O que o cinema baiano tem? Para entender um pouco mais sobre o cenário atual da produção de cinema na Bahia, a revista CineCachoeira está programando uma série de entrevistas e críticas que mostrem a emergência de uma turma que aos poucos está saindo do silêncio e mostrando um trabalho cinematográfico de grande poder estético e narrativo. Vamos começar este mergulho na nova produção entrevistando Marcelo Matos, um dos roteiristas e diretores de Menino do cinco.
Com o sorriso leve de quem chegou do sul carregado de Kikitos, Marcelo Matos recebeu em sua casa a equipe de CineCachoeira para contar um pouco sobre a elaboração de um dos curtas baianos mais falados da temporada. Entenda um pouco do processo de realização desta pequena joia expressionista: do roteiro ao último take, um mergulho no lado sombrio da infância dos “sem rua”.
Guilherme Sarmiento
Eu achei Menino do cinco muito parecido com Couro de gato, quer dizer, ele é um contraponto interessante ao curta do Joaquim Pedro de Andrade. Os dois filmes se constroem a partir de uma cisão entre ricos e pobres, este confronto silencioso entre classes sociais, mas vocês optam por contar a história a partir da criança da classe média… Esta referência foi algo consciente pra você e o Wallace?
Marcelo Matos
Quem me apresentou Couro de gato foi Silvana, voltando lá do Cachoeira Doc. Cara, você tem que ver este curta, que ele é muito parecido com o seu, isto dois meses antes das filmagens começarem. Depois eu catei no Youtube e pensei: “olha que interessante!”, porque o roteiro de Menino do cinco foi construído como uma crítica a tudo que foi feito na Bahia até então, principalmente os curtas da retomada, quando o governo voltou a patrocinar os filmes aqui. Eles se pautavam, basicamente, em dois personagens: o menino pobre, que vem das comunidades, e o sertanejo. Me dava a impressão que a gente estava reproduzindo o ciclo da década de 60 e 70 e cheguei a pensar em escrever uma crítica sobre isto. Achei melhor fazer um filme. Por que a minha questão era porque um cineasta vindo da classe média não conseguia abordar a classe média? Exatamente aquilo que você teria mais propriedade pra filmar e a galera não se joga pra mostrar esta realidade? Então eu resolvi filmar do ponto de vista da criança que tem grana, eu filmei no prédio onde vivi minha vida inteira…
Guilherme Sarmiento
É no Itaigara? Na Pituba?
Marcelo Matos
É, na Pituba. A gente tem esta referência do Cinema Novo, mas a partir de um viés crítico, pois tínhamos tudo pra filmar do ponto de vista do pivete, porque eu trabalhei quatro anos com menino de rua e o discurso do filme foi construído a partir de observações que eles faziam sobre os meninos de classe média. Mas se fizéssemos isto, seria o maior clichê, um clichezaço…
Guilherme Sarmiento
Iam fazer o Couro de gato 2…
Marcelo Matos
É. O filé está no momento em que colocamos ali o nosso ponto de vista.
Guilherme Sarmiento
E um ponto de vista que não deixa de ser autocrítico, por que o garoto classe média espolia o menino de rua, rouba o cachorro dele…
Marcelo Matos
É uma inversão, né. Como eu trabalhei muito com menino de rua em Salvador eu comecei a pensar no outro lado da moeda, que é o “menino sem rua”. A nossa geração ainda pegou a rua como um espaço da sociabilidade, o espaço da brincadeira, mas hoje em dia não existe mais isto. Você vive nume espaço cercado de grade, com medo. Na minha época ainda tinha a viagem do skate, eu andava com a galera da periferia, tinha uma relação com a cidade diferente. Hoje quando eu passo perto do prédio que eu morei, é triste…
Guilherme Sarmiento
Como foi seu trabalho com o Wallace Nogueira, qual foi a contribuição de cada um na realização do filme?
Marcelo Matos
A coisa foi bem misturada, a gente trabalha junto já há algum tempo. Nos conhecemos na faculdade de filosofia e ciências humanas, em 2000. Trabalhamos em vários projetos juntos, não só em cinema, pois nossa formação é compartilhada: tanto em termos de leitura, de práticas também… Na verdade o processo do filme foi o seguinte: eu escrevi o roteiro, e depois eu apresentei um primeiro tratamento para Wallace e ele fez algumas alterações de duas ou três cenas. Aí eu chamei ele pra dirigir o filme comigo. Como era a minha primeira ficção e a gente tinha uma grande afinidade, não havia problema em compartilhar a direção. Só que eu queria que ele fizesse a fotografia, eu escrevi o roteiro pensando na fotografia dele, que eu vi nascer, que eu saco muito onde ele coloca a câmera, como lida com o foco etc. E aí eu perguntei como é que vamos fazer? Montamos a equipe da seguinte maneira: eu divido a direção com você. Como você vai fazer a fotografia, toda a parte da construção do tempo do plano é sua, é só afinarmos tudo antes para não perdermos muito tempo no set. Aí convidamos o Nicolas…
Guilherme Sarmiento
O Nicolas (Hallet) que fotografou o longa do Cláudio Marques e da Marília Hughes, Depois da chuva…?
Marcelo Matos
Não. Ele fez Carreto, Nego fugido… Porque a gente convidou o Nicolas? Porque a gente tinha experiência com vídeo e não com cinema. A gente veio do vídeo. E estávamos com muito medo, porque a tendência do Wallace é fechar o plano. Achamos interessante chamar o Nicola porque ele poderia abrir mais os enquadramentos, porque ele conhece melhor a lente, fotografou vários filmes. Aí ficou uma equipe superlouca, pois eu dividia a direção com Wallace, o Wallace dividia a fotografia com Nicola, e Nicolá ainda fazia o som, posicionando o boom em cena. Estávamos filmando dentro do apartamento e deveríamos ter uma equipe bem entrosada.
Guilherme Sarmiento
E as crianças?
Marcelo Matos
Quem fez a preparação das crianças foi Maryvonne Coutrot, uma atriz de teatro francesa, minha namorada, na verdade. A gente fez um teste com uns quarenta a setenta meninos, pra poder achar as personagens. Só que eles não apareciam….
Guilherme Sarmiento
Quem?
Marcelo Matos
Os dois meninos. Tinha uma que poderia ser e acabou ficando como coadjuvante… Chegou uma hora que me desesperei. Tinham atores muito bacanas, mas eles eram muito “fofinhos”, extrovertidos. Eu queria uma criança que fosse estranha, com um olhar profundo e isto não aparecia. Aí eu surtei: rapaz, eu vou achar esse menino na praça de alimentação de um shopping center, que é onde este tipo de criança frequenta. E aí foi engraçado: no momento que pisei na praça da alimentação do shopping Iguatemi o personagem apareceu. Eu disse, caralho, é ele! Perfeito: o modo como andava, o olhar, o jeitinho do corpo… E aí convidei pra fazer o teste de elenco e na mesma hora ele topou, ganhando o papel principal…
Guilherme Sarmiento
Todas as crianças estão bem no filme. A gente nota um trabalho em cima…
Marcelo Matos
Eu sou psicólogo também, né? Então isto ajudou um pouco a identificar. Eu descobri que eu tenho isso: quando eu procuro um personagem e olho pro ator, consigo sacar se o personagem está ou não nele, só com um pouco de conversa e observando a expressão de seu corpo. O trabalho maior foi transformar as crianças em atores, que sacassem a técnica: vou precisar que o personagem fique triste… Como é compor isto? Como acessar esta emoção em você? E neste sentido foi muito massa o trabalho de Maryvonne, porque ela foi muito sincera com os meninos, tratava as crianças sem essa de “cuti-cuti”. mostrando como funciona a interpretação pra cinema. E aí tem uma sequência que o Thomas (Oliveira) faz, que ele tá com o cachorrinho na mão, superfeliz, e quando o pai chega ele fica tenso, apreensivo e se entristece ao ser impedido de ficar com o bicho. Ele salta da alegria à tristeza num único plano sequência, com a câmera seguindo… Isto é…
Guilherme Sarmiento
Punk.
Marcelo Matos
(Risos) É, isto é punk. Engraçado, quando a gente fez um ensaio, no começo, quando pedíamos pra Thomas fazer algum exercício técnico, ele sentia muita vergonha, ele travava. Mas quando eu jogava ele na improvisação, pegava alguns trechos do roteiro e disfarçava, trabalhando seu núcleo emocional, ele dava texto, falava, interagia com Móia, se soltava. Aí eu perguntava, escuta aqui velho, cê viveu isto né? Aí ele olhava assim e afirmava com a cabeça. Eu escondia o roteiro dele, eu não queria que ele sacasse a história. Estava deixando o fim pra filmar por último. Até pra ele não pirar na loucura da personagem. Só que o pessoal da produção vacilou e ele achou uma cópia do roteiro no set. Aí ele chegou pra mim e disse: venha cá, eu sou o vilão da história, né? Ah, não, não é bem isso, respondi… Na última cena ( só deu pra fazer quatro takes), nos três primeiros takes ele rodou como se fosse um acidente; na última, ele fez essa viagem de que o menino era o vilão da história, um personagem problemático. Até então não tinha trabalhado esta questão com ele. E foi a cena que ficou: a que rola uma intencionalidade no ato, apesar de ser ambíguo.
Produção: Camila Mota
Fotos: Luís Nascimento
Entrevista: Guilherme Sarmiento