitais, expressa bem esta ideia. Leva nossa percepção ao mais primitivo estágio do aparecimento de um signo. Esta mágica decorrente da sincronia aleatória, arbitrária, entre som e imagem proporciona uma operação simulada da língua muito eficaz e atraente. Estranho dizer isto, mas este homem, de quase quarenta anos, que acelera a velocidade da esteira e se deixa levar pela batida viciante de um videoclipe, faz parte desta geração que alçou, e compreendeu, estas peças publicitárias a partir de um novo viés. Sou da geração Mtv.
Eu ainda vivia em Cabo Frio, cidade turística da Região dos Lagos, no Estado do Rio, quando este colorido e ruidoso canal colocou seus calcanhares sobre a mesa de centro, postando-se repentinamente, de forma espaçosa, diante de mim e exigindo uma resposta. Fui atraído de imediato pela performance de cantores célebres, até então só vistos em capas de LPs, realçados por enquadramentos distorcidos, ou pelas vinhetas que se liquefaziam e se recompunham para, ao fim de alguns segundos, apresentar o M em alto relevo, emblema da solidez de um universo pop bem edificado.
Muita gente destaca a Mtv como a grande influência estética da década de 1990, de modo que chamar filmes de videoclipes pode ser tanto um elogio como uma crítica ao acerbamento da velocidade da montagem e do movimento de câmera, uma inflação inconveniente e desnecessária do estilo frente a outros elementos da composição fílmica. Mas o formato deixou suas marcas em outras áreas aparentemente avessas aos ornamentos da ficção, como, por exemplo, o jornalismo e a reportagem. Lembro do impacto que foi para mim observar os VJs de corpo inteiro, soçobrando de leve os perfis longilíneos e enfiando os dedos nos bolsos ao anunciar a próxima atração. Esta nova postura dos apresentadores diante das câmeras contagiou o fazer jornalístico brasileiro e, sem a Mtv, O fantástico e o Globo repórter, provavelmente, manteriam seus âncoras mutilados sobre a rigidez das bancadas algum tempo mais.
Entretanto estou ficando velho. A velocidade já não me deslumbra, aliás, a velocidade me cansa e por isto vou mais devagar sobre a esteira. Olho para aquelas imagens que atravessam o tempo mantendo o frescor e o arrebatamento da juventude: pertenço ainda a esta linguagem arrojada onde a carne juvenil precipita sua transgressão e seu desejo, numa perpétua afirmação de sua fome insaciável por exposição, fama e sexo? Não. Isto seria ridículo. Meu corpo murcha ao redor de meus olhos aglutinados pela promessa de eternidade, mas não deixo que o pólen soprado pela tempestade eletromagnética grude no meu suor – eles se soltam com um simples balançar de ombros. Estou ali correndo a seis quilômetros por hora sem sair do lugar e a Mtv, apesar deste tempo de existência, continua lá, neste motor contínuo de vitalidade adolescente, deixando-me para trás.
Será este exibicionismo diante das câmeras algo saudável ou algo patológico? Meus pés começam a ficar dormentes, minha respiração, ofegante, mas ainda resta algum fôlego para levar esta malhação até o final. Há mais de quinhentos anos atrás colocaram o homem no centro da tela. Agora, mesmo se perdendo o centro, o homem continua preenchendo este ponto cego como um simulacro de si mesmo. A Mtv parece ser a consciência exacerbada deste deslocamento. Seu surgimento condiz com o último capítulo de As palavras e as coisas, quando Michel Foucault anuncia, um tanto melancolicamente, o fim do homem como ser. As bocas ampliadas, digitalizadas, tentam acompanhar o playback, porém, qualquer interferência desloca o sincronismo das matrizes e, debaixo de tanta engenharia, o som escorrega sobre a imagem e revela o intervalo intransponível.
Saio da esteira, de supetão. Estou parado, mas as paredes de vidro se deslocam perigosamente ao meu lado. Não tenho onde me apoiar. Minhas pernas estão bambas. Na televisão, Hed Hot Chilli Pepers canta Can´t stop.