O INÍCIO, O FIM E O MEIO

A HISTÓRIA DE RAUL SEIXAS

Diogo Nunes

O documentário Raul Seixas: o inicio, o fim e o meio (2012), dirigido por Walter Carvalho, é um filme revelador. Com a proposta de contar a história do roqueiro baiano, apresenta Raulzito como nenhuma outra encenação havia apresentado – que já contou com musical no teatro, especial de televisão e outros. O diretor não foge das polêmicas nem evita os conflitos que houve na vida do cantor. Assuntos constrangedores como uso de drogas, seu envolvimento com o satanismo, o alcoolismo, suas esposas e companheiras e etc. são delicadamente trazidos pelo diretor, que procura não dourar a pílula. Ao tocar nesses assuntos, ao invés de macular, de alguma maneira, a trajetória de Raul,  ajuda a fortalecer sua imagem como um mito do rock nacional.

“Não dá para contar a história de um mito”, quem diz isso é seu mais famoso parceiro, Paulo Coelho. O filme tenta chegar ao que o mito Raul Seixas representou para o rock nacional e não consegue! Raul Seixas é maior que o filme e sempre entrega mais do que a tela comporta. Para dar conta da lenda, Walter Carvalho vai em busca das pessoas que conviveram com Raul: seus parceiros musicais, familiares, amigos, admiradores e estudiosos. Através dos depoimentos dos entrevistados, das imagens de arquivo, das entrevistas de Raul e da própria intenção narrativa do diretor, o filme deixa escapar a grandeza que Raul representa para a família, os amigos, fãs e para a música brasileira. Escapa não por fracasso, mas, justamente, por que não é possível contar a história de um mito.

Apesar de vermos um Raul Seixas humano, os discursos do filme, do diretor e dos entrevistados, se misturam entre apresentar uma figura humana e, ao mesmo tempo, extraordinária. Raul era extremamente apaixonado pela sua família e isso sempre foi expresso em suas músicas. É um momento singelo do filme o olhar de seu irmão Plínio ao se gabar que a música Meu amigo Pedro foi composta para ele, ou ao sua filha mais nova, Vivian, ler emocionada uma carta do pai. Os especialistas sobre Raul se confundem com seus fãs, é quase impossível não pesquisar sua vida sem reverenciar sua obra, e é por esse motivo que os relatos que analisam a obra do cantor vêm carregados de admiração, tal qual essa pretensa crítica. Destaque para as participações de Pedro Bial e Caetano Veloso, que se esvaziam para homenagear a lenda do rock.

Por vezes, o filme abandona uma estratégia de abordagem bastante comum às  biografias de artistas que são unanimidades perante o público e a crítica: a do gênio solitário. A relação de Raul Seixas e os seus parceiros musicais é especialmente importante para sua carreira e tem um merecido espaço no filme. Primeiro, a que parece ser a mais famosa e rica parceria de todas: Raul e Paulo Coelho. Gita, Tente outra vez e Há dez mil anos atrás são os frutos mais notáveis desse encontro. O filme é presenteado com a participação do escritor-fenômeno-que-vendeu-milhões-de-livros-no-mundo-inteiro, que quase nunca dá entrevistas, e protagoniza um dos momentos mais “místicos” do filme, quando no meio da conversa uma mosca passa a incomodá-lo. Segundo Paulo Coelho, não há moscas na Suíça, onde reside e cedeu a entrevista. É quase certo ouvir alguém comentar na sala escura que a mosca é Raul. Dom Paulete parece crer nisso também e segue com sua participação “mística” no filme. Outro parceiro importante é Claudio Roberto, que escreveu a letra de Maluco beleza para depois Raul colocar a música. É para Claudio que Walter Carvalho pergunta quem foi o maior parceiro de Raul. Claudio quase assume o posto. A pergunta é repetida para Paulo Coelho, que afirma, esquivando-se: “o maior parceiro de Raul foi ele mesmo”. A opinião do diretor vem com a imagem de uma briga de galo no sítio de Claudio.

Marcelo Nova e Raulzito talvez tenham a mais polêmica e questionada parceria. No mesmo ano que morreu, Raul fez uma turnê de cinquenta shows com Marcelo Nova a convite deste. Há quem diga que os shows deram uma sobrevida para Raul e os que  essas apresentações aceleraram sua morte. Walter Carvalho vai atrás de opiniões sobre o assunto. Dalva, secretária de Raul, se exime de responder; Lena, uma das companheiras de Raul, é taxativa ao dizer que os shows prejudicaram o cantor; Caetano é ponderado e acredita na boa intenção de Marcelo Nova. Para resolver a querela, um momento histórico para os fãs e mágico para Raul: Paulo Coelho canta junto com Raulzito num dos shows que ele fez com Marcelo Nova, este diz ser uma homenagem para o ídolo. Raul e Dom Paulete se veem pela primeira vez desde que romperam a parceria, um encontro bastante emocionante. Com essa interferência, o diretor exime Nova de responsabilidade e o filme toma parte dos que acreditam que as cinquenta apresentações, assim como o reencontro com Paulo Coelho, fizeram muito bem para Raul.

A proposta do diretor, de mostrar um Raul Seixas sem enfeites, alcança seu ápice ao tratar do envolvimento do cantor com o satanismo. O tema conta com trechos incríveis do filme Contatos imediatos do IV Graal, em que são exibidas imagens de rituais e sacríficos com animais relativos a O.T.O. (Ordo Templis Orientis), ordem em que Paulo Coelho e Raul Seixas fizeram parte. Euclydes Lacerda de Almeida e Toninho Buda contam sobre o envolvimento de Raul e Paulo com a ordem e o misticismo, sendo Euclydes o orientador da dupla. Num dos momentos mais curiosos sobre essa relação com o ocultismo, Euclydes afirma que Paulo Coelho não havia solicitado formalmente, através de uma carta, seu desligamento da O.T.O, logo, ainda era um membro. Em busca novamente de conflito, Walter Carvalho diz a Paulo Coelho que seu antigo mentor ainda o considera membro da ordem, a resposta à provocação vem na forma de balbucios constrangidos. Toninho Buda coloca que a música de Raul Seixas foi influenciada pelos ensinamentos do satanista Aleister Crowley e ainda aponta na obra onde essas influências aparecem. O exemplo mais explícito está na música Sociedade alternativa, em que o trecho “fazes o que tu queres, pois é tudo da lei” é extraído do “Livro da Lei”, escrito por Crowley.

Falar da relação de Raul Seixas com o satanismo não é o assunto mais delicado trazido pelo documentário. Logo no começo o filme aponta que patinará sobre gelo fino em busca de desvendar o mito. Raul teve uma relação muito distante com sua esposa Edith e sua filha Simone depois da separação pelo fato de elas terem ido morar nos Estados Unidos. Isso fica explícito na entrevista de Simone ou na carta que ela lê pelo Skype de sua mãe dizendo, em poucas e frias palavras, que não quer falar nada sobre Raul porque lhe traz muito sofrimento. Mas o que espanta a todos, plateia e equipe, nessa visita à Simone é a semelhança de seu filho adolescente com o avô Raul. Apesar disso, e na contra mão desse distanciamento, Raul sempre é apresentado como um pai amoroso, especialmente na entrevista da sua caçula Vivian, fruto do relacionamento com Kika. Vivian conviveu pouco com o pai e toda a admiração dela vêm à tona nas falas para o filme.

Walter Carvalho não esconde o desejo de extrair afirmações bombásticas, situações constrangedoras ou melodramáticas ao longo do documentário. Ao abordar os vícios de Raul (álcool e drogas), o diretor consegue uma confissão de Paulo Coelho, que teve destaque até nos trailers promocionais do filme: “Eu apresentei todas as drogas pro Raul”. Consegue que Plinio e uma das companheiras do músico, Lena, falem sobre as tentativas fracassadas de internar Raul para se tratar, inclusive com um desabafo tocante de Lena sobre ter sido incapaz de “salvar” Raulzito. Mostra como sua secretária Dalva foi uma vigilante fiel para que Raul não exagerasse depois dos shows, ela era os olhos e ouvidos da mãe de Raul e o acompanhava sempre e em todo lugar, inclusive foi ela quem encontrou seu corpo. A última cartada de Walter Carvalho para penetrar o mito foi levar Dalva, depois de vinte anos, até o apartamento onde ela encontrou Raul, uma estratégia apelativa e desnecessária. Por sorte (ou qualquer que seja o nome disso) Dalva, muito comovida, não conseguiu sair do elevador e, inconscientemente (ou não!), evitou que o filme descambasse para o sensacionalismo. Carvalho não teve a cena que buscava, mas compreendeu a magnitude da ausência de Dalva e acertou ao respeitar a grandeza que Raul impôs ao filme. Arrisco-me inclusive a dizer que Raulzito divide a direção do filme com Walter, pois este soube ser conduzido pelo Maluco Beleza e permitiu que a lenda impregnasse o filme, ao invés da lógica dos fatos.

 

Um comentário sobre “O INÍCIO, O FIM E O MEIO

  1. Francisco Fernando Lopes

    Pôxa, que leitura agradável. Muito simples e direta, ao meu ver um filtro interessantíssimo que deixa no ar o significado inexplicável, encantador e inalcançável da verdade ou mesmo mistificação de um artista da grandeza de nosso querido Raulzito. Depois de tanto ver esse filme, agora à pouco novamente, rolando na tv, com outra perspectiva, percebi coisas que não havia sentido, o que por acaso, depois que desliguei a tv, buscava na net o trecho em que o Cláudio, parceiro do Raul fala sobre o original “adão e eva”. Eis que me dou com sua “história de Raul Seixas”, Diogo. Que barato, foi tão legal te ler que, toda baboseira que ainda ressoava em min’alma sobre o universo de pretensas críticas grandiosas ou tolas sobre o artista e homem Raul, A partir de seu texto, crítica, ponto de vista, seja lá o que for sobre o filme, em mim descortinou um horizonte de possibilidades interessantíssimas, mas todas, todas, incrivelmente poéticas, filosóficas e existencialmente necessárias ao determinar constante sobre o que é e está por vir nessa vida, como melodiosa canção, equilíbrio exigente entre a mente e o coração. Parabéns. Valeu! Viva Raul.

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