LEOPOLDO SERRAN

 UMA CÂMERA SOBRE LIVROS

Artigo Publicado originalmente no catálogo da mostra Leopoldo Serran, escrevendo imagens (2012)

Por Guilherme Sarmiento

Antes de avaliar os méritos das adaptações cinematográficas realizadas por Leopoldo Serran, gostaria de chamar a atenção para algumas dificuldades que todo crítico ou ensaísta encontra ao tratar o roteiro como um elemento autônomo, ainda mais aqueles cujos “espíritos” são transpostos dos mais diversos gêneros literários – conto, romance, poesia, autobiografia etc. A primeira delas diz respeito ao próprio estatuto criativo do roteirista dentro da obra cinematográfica. Roteirizar é perpetuar um silêncio solene em torno de si e de seu ato. O escritor de roteiro fica ali, ao longe, observando orgulhoso o germinar de uma vida que também lhe pertence, recebendo as congratulações de seus pares, mas, de maneira geral, sendo um completo desconhecido para o grande público. Escreve a quatro, seis mãos. O vigor de seu traço acaba escondido após a transposição final para a tela. Então, como resgatar a pureza deste gesto, de modo a que revele a potência de seu autor? Como devolver a Serran o que é de Serran? Esta pergunta ganha ainda maior contundência quando, somada às prerrogativas do ofício, tem-se como pano de fundo a obra que deu origem à película – o livro.

Outra questão, não menos contundente, tem a ver com a falta de uma metodologia mais apurada de análise do trabalho de roteirização, que observe os resíduos presentes num processo de adaptação cinematográfica, cujo andamento produz, pelo menos, dois níveis de intertextualidade. Talvez pela desvalorização do roteirista como autor, este método ainda não tenha adquirido forma e produzido análises mais aproximadas da carpintaria exigida pelo específico da função. Por exemplo, geralmente, quando se fala de “adaptação”, os estudiosos traçam uma linha reta entre o livro e o filme, esquecendo-se que no meio do caminho há uma pedra-de-toque, o roteiro. E que sua escritura exigiu o descarte de inúmeras versões, esquecidas após o feitiço impositivo das imagens em movimento. Ir direto à obra fílmica torna o caminho mais curto, mas não o mais revelador quanto a real magnitude de se adaptar literatura para cinema, nem o mais sugestivo do valor da transposição dramatúrgica realizada por quaisquer roteiristas.

Por isso, temos de ser cautelosos ao utilizar os filmes como fonte direta do olhar de Serran sobre o mundo e, também, sobre os livros que leu e traduziu em sequências, cenas e plot points. Infelizmente há no Brasil um grande vazio de publicações de roteiros – que eu saiba, Leopoldo Serran publicou somente três: Tudo bem, Duas histórias para cinema e Shirley, a história de um travesti – e um despreparo do próprio aparato cinematográfico em preservar todos os vãos ( e desvãos) de sua memória. Sabendo destas lacunas desde o início, resta entender como o roteirista, diante de tantos ruídos e interferências, deixou ali o selo de sua qualidade criativa. E parte deste selo só pode ser encontrado hoje em decorrência da maior das “fraquezas” do cinema brasileiro, condição, inclusive, tantas vezes criticada pelo próprio Serran: sua informalidade.

Por seu estatuto pré-industrial, fazer cinema no Brasil é, antes de tudo, um engajamento afetivo, uma parceria em torno de um projeto cuja execução exige algum grau de envolvimento ou parentesco. Isto, independentemente da natureza do projeto. Podemos afirmar, portanto, que Serran compartilhava certos valores estéticos e ideológicos com quem trabalhou de forma regular. Bruno Barreto, Antônio Calmon, mesmo Cacá Diegues, postulavam – e postulam – o sonho de um cinema narrativo e popular, ambições somente permitidas àqueles que se apoiam numa fábula bem estruturada. Para estes diretores, a narrativa vem antes do estilo e, por ser, acima de tudo, um contador de histórias, o roteirista encontrou a interlocução ideal para desenvolver plenamente o seu talento.

Este projeto cinematográfico – construído concomitante e em oposição ao cinema de autor – explica, também, a predominância entre as adaptações escritas por Serran de romances com uma estrutura clássica e convencional. Novamente fica difícil afirmar sua autonomia nestas escolhas, mas o fato é que ele adquiriu uma imbatível expertise nesta área, o que pode ser comprovado simplesmente percorrendo os títulos dos livros a partir dos quais baseou grande parte de sua obra. Dona flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976) e Gabriela (Bruno Barreto, 1983), de Jorge Amado; Um certo Capitão Rodrigo (Anselmo Duarte, 1971), de Érico Veríssimo; Faca de dois gumes (Murilo Sales, 1989), de Fernando Sabino; Engraçadinha (Denise Saraceni, 1995), Nelson Rodrigues, são narrativas mais próximas estilisticamente do século XIX que do século XX, ou seja, estas “opções” parecem condicionadas e motivadas por padrões literários bem marcantes. Anunciam uma maneira de “ler” o cinema e, sobretudo, aprofundam certas polarizações para quem viveu os anos 1960, quando um dos assuntos em pauta era o que – e como – adaptar.

Se pegarmos as adaptações realizadas pelo Cinema Novo, por exemplo, veremos outros tipos de “preferências” literárias. O movimento buscou inspiração, especialmente, nos escritores modernistas, cuja preocupação teórica e conceitual aproximava a narrativa da alegoria, bem como naqueles que tornavam a escrita uma constante vigília metalinguística ou ideológica. Joaquim Pedro de Andrade, por exemplo, transpôs para o cinema Macunaíma (1969), de Mário de Andrade, e reverenciou a herança antiacademicista da Semana de 22 em filmes como O homem do pau brasil (1982). Mesmo quando os cinemanovistas menos fervorosos adaptavam escritores com uma prosa mais tradicional – penso em Graciliano Ramos –, este “tradicionalismo” trazia uma deslocada reflexão sobre o ato de escrita e, através da estética da fome, pode-se, inclusive, perceber as exigências de uma expressão magra, seca, nordestina, própria a muitos textos do escritor alagoano.

Claro que estas polarizações por vezes perdem o sentido, ainda mais tendo em vista que Leopoldo Serran estreou no cinema com Ganga Zumba (Carlos Diegues, 1964), uma adaptação impactante do livro de José Felício dos Santos. Para Glauber, escreveu, inclusive, uma adaptação do romance de José Lins do Rego, Riacho doce, que jamais saiu do papel. Mas, apesar destes trabalhos pontuais e do respeito mútuo guardado entre as partes, suas transposições literárias, conforme avançamos em sua trajetória, anunciam posicionamentos firmes em defesa de um cinema menos hermético e autoral. Isto ficou bastante marcado no momento em que traduziu Dona flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976), clássico de Jorge Amado, para as telas, em meados da década de 1970.

Hoje, parece forçado, mas adaptar Jorge Amado nesta época beirava o atrevimento. Desde a década de 1960, o escritor baiano apostava em uma prosa que cantava de forma despudorada o gozo da existência, realçava as forças matriciais, mágicas e religiosas como geradoras de transformação social, deixando para trás o realismo socialista que o fizera reconhecido internacionalmente. Somente na década de 1970, conforme o sentido de “popular” deixava os emblemas da foice e do martelo para se enriquecer nos terreiros, feiras e prostíbulos, que o universo amadiano foi redimido pelo cinema. Numa entrevista dada à Filmecultura na década de 1980, Leopoldo Serran afirmou categoricamente: “Jorge Amado é um fabulista e por isto muitos intelectuais torcem o nariz para ele. Em suas fábulas, o povo é o herói e elas retratam o amor que ele tem pelo povo. (…) Fico pasmo de horror quando noto que não compreendem estas coisas”.1

Aqui, nestas poucas palavras em defesa de Jorge Amado, transparece o valor dado pelo roteirista a capacidade de fabulação, algo que sua adaptação do romance manteve intacta. Para muitos, Dona Flor e seus dois maridos (Bruno Barreto, 1976) é um dos mais bem sucedidos trabalhos de Serran justamente por isto: pelo agudo senso de sintetização da fábula e, acima de tudo, de preservação do enredo que, no livro, obedece à lógica da memória e da nostalgia. As idas e vindas entre o presente e o passado de Dona Flor, desencadeadas por sua viuvez, dá a Vadinho a pátina de uma lembrança mal dormida e, ao mesmo tempo, a transparência de uma alma penada, um íncubo sonhado, muito bem transposto pela obra cinematográfica. Mas, se compararmos a construção literária com a fílmica, veremos que esta última reduziu as oscilações temporais em blocos bem marcados de tempo, revelando o cuidado extra do roteirista com a legibilidade da trama, de sua sustentação espaciotemporal dentro de uma organização de cenas e sequências bem localizadas.

Defendendo Jorge Amado, portanto, Serran destacava no escritor as qualidades dramatúrgicas que lhe foram caras durante toda a vida. Demonstrava seu gosto por uma história bem contada e sua necessidade íntima de aproximação com a mística popular. Nas adaptações realizadas por ele subjaz a busca de uma escritura épica adequada à formação “sociológica” do Brasil, aproximando-o, com isto, das correntes fundadoras da antropofagia – embora seu “modernismo” fosse mais temático do que formal. Entre Ganga zumba (Carlos Diegues, 1964) e O quatrilho (Fábio Barreto, 1995)– dois filmes importantes tanto para o Cinema Novo quanto para a Retomada – coube o registro de um olhar atento à diversidade étnica brasileira, atenção também encontrada em Um certo capitão rodrigo (Anselmo Duarte, 1971) e A paixão de Jacobina (Fábio Barreto, 2002) sua última adaptação do livro de Luiz Antônio de Assis .

Certamente estas preocupações não foram exclusivas de quem adaptou, mas já se encontravam, em maior ou menor grau, nas obras de origem. Porém percebê-las não exime de Leopoldo Serran a responsabilidade de tornar determinados aspectos dos romances convergentes à sua própria noção de dramaturgia. Ele possuía uma visão bem particular do gênero épico, que se refletiu no modo como realçou o caráter de seus heróis “emprestados”. Somente o Capitão Rodrigo atua em conformidade com aquilo que se espera de um protagonismo heroico, embora seja um dos trabalhos menos queridos pelo roteirista. Por outro lado, Ganga zumba parece reticente em admitir a herança guerreira; Jorge Bragança, em Faca de dois gumes, age, mas a reação a seu ato toma proporções imprevistas; seu ensimesmado Ângelo Gardoni, protagonista de O quatrilho, vê impassivelmente a mulher ser assediada e sequestrada pelo sócio; suas heroínas também estão longe de serem convencionais, tornando suas transposições fílmicas numa galeria dentro da qual reina, de forma absoluta, a sombra melancólica do anti-heroísmo.

Uma das adaptações mais reveladoras destas nuanças criativas impostas pela mão de Serran é o filme Que é isto companheiro (Bruno Barreto, 1997). Sem dúvida, um de seus trabalhos mais polêmicos. Ao adaptar a obra, modificando determinados aspectos dramatúrgicos e formais do livro, Serran – assim como o diretor – deixou ali marcas muito contundentes de seu artesanato. Uma delas, como destacamos anteriormente: sua capacidade de sintetizar a trama, por mais complexa, numa fábula bem definida. Se pegarmos o livro O que é isto companheiro veremos que sua concepção espaciotemporal obedece aos caprichos da memória, de uma forma muito mais radical do que a encontrada em Dona flor e seus dois maridos. Ele se inicia no Chile, em plena queda de Allende, e vai tracejando curvas que muitas vezes se perdem ou se diluem no meio da fumaça e dos estopins da ditadura. Gabeira narra lá da frente, no momento da anistia. Aquele jovem engajado, através do qual manifesta suas resenhas sobre o Brasil pós-golpe, já não existe mais. Serran teve de materializar este fantasma. Deixou de lado as oscilações próprias da lembrança para focar naquilo que lhe interessava como narrador: o sequestro do embaixador americano.

Reduzir o livro a este trecho – o sequestro ocupa menos de ¼ de O que é isto companheiro – teve óbvias consequências sobre a trama. A primeira delas, o enfraquecimento da voz do protagonista e a abertura à apresentação de outras personagens, que adquiriram autonomia no filme. De um livro monocórdico, unilateral, Serran criou uma constelação de personagens que pulverizou os pontos de vista sobre um mesmo e único ato. Nas memórias de Fernando Gabeira as personagens só existiam através do seu olhar, enquanto que no filme os painéis exteriores aos deslocamentos do memorialista ganharam a denominação de “plots”. Pelo menos três podem ser apontados na versão cinematográfica: o dos guerrilheiros, seus preparativos para o sequestro do embaixador americano; o da vida cotidiana, familiar, do diplomata antes e durante a ação traumática e, finalmente, o dos agentes policiais utilizando-se da espionagem e da tortura para desarticular as células “terroristas”.

Este artifício tornou a narrativa mais dinâmica e cinematográfica, intercalando cenas para o melhor usufruto do suspense. Mas também incidiu diretamente sobre a constituição psicológica das personagens, e, deste modo, chegamos a segunda marca criativa de Leopoldo Serran: seu afeto pelo carácter oscilante dos heróis. Aqui, muito mais enfático por não ser completamente fiel às palavras de Fernando Gabeira, que, se não se autodenominou herói de sua saga particular, pouco fez para descrever detalhadamente a face do terror em sua vertente policial ou revolucionária. Há em O que é isto companheiro (livro) um distanciamento do passado quase brechtiano que, através de um humor refinado e um senso agudo de análise, encena as imagens da memória como uma farsa malsucedida. Aliás, a metáfora do teatro é utilizada com fartura no livro, sendo aproveitada em seus mais variados aspectos pelo roteirista. O sentido farsesco do golpe e das ações revolucionárias ganhou contraste redobrado pela escolha dos atores e pela direção carregada de Bruno Barreto.

E aqui retornamos ao nosso dilema inicial: pelo que se vê na tela, Serran trabalhou nos intervalos de uma prosa evocativa, revisionista, articulando um mundo sem heróis e sem mocinhos, jovens forçados a escolher uma posição, um lugar, um contexto, sem prever seus desdobramentos em direção à crueldade. Mas, neste caso, como separar sua mão da do diretor que pôs seu texto encenado diante do público? Como devolver a Serran o que é de Serran?

Talvez a melhor maneira de se encontrar algum esboço de resposta seja observando este gesto através de um texto solo, uma mirada nostálgica do passado publicada em 2006, pouco antes de sua morte: o romance Arara carioca. 2 A incursão no universo literário realizada por Leopoldo Serran espelhou o modo pelo qual Fernando Gabeira elaborou estilisticamente sua prosa e, ao mesmo tempo, devolveu ao mundo editorial um reflexo desviado de sua origem. Pode-se ler Arara carioca como um comentário extenso a respeito da construção dramática e ideológica de O que é isto companheiro, uma leitura crítica que reforça a autonomia formal adquirida no momento do escaletamento do filme, quase dez anos antes.

Construído como um panorama afetivo sobre sua geração, Arara carioca se bifurca entre o presente e o passado de Marco, um sujeito simples e despretensioso, que, enquanto deixa o corpo pender acima do chão, embalado pelo balanço de uma rede, avalia alguns momentos de seu passado. Como Brás Cubas, o protagonista do livro é um corpo sem substância – não sabemos quando e onde se narra a história –, tornando sua presença impalpável e sua existência dependente exclusivamente de suas memórias. Este dispositivo no livro em nenhum momento reduz o poder fabular de Leopoldo Serran, cuja concisão exclui qualquer avanço ou recuo demasiadamente brusco, que perca os leitores da linha do tempo escolhida. Ele mantem a narrativa estreitada a um período específico da vida da personagem, o início da década de 1970, e a dois acontecimentos desestabilizadores de sua existência pacata: uma paixão avassaladora pela jovem Laura, “mulher fatal”, e o seu envolvimento com Roque, líder da guerrilha urbana.

Em Arara carioca, Leopoldo Serran demonstra ser um grande frasista, transparece em vários momentos de sua escrita a facilidade em criar figuras de linguagem alusivas e poéticas. “A vítima é o carpinteiro de seu cadafalso”, “as palavras navegavam envoltas em fumaça como o suspiro de um dragão exausto”, deixam entrever o grande escritor que sustentava as mãos do roteirista. Se nos voltarmos para a construção de seu herói, Marco, então, veremos que para ele convergem anos de trato com criaturas fragilizadas, mais vitimadas por ações exteriores do que senhoras de sua própria jornada. O protagonista do livro vê, sem reação, Laura partir e se casar com um conhecido endinheirado; seu apartamento é transformado num “aparelho” revolucionário sem sua adesão ao projeto comunista. Ele parece boiar na superfície de forças históricas e passionais, num interessante contraponto ao engajamento político do autor de O que é isto companheiro.

Após chegar ao final das aventuras de Marco, entretanto, a pergunta permanece. Diante deste constante diálogo do roteirista com os diretores e com os escritores dos livros que adaptou, como encontrá-lo integralmente nas obras? E para quê? Congelar seu gesto, individualizá-lo, não se constituiria numa agressão à liberdade de um artista em perpétuo trânsito entre livros e câmeras, uma agressão às paisagens colhidas na interseção de uma arte compartilhada? Maior e mais gratificante trabalho seria levar este texto até o limite do movimento, pegar o romance Arara carioca e transubstanciá-lo, empurrando as personagens fixas no papel para o vórtice das lentes, para este olhar total, este pan-óptico narrativo que se criou no cinematógrafo e se dirige a outras e novas interfaces. Devolver a imaginação de Leopoldo Serran ao seu elemento de luzes e sombras. Torná-la viva, colorida e falante, reproduzindo o ato de um mestre para além dele e de sua época, traduzindo de forma dinâmica as maravilhas de uma criação impura, ciente de que o cinema, mais do que qualquer outra manifestação artística, não tem autoria.

 NOTAS

1Revista Filmecultura. n. 32. Fevereiro-1979. p.103.

2SERRAN, Leopoldo. Arara carioca. São Paulo: Girafa, 2006.

 

BIBLIOGRAFIA

SERRAN, leopoldo. Arara carioca. São Paulo:Girafa, 2006.

 

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