FILMES IRANIANOS

A IMAGEM COPIADA

 

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Por Guilherme Sarmiento

Sempre estranhei o fato do Irã, um país islâmico e, consequentemente, avesso a qualquer tipo de idolatria através da representação, seja ela artística ou religiosa, tenha se tornado celeiro de um culto tão deslumbrante às imagens em movimento. Quem permitiu a este grupo restrito de cineastas, aparentemente em desacordo com os preceitos maometanos, disporem nas ruas de Teerã suas câmeras insidiosas e, a partir da luz do cinema, raptassem a castidade de corpos até então intocados pelo negativo e os devolvessem transfigurados em sua forma mais pecaminosa: eidolon, fantasma, ilusão?  Como eles romperam com o pacto silencioso em torno das formas abstratas da mandala, expressão simbólica do firmamento e de suas constelações, para a figuração humana em seu esplendor renascentista, sua humanidade mitificada e seus abismos interiores?

É bom lembrar que, por ser uma região milenar, o Irã possui uma longa tradição no trato com as representações. Existe uma vasta iconografia realizada há mais de dois mil anos atrás, de natureza pagã, esculpida nas antigas escadarias e construções da capital persa e preservadas em museus como relíquias cujo relevo não tinha ainda sido desfeito pelo sopro do Profeta, impregnado pela mais corrosiva fúria iconoclasta. Também não passaram despercebidas do Ocidente as delicadas iluminuras de Kamāl ud-Dīn Behzād, ilustrador do livro de Musharrif Od-Dîn Sa’adi, um dos maiores poetas iranianos da idade média. Marjane Saltrapi, autora da premiada comic novel Persépolis, crescida na Teerã fundamentalista, lembrou desta época demasiadamente permissiva com os ícones ao evocar com seu traço simples a falsa frontalidade da imagem, deformada no perfilamento de deuses sedentos por idolatria. Mas este reviver da figura humana como objeto de contemplação, realizada pela cultura iraniana contemporânea, repercutiu muito mais incisivamente a partir de um modelo exacerbado de academicismo pictórico, extremamente minucioso, e, a princípio, eufemizante da capacidade desestabilizadora da representação: a escola hiper-realista.

Um dos maiores representantes atuais desta tradição chama-se Iman Maleki.   Acima, vemos um de seus quadros mais famosos, Presságios de Assez (2003), no qual transparece sintetizadas todas as qualidades deste movimento abraçado pela política oficial: representação realista do cotidiano da classe média iraniana e sua abordagem que se desdobra entre a descrição pura e simples de um instante e a atmosfera edificante, quase mística, da contação de uma fábula. Junto ao avanço vertiginoso no detalhamento da imagem, em sua ansiosa busca por um reconhecimento indiciário mais do que representativo, o olhar das duas personagens sustentam-se na figura centralizante de um livro aberto, como se o visual, antes de subsistir por si mesmo, devesse ser fixado numa mensagem. O realismo aqui se sustenta através de uma retórica articulada para omitir a capacidade puramente icônica ou simbólica da representação. Todo o valor atribuído ao projeto decorre de seu esforço descomunal em ser uma impressão, uma fotografia, uma cópia.

Este atributo não é exclusivo desta imagem particular. Se ampliarmos nosso olhar sobre a cultura islâmica, veremos que estes valores são compartilhados socialmente para a sustentação do sagrado.  A legitimidade de uma cópia frente a uma matriz original eleva a própria escritura do Alcorão ao estatuto de uma lenda, de uma saga construída em respeito a manutenção literal da palavra através de sua reprodução infinita. Ao contrário do Novo Testamento cristão, escrito postumamente, o livro sagrado muçulmano foi, em grande parte, ditado pelo próprio Maomé enquanto vivo, ou seja, a fixação das “Suratas” estabilizaram firmemente a visualização de uma matriz original, base primeira para seguidas copiagens. Isto fica claro no momento em que o islamismo se espalha no oriente e a transcrição do livro passa a ser um fator preponderante para a ampliação dos fiéis. O Califa Otman, por exemplo, segundo Samir El Hayek, http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/alcorao.htm, no século VI, fez com que se reproduzissem sete cópias a partir do cuidadoso códice preparado por Abu Bakr e, após a conclusão da tarefa:

o Califa efetuou uma recitação pública da nova edição perante os doutos presentes na capital, perante os companheiros do Profeta, e então enviou estas cópias aos diferentes centros do vasto mundo islâmico, ordenando que dali por diante todas as cópias fossem baseadas na edição autêntica. Ele ordenou a destruição das cópias que, de algum modo, se desviassem do texto assim oficialmente estabelecido”.

Estas inquietações provenientes da relação entre uma cópia e seu original contamina grande parte das representações visuais iranianas, em especial, o seu cinema. Isto fica tão mais evidente em filmes onde se explicita esta relação problemática –  como Cópia fiel, de Abbas Kiarostami – , mas também se apresenta através da espontânea, vívida, execução de mise-en-scène e construção de personagens tão características desta cinematografia. Se nas artes plásticas o hiper-realismo se compraz em descrever em minúcias as superfícies de objetos, tecidos e peles, no cinema estes efeitos ficarão a cargo de encenações, de ações, que mostram a vida assim como ela é.  Tal qual  a Sherazade das Mil e uma noites, que, para adiar o momento de sua morte seduz o marido tirano com suas histórias maravilhosas, os cineastas iranianos reinventam em mil faces o realismo para sobreviverem em um país avesso a imagem como representação. E, com este artifício retórico, mantem os ídolos ilesos no seio mesmo da iconoclastia, copiando-os fielmente da natureza e, através da fábula, envolvendo seus perfis no silêncio do que não se pode ser dito ou do que não se pode ser mostrado.

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