INDAGAÇÕES HISTÓRICAS E ESTÉTICAS SOBRE O CINEMA MARGINAL
Por Thacle de Souza
1. Sobre Zé do Caixão & o cinema marginal
Esta análise de Zé do Caixão é guiada pela bibliografia do crítico Jairo Ferreira, em seus livros “Cinema de Invenção” e “Críticas de Invenção”, e por uma tentativa de compreender o cinema de José Mojica Marins a partir da visão interna de realizadores do cinema marginal.
Zé do Caixão é um personagem criado pelo cineasta José Mojica Marins. Seu cinema escatológico mergulha pelos gêneros, mas toma por base absoluta o filme de horror. O horror do homem médio, classe média. O medo popular.
Em seus filmes paupérrimos, empobrecidos até certo ponto pela técnica, o cineasta José Mojica antigiu o status de cult e ícone referencial da cinematografia experimental nacional com os precedentes do Cinema Marginal. Encarado com irreverência, José Mojica se incorporou a seu personagem. Suas unhas enormes e sua cartola tornaram-se símbolo do insconsciente coletivo, do medo e do pensamento existencialista.
“Zé do Caixão acabava de explodir, com À meia-noite levarei sua alma (1964). Lá estava o coveiro, meio analfabeto, meio nietzschiano, instaurando um inferno à brasileira: improvisado, feito com trucagens primitivas. Mas dotado de uma compreensão visceral do cinema. E, para completar, um arrasador sucesso de público.” (ARAÚJO, 2010, p. 396)
Em sua obra, a incompreensão. Suas experiências com filmes de sexo explícito nos anos oitenta evidenciam sua falta de incentivo e a necessidade financeira de um cineasta maldito. A ditadura reservou-lhe um lugar específico: censurado. Apreendido. Marginal.
A sujidade de seus filmes surge como contraparte do delírio do inconsciente coletivo. Em seu terror: a passividade absoluta do cidadão, adaptado, explorado, renegado às instruções governamentais e ao comportamento massivo da sociedade. A grande metáfora do século histórico brasileiro: o horror ditatorial, a transgressão do sistema social brasileiro de meados dos anos sessenta e setenta.
Em suas formas, novas tendências, um novo modelo comportamental. As drogas. O pensamento extraterrestre. Uma grande alegoria do subdesenvolvimento. O horror é a chave para o entendimento, para as indagações.
A desmistificação da produção nacional. O novo viés. “Terceiro olho, sexto sentido”, nas palavras de Jairo Ferreira. A visão megalomaníaca. Atores das ruas. Office-boys e donas de casa. A loucura, nas palavras de José Mojica Marins. Infame. Notório. Artista popular. Visionário dos novos tempos. Autor experimental. Libertário, constrangedor: este é o estranho mundo de Zé do Caixão.
2. Sobre ritual dos sádicos & o cinema de Mojica
O filme Ritual dos sádicos foi produzido aos fins dos anos sessenta. Seu enredo: um psiquiatra injeta doses de LSD em alguns voluntários com o pretexto de analisar seu imaginário sobre a influência do personagem Zé do Caixão. Delírios, perversão, sadismo. Filme de auto-reflexão.
Foi vetado pela Censura Federal e após cortes é liberado com o novo título de O despertar da besta, resquícios pouco sadios da incursão lisérgica e libertária do filme original. Sexto longa de Mojica: carreira de indagações, terror e transformação.
Na equipe, nomes fundamentais para o Cinema Marginal: João Callegaro, Ozualdo Candeias, Jairo Ferreira, Carlos Reichenbach, sem contar Annik Malvil e outros nomes como Maurice Capovilla (proeminente crítico e cineasta), o compositor Adoniran Barbosa, a atriz Consuelo Leandro e o narrador esportivo Silvio Luiz, o diretor Carlos Manga, etc.
O caso é pós-moderno: referências, comportamentos subversivos, sexo, drogas, horror, quadrinhos, jovem-guarda & tropicalismo. Ritual dos sádicos é uma grande obra do cinema brasileiro moderno. Entrega-se às suas referências e se transforma em ícone ao se sacrificar à película pelo culto maldito: censurada, renegada. Latas de filme aprisionadas pelo governo; destruição do pensamento excessivo, marginal.
“Os filmes de Mojica são uma agressão, embora não tenham o menor sentido revolucionário. É uma revolta fictícia, trágica e irracional, obtendo um resultado subliminar, pois se não há transformação social surge a transformação existencial… Tudo não passa de sugestões, impressões.” (FERREIRA, 2006, p. 40)
Palavras de Jairo Ferreira no ano de 1967. Período primordial para o cinema da Boca do Lixo, e para a crítica do jornal nipônico “São Paulo Shimbun”; momento de aparecimento do Cinema Marginal, eclodindo com o filme de Candeias, A margem.
Nesse momento, os filmes de Zé do Caixão são encarados com a tolerância dos jovens críticos e realizadores atualizados. Por dentro da novidade. Procurando a inversão da linguagem cinematográfica, o sentimento do experimental, à busca da nova cinematografia nacional. Portões abertos para o inferno.
Em 1968, a Censura Federal realizaria dez cortes para liberar o filme O estranho mundo de Zé do Caixão, ato relatado e diagnosticado também por Jairo Ferreira, que descreveu cada uma das cenas censuradas em sua crítica, e mais:
“Fatos como as torturas oriundas do estado discricionário ou o recente massacre de nossos índios fundamentam a escatologia marinsiana. Mojica surge como primitivo-surrealista porque filma a realidade brasileira pelo avesso, pelo subjetivo. O terror artificial de certo cinema estrangeiro vira realidade. O parnasianismo da Rapaziada do Brás, melodia de som lírico em caixinha de música, vira cinema dantesco nas mãos de Mojica. Programas de TV 100% de audiência como Derci Longras, Chacrinha, Silvio Santos, Sapato Branco, todos tão New Deal, marcaram a Vivenda da Luz, orfanato onde as crianças vivem em campo de concentração, e onde Drummond bebeu uma taça de sangue. Era preciso muita coragem para filmar tudo isso: Mojica assumiu essa estrutura, como pioneiro, semivanguarda 63 no cinema de linguagem chanchadística que foi e ainda é o cinema brasileiro. Criticá-lo por usar música de Edgar Varèse, ele que não tem grana para contratar Duprat ou Os Mutantes? Por ser picareta? Não: se existe o Chacrinha, então tudo é permitido… É proibido proibir, diz Caetano.” (FERREIRA, 2006, p. 63)
A potencialidade brasileira está na sanfona, na música popular de muitos anos. Na proliferação do pensamento popular, da sabedoria fora da academia. A cultura que se enquadrada contra a massificação restritamente científica ou de manifestação exclusivamente comercial. José Mojica é homem da cidade, do pensamento brasileiro. É todavia, extraditado. Nome do espaço sideral. Da órbita da ditadura brasileira. Nome da crítica, da aversão. É ponto na Boca do Lixo, é encantamento crítico. Produto para as vítimas da revolução industrial. Artista popular reflexivo.
Já em 1969, o pensamento de Jairo é este:
“A antropofagia no cinema brasileiro nasceu com José Mojica Marins. À meia-noite levarei tua alma, Esta noite encarnarei no teu cadáver, O estranho mundo de Zé do Caixão (último episódio) e agora o extraordinário Bacanal dos sádicos que está em fase de conclusão. Mas em Marins tudo é inconsciente.” (FERREIRA, 2006, p. 119)
O cinema de José Mojica Marins, universo de produção independente, é um modelo totalmente à parte. Sua produção de poucos recursos, é também sucesso popular. Sua visão escatológica é reverenciada, por baixo de sua formulação cognitiva: reflexões sobre a identidade, a morte e as religiões. O horror de Zé do Caixão se torna popular, tanto pelo terror quanto pelo medo, mas não pela alegoria.
Ainda que inconsciente, a produção conceitual de Mojica atinge níveis particulares na realização nacional. A ousadia, a poesia maldita, é tudo raro. Quando os cineastas irrompiam pela atitude:
“Acabei de ver um filme, em sua primeira cópia, no laboratório. O filme mais ribombante feito no Brasil até hoje. Ritual dos sádicos, dirigido por um tarado mental, um gênio do escrotismo, o maior homem de cinema já surgido no hemisfério sul, José Mojica Marins. O que o teatro moderno preconizado por Artaud, o cinema subterrâneo, e os movimentos que se pretendem corajosos conseguiram no decorrer destes anos, não chega nem a fazer sombra à importância deste filme único. Ou faremos filmes mais corajosos ou abandonemos definitivamente o cinema! (…)” (REICHENBACH, 2006, p.136)
Nas palavras de Carlos Reichenbach, em idos de 1970. O furor do cinema marginal descobre que o momento não é simplesmente ideológico. Os realizadores têm problemas, não têm dinheiro, têm necessidades. Entre star systems e a tevê publicitária.
O filme de Mojica é resguardado federalmente por décadas. Nunca lançado comercialmente. Apenas em salas de cinema específicas e cineclubes alternativos. Parece ser tudo lenda da ditadura militar.
3. Uma leitura de Ritual dos Sádicos
“Mojica Marins está 50 anos pra frente do Buñuel – Ritual dos sádicos, seu melhor filme, vai dar o que falar. Em São Paulo está surgindo um movimento cinematográfico: a substituição pura e simples da certeza pela incerteza, do estável pelo instável, um total recusa ao fixo e ao correto. O mau comportamento, enfim. Uma fase desorientada, porém criticíssima.” (FERREIRA, 2006, p. 154)
Jairo Ferreira escreve essas palavras em hora de sufoco. O cinema e a política nacional estão em crise: muitas soluções especuladas e conceituais assumem as telas. As vozes são conhecidas: pairam pelos cinemanovistas intelectuais, entre suas fases, e pelos ditos marginais, experimentais, na incongruência dos fatos, da atualidade. É época crítica.
O cinema de Mojica surpreende as esferas culturais do final dos anos sessenta na produção de Ritual dos sádicos. Aqui, o diretor encontra o subterfúgio das questões submissas ao pensamento racional do presente momento. A palavra da vez é desordem. Confrontar o mainstream midiático: a alienação do cinema brasileiro.
O enredo do filme permite a sua divisão em três categorias: em um primeiro momento, somos apresentados em preto e branco a episódios sucessivos de práticas imorais, criminosas e condenadas pela sociedade. Entre histórias de sexo perverso, violência e consumo de psicoativos, especialistas discutem, no que posteriormente é nos apresentado como um programa televiso, a relação dos tóxicos e o comportamento desvairado dos seus usuários. O episódio em que uma mulher é sequestrada, fuma maconha e é investida por vários homens é abusivo. Um pastor aparece e adentra o seu corpo com uma estaca de madeira. A montagem é bem encenada: o efeito cinema tem aqui seu auge na construção narrativa de Mojica. Aparentemente desfragmentado, o filme tem uma cadeia lógica bem fundamentada. A trilha sonora é essencial: entre canções hippies e o rock da jovem-guarda.
A dramaturgia grotesca do filme rebenta na substância criativa do mecanismo do cinema: as cenas deixam ao mistério sua execução. Aos olhos voyeurs inconformados, a cena do empalamento é dada apenas às sombras de uma parede: a obscenidade parece atingir ainda mais profundamente.
No segundo momento é apresentada a proposta do filme: uma experiência com LSD, na qual quatro voluntários serão submetidos à imagem de Zé do Caixão e suas consequências. Em um programa de TV, Zé do Caixão é entrevistado e julgado. A mídia é incorporada, e a reflexividade encontra aqui seu escárnio: Mojica desnuda Zé do Caixão, seu apelo ao cinema! A persona de José Mojica entra em jogo: “Desculpe, mas Zé do Caixão ficou no cemitério! O senhor está falando com José Mojica Marins.” No julgamento do programa televisivo “Quem tem medo da verdade?” indagam-lhe “Que contribuição o senhor imagina que está dando com os seus filmes ao cinema brasileiro?”, ao passo que ele lhes responde: “Dar emprego a uma série de gente e levar ao público aquilo que o público quer ver.” Em outra pergunta: “Olhe, eu sei que para fazer cinema no Brasil tem uma série de dificuldades. Você não pode fazer um filme que levasse uma mensagem de felicidade?”, e a resposta: “Fazer cinema no Brasil é a mesma coisa que fazer foguete aqui e mandar à lua. Não temos recursos pra fazer cinema, e o diretor tem que criar um personagem. Tem que sair para outros lados. Tem que importar filme virgem, filme virgem! Inventar o que já está inventado. Tem que dar ao público aquilo que ele quer ver! Senão, não tem jeito: os cinemas fecham as portas! O crítico vai vender banana e o diretor vai comer casca!”. Aquele abraço, canta Gil.
O cinema marginal encontra Ritual dos sádicos: situado na margem da invenção, o filme explora a si mesmo e converte Zé do Caixão em um símbolo de análise conceitual e auto-reflexiva. Explicitamente autodidata. Não-acadêmico. A todo momento as diferentes formas midiáticas intercalam-se. Às referências de HQs, à potencialidade absurda e moralista da televisão, aos hinos tropicalistas: o filme é produto do filme, e o seu entendimento é a consternação do cineasta: faça-se cinema! Primitivo. Irracional. Impactante! O cinema é apresetando como chave na indústria massiva. Produto para alienação intelectual.
“Na filmografia de José Mojica Marins, o filme pode ser visto como um vôo em alta velocidade que, a certa altura, atinge em cheio o chamado Cinema Marginal ou de invenção. Trata-se de um filme que é, em sua natureza incontrolável, um verdadeiro elogio que o cineasta performático faz ao ato intuitivo da criação poética.” (Luís Alberto Rocha Melo, Portal Brasileiro de Cinema)
Em um terceiro espaço, a película se entrega. Cores invadem a tela, contrastando o belo preto e branco anterior. É momento da lisergia: os pacientes têm o LSD injetado em suas veias e são apresentados à imagem de Zé do Caixão. O uso da cor é exuberante, entre os filtros monocoloridos e a fotografia vívida de motivos fulgurantes. O despertar da besta. É hora da invenção da poesia imagética. Tormento psicodélico em cada uma das mentes. À procura da transgressão, o comportamento individual é alvo do coletivo, os instintos tratam da arqueologia do ser: a moralidade é a negação absoluta da primitividade do ser humano. A conduta é produtora do caos, e a disciplina é correlata direta e não-arbitrária dos estados e da organização comportamental humana. O olho que precede a visão, o olho que julga.
O psiquiatra encerra sua tese (aqui nada é certo, tudo é loucura como princípio comum). Os especialistas observam-no nervosamente! Consideram sua parafernália absurda. Suas conclusões, seu pensamento e sua experiência: maldito! Mas o psiquiatra lhes apresenta a realidade: a experiência foi um sucesso. Os pacientes não tiveram a droga injetada. O placebo atribuiu-lhes a abertura incisiva da tentação. Os delírios são fruto do suposto enfraquecimento das “funções aversivas e críticas normais do ego”. Ego death. Entre a paranóia, a perversão, o sadismo, suas vítimas materializam uma conduta enraizada: o terror já existe internamente em cada um de nós, e a loucura é a razão comum do ser; antes real e subversiva, exaltada apenas com o uso de substâncias psicoativas.
A alegoria está entregue. A repressão é o diagnóstico conclusivo de seu filme: o cinema brasileiro procura mais indagações do que soluções para a sua razão de ser. A convenção, enquanto aprisiona materialmente o desejo, mergulha na escuridão. O desejo existe. A poética de José Mojica Marins: alegoria da primitividade, horror, e tudo o mais presente em cada pessoa comum.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Sites:
Conteúdo massivo (entrevista, depoimentos, ensaios) disponível em: www.portalbrasileirodecinema.com.br/mojica
Complicações Associadas ao Ácido Lisérgico Dietilamida (LSD-25)
www.salves.com.br/txt_lsd25.htm
Livros:
GAMO, Alessandro (org.). Jairo Ferreira e Convidados Especiais. Críticas de Invenção: os anos do São Paulo Shimbun (Coleção Aplauso de Cinema). 1ª ed. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. 1ª ed. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda, 1986.
TOSI, Juliano (org.). Críticas de Inácio Araújo – Cinema de Boca em Boca & Escritos sobre Cinema (Coleção Aplauso de Cinema). São Paulo: Imprensa Oficial, 2010.
Viva o cinema do Zé do Caixão.
Saravá o cinema fantástico do Mojica.
Cinema de invenção!
E bem vindo à CineCachoeira Thacle.
Valeu, Emerson! Viva!
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