A 24 QUADROS

TEMPOS E MOVIMENTOS EM HELENA IGNEZ

[vimeo 55791083]

 

 

 Por Camila Yallouz e Glenda Nicácio

 

“- Eu sou simplesmente uma mulher do século XXI, sou um demônio antiocidental. Eu cheguei antes, por isso sou errada assim!” [1]

 

Subindo por um balão e desaparecendo no infinito das galáxias, Ângela Carne e Osso firmava o manifesto da mulher arrojada, de madeixas loiras e olhos provocantes, que roubou a cena, rompeu o argumento e transgrediu – ou melhor, transgride – os anos: Helena Ignez, a mulher do século que ainda não chegou. Natalia Barrenha fala em seu artigo dessa atriz da vanguarda como fala da Helena da mitologia grega, “uma Helena que, por tamanha beleza, provocou uma guerra”[2]. É na guerra, na experimentação e na vanguarda que encontramos Helena Ignez, não somente no passado, mas no presente, vislumbrando futuros.

Sua primeira aparição foi no curta metragem O pátio, financiado com o dinheiro das joias que Helena ganhou em um concurso de beleza, e também o primeiro trabalho do diretor Glauber Rocha, com quem foi casada por alguns anos. Estávamos em 1959, na virada para os anos sessenta e para uma nova forma de pensar, e a faculdade de direito que Helena cursava na Universidade Federal da Bahia já “não dava pé”. Por isso, ela abandona de vez o curso e parte para a carreira de atriz, invadindo os palcos e as telas com o jeito-helena-ignez-de-atuar, pois não existe outra definição para esse estilo tão próprio de representar.

Trata-se de um estilo híbrido, tecido tenramente entre as personagens e a própria Helena, que, seja em papeis naturalistas ou até mesmo nos experimentais, transborda irreverência e singularidade pelos cantos da tela, preenchendo o espaço e o tempo do filme com uma verdade obscena, depravada, a sua verdade: arte e pensamento em harmonia. Talvez por isso, ao assistirmos um filme com a sua participação, terminemos sempre com a sensação de tê-la conhecido um pouco mais. Antes de tudo, o trabalho da nossa atriz “maravilhosa e premiadíssima” [3] nos parece uma relação de generosidade: ela compõe os seus personagens com a força e o improviso da própria vida e eles, gratos, retribuem com nada menos que a lealdade cênica, dando espaço para que Helena componha cada gesto com toda a miséria e a subversão, a liberdade e o caos que movimentam não só a sua arte, mas a sua vida. Helena é busca, é a constância do movimento, e, por isso, o cenário das experimentações lhe encaixa tão bem.

Porém, antes de se tornar a deusa da irreverência, a garota que havia acabado de estrear com Glauber, participa em 1961 do longa metragem, A grande feira, de Roberto Pires; e, em 1962, – ano em que também torna-se mãe da pequena Paloma – estrela o O assalto ao trem pagador, de Roberto Farias. Depois disso, segue rumo ao Rio de Janeiro, e atua em O grito da terra, de Olney São Paulo, em 1964.  Nestes trabalhos, Helena Ignez nos apresenta uma maneira minimalista de atuar, onde a simplicidade de cada gesto constrói a delicadeza das personagens e das situações encenadas. E, neste sentido, uma de suas mais notáveis atuações é em O padre e a moça(Joaquim Pedro de Andrade, 1965), onde ela – garota performática, amante do movimento – de repente, a pedido do diretor Joaquim Pedro de Andrade, aparece nas telas do cinema com uma atuação que lhe era até então desconhecida, uma moça contida, quase sem movimentos.

“É, sem os braços, não movimentar… Deixar a figura mais neutra possível, contida. Em O Padre e a Moça, a personagem se encontra mesmo numa camisa de força, até que rompe. Rompe e é queimada. Então só no amor que ela consegue cortar essa prisão. O “sem braços” ali fazia parte de uma composição mais monolítica. (…)Sem monotonia nenhuma, porque a vida não pode ser monótona, e a arte ainda muito menos. Apesar de ser minimalista, não pode ter monotonia.”[4

É claro que a maneira singela da moça encantou público e crítica, rendendo uma indicação ao prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim e vários prêmios no Brasil. No entanto, estávamos ainda na década de 1960 e a atriz queria romper sempre mais – “eu queria botar pra quebrar a linguagem estabelecida, em todos os sentidos”, conforme disse em 2002 numa entrevista dada à revista Contra Campo.

Foi então que em 1967 ela participou do filme Cara a cara, de Júlio Bressane, com quem iniciaria um namoro e uma parceria de anos. No ano seguinte, Helena é chamada para atuar no filme O Bandido da luz vermelha (1968), o primeiro longa metragem do diretor Rogério Sganzerla, e um dos maiores ícones do cinema conhecido como marginal, saído diretamente da Boca do Lixo paulistana. Nas palavras do crítico de cinema Ruy Gardnier, “tudo que o corpo-de-atriz de Helena Ignez esperava para se tornar deparou-se com tudo que o gesto-de-diretor de Rogério Sganzerla gostaria de exprimir” [5], e, juntamente ao lado dele – seu fiel amor transcendente, tanto da vida quanto da arte – Helena se aliaria às mulheres da vanguarda, que, assim como ela, sentiam a necessidade de transitar pelo caos, personagens que, sem dúvida, haviam chegado antes, comoa prostituta escandalosa Janette Jane, que revela à atriz a sua grande vocação no cinema brasileiro: avacalhar os padrões, esculhambar os bons costumes.

Então, em 1969, ela, que até então era a famosa mulher do Bandido, decide se tornar Ângela Carne e Osso, “A Mulher de Todos”, filme considerado pelo crítico Jean-Claude Bernadet como o melhor filme brasileiro de todos os tempos.Aexterminadora número um dos homens revoluciona a forma de atuar no Cinema brasileiro. Depois dela era permitido socos e pontapés em meio a diálogos gritados, deboche, erotismo, vômitos e violência entre gestos megalomaníacos vulgares – mais do que uma questão de permissão, agora tornava-se uma questão de necessidade.

“Eu acho que o Rogério descobriu uma outra coisa em mim. Não que descobrisse, eu sabia que tinha, mas nunca tinha a oportunidade de fazer. Eu fiz um filme com o Rogério em que eu tinha uma incrível influência, não no filme, mas no que eu fazia. E a gente tem uma tal comunicação que um filme dele, naquele momento também teria que ser um filme meu. E eu tive essa possibilidade, uma liberdade incrível de fazer diabos, misérias. Como eu te digo, você tem que ver A Mulher de Todos que é uma outra coisa.”[6]

Helena Ignez realizou um número incrível de 12 filmes no período de 1968 a 1972, e, em todos eles, pode-se notar o improviso pulsante, característico de sua performance,  seja em Sem essa, aranha (1970), um filme pensado em função de oito plano sequencias, com pouco espaço para improvisação nas atuações, seja em Copacabana monamour(1970), com planos completamente inusitados que de fato exigiam um trabalho extremamente autoral dos atores.

Em 1972, Helena diz ter acontecido “uma guinada existencial” em sua vida, fazendo com que tomasse outro rumo, mas, é claro,de uma forma sempre muito ligada ao cinema e ao teatro. Ao lado de Sganzerla, ela viajou pela Europa, Inglaterra e África, encenando, experimentando o rock’n’roll e filmagens em super-8. Helena, nesse período, abraçou uma verdadeira “vida de monge”, ficando afastada do dia a dia das notícias do jornal e se dedicando inteiramente a esse novo estilo de vida, que agora incluía não apenas a filosofia oriental, mas o nascimento de suas filhas Sinai e Djin. Segundo a própria atriz, sua maneira de atuar se depurou depois desse período de afastamento, e diz que nunca vai deixar de atuar, porque, para ela, é mesmo uma espécie de religião “essa coisa de ser intérprete”.

Na década de 90, dedicou-se mais aos palcos, rodando o Brasil com várias peças. Dentre tantas, destaca-seSavannah Bay, que trabalha novamente com uma personagem de movimentos contidos, e que, segundo ela, só foi possível graças ao outro extremo uma vez realizado em A Mulher de todos. No cinema, retomou sua carreira com Perfume de Gardênia (1992) e, dentre outros projetos, filmou São Jerônimo (1999), um filme de Bressane–considerado por ela como o grande cineasta brasileiro de hoje.

É então que ocorre a virada do milênio, e Helena decide abusar de outros papéis, mas agora como diretora, realizando dois curtas – Reinvenção da Rua (2003) e A Miss e o Dinossauro (2005). Este último, feito no ano de homenagem a Rogério Sganzerla, é uma declaração de amor de Helena Ignez, com fragmentos de imagens antigas, de filmes como Sem essa, aranha, de amigos e músicas animadas que ditam o ritmo do filme. A musa aparece com seus cabelos louros e logo depois ouvimos na narração as falas de Sganzerla: “O cinema nada mais é do que um espelho do funcionamento da mente de cada um, das suas ações próprias e da sua estrutura interna. E nesse sentido, o cinema tem muito a ver com a vida”.

“As imagens dos filmes de Sganzerla e Bressane colocadas na tela, o churrasco filmado em uma super-8 desorientadora, as músicas entrando e saindo da narrativa, as sentenças de um Sganzerla jovem e extremamente lúcido que acompanham a obra servem não apenas ao início dos anos 70, mas principalmente ao início do século 21, momento no qual o terceiro mundo parece que nunca vai explodir e os sapatos continuam a sobrar.”[7]

Sua primeira direção de longa-metragem, Canção de Baal, em 2008, foi uma livre adaptação de Brecht, com uma câmera que procura sempre o inusitado e o diferente, adota uma narrativa não-convencional e lírica, fundindo linguagens e parodiando o machismo.Percebemos ainda referências aos pensamentos de Rogério Sganzerla, pulsante, não somente nesse filme, mas no cinema de Helena, que busca rememorar o agora, e o que está adiante.

 Não por acaso, Luz nas Trevas – A revolta de luz vermelha, lançado em maio de 2012, teve o roteiro escrito por Rogério Sganzerla em 2004, e não poderia haver ninguém melhor do que Helena para cumprir a missão de transformá-lo em imagem, lhe dando vida. A trama avança 30 anos depois de Luz Vermelha descabelar a polícia e a burguesia paulista, quando, ainda preso, descobre que tem um filho chamado Tudo ou Nada. Trata-se de um trabalho inspirador, nessa continuação de um dos mais importantes filmes da carreira de Helena, de Sganzerla, do cinemamarginal e do cinema brasileiro.

É assim que o Bandido retorna, em pleno século XXI e, ao lado dele, com suas madeixas vermelhas, está Helena Ignez, para quem a idade e o tempo não significam acomodação: hoje ela continua produzindo, atuando e dirigindo, sempre em busca… Afinal,existe em sua odisseia alguma coisa inacabada, não concluída, que a impulsiona a cruzar os tempos,e transformar seu ideal de liberdade em movimento e arte.

Este é o cinema de Helena, um cinema de invenção.

 

Camila Yallouz e Glenda Nicácio são alunas do quinto período do curso de cinema e audiovisual da UFRB.

 

REFERÊNCIAS

CANUTO, Roberta. O Bandido da Luz Vermelha [manuscrito]: por um cinema sem limite. Universidade Federal de Minas Gerais, 2006.

http://www.contracampo.com.br/82/festmissdinossauro.htm

http://www.feminafest.com.br/2005/homenagem.html.

http://www.contracampo.com.br/38/entrevistahelena.htm

http://duasoutrescoisasqueeuseidele.wordpress.com/2011/06/17/helena-carne-e-osso/

 

NOTAS


[1]Frase dita pela personagem Ângela Carne e Osso, em A mulher de todos (Rogério Sganzerla, 1969).

[2] Ensaio escrito para o Blog Duas ou três coisas sobre… Cinema: http://duasoutrescoisasqueeuseidele.wordpress.com/2011/06/17/helena-carne-e-osso/

[3]Helena Ignez em entrevista ao O Pasquim número 33, de 5-11 de fevereiro de 1970

[4]Helena Ignez em entrevista realizada por Daniel Caetano e Ruy Gardnier no dia 9 de abril de 2002, na Revista Contra Campohttp://www.contracampo.com.br/38/entrevistahelena.htm

[5]Ensaio escrito para o catálogo do Femina – Festival Nacional do Cinema Feminino http://www.feminafest.com.br/2005/homenagem.html.

[6]Helena Ignez em entrevista ao O Pasquim número 33, de 5-11 de fevereiro de 1970

[7]Crítica de Leonardo Levis à revista Contracampo em 2005, http://www.contracampo.com.br/82/festmissdinossauro.htm

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