UMA LEITURA DE ORLANDO
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Por Rita Lima
As primeiras observações de Virginia Woolf, ao nos apresentar Orlando (1928), é de que não há dúvidas a respeito do seu sexo. Logo em seguida, algumas páginas adiante, ela afirma o desejo do seu personagem: escrever, narrar, enchendo de versos muitas páginas abstratas, porém fluentes, sobre o drama humano – o vício, o crime, a miséria, eram seus personagens.
“Estava descrevendo, como todos os poetas jovens sempre descrevem, a natureza, e, para determinar precisamente um tom de verde, olhou (e nisso mostrou mais audácia que muitos), para a própria coisa, que era um loureiro por baixo da janela. Depois disso, naturalmente, não pode mais escrever. Uma coisa é o verde na natureza; outra coisa na literatura. Entre a natureza e as letras parece haver uma natural antipatia; basta juntá-las para que se estraçalhem.” (WOOLF, 1978, p.10)
Trata-se aí do Orlando jovem, capturado, no entanto, pelo mesmo tema que durante os 400 anos de sua existência irá persegui-lo: narração e desejo. A vontade de aproximar linguagem e natureza nos dá uma imagem do temperamento de Orlando. Virginia Woolf nos conta que ele, “sob a transitoriedade do verão gostava de sentir debaixo do corpo o espinhaço da terra – que por sucessão de imagens se lhe afigurava a dura raiz do carvalho, ou o lombo de um grande cavalo, ou a coberta de um navio agitado – qualquer coisa na verdade, contanto que fosse firme, pois sentia necessidade de alguma coisa a que pudesse amarrar seu incerto coração.” (1978, p.10)
Orlando se sentia firme no balé incerto da natureza, no vai e vêm, no lusco fusco, na intensidade do movimento que ora é uma coisa, ora outra, deixando no seu rastro uma imagem ambígua, oscilante. Essa imagem ambígua, oscilante, é o que nos interessa extrair da leitura de Orlando. Ela opera em um circuito de visibilidade que se contrapõe aos grandes quadros da perspectiva Renascentista, que vêm informando uma visão ocularcêntrica da modernidade2. E se contrapõe ainda aos discursos sobre sexualidade que marcaram a construção da psicanálise, principalmente no que diz respeito à constituição do sujeito através do desejo centrado na figura do falo.
Visibilidade e sexualidade, eis os dois eixos nos quais a narração de Orlando se apóia para liberar um outro regime de funcionamento das imagens. Imagens que passam do masculino para o feminino, da paixão para a melancolia, do claro para o escuro, da luz para a sombra, enfim, de opostos inconciliáveis que se conciliam, se perpassam. Desse modo, Orlando afirma ainda uma particular concepção de escrita: uma escrita montada em um desejo anterior às hierarquias do falo para alcançar o gozo. Um desejo disseminado pelo corpo da natureza, que, ao erotizar a letra, funciona como uma escritura desejante, sempre incompleta, sempre criando outras possibilidades de mundos.
É nessa particular concepção de escrita, ou de narração, que vamos operar. Para isso, usaremos a tradução brasileira de Orlando (Cecília Meirelles) e o filme Orlando, a mulher imortal, adaptado e dirigido por Sally Potter4, em 1992. Não vamos opor os dois registros, literário e cinematográfico, privilegiando o específico no formato de cada um deles. Vamos antes tentar operar na liberação dessa imagem ambígua ou nessa particular concepção de visibilidade, que é a principal formulação da narração montada no desejo de Virginia Woolf. Afinal, literatura e cinema trabalham com imagens, e é com elas que vamos prosseguir.
Orlando, um romance de formação.
Orlando pode ser considerado um romance de formação. Trabalha na construção de um sujeito e de uma escrita singular, que vão se aperfeiçoando no tempo, produzindo um estilo de ser e narrar determinados. O tempo cronológico do romance segue de meados de 1500 até 1928, ano da conclusão do relato e da publicação do romance. Considerado pelos historiadores como um período chave de mudanças na nossa forma de pensar o mundo e suas relações, a época em que o livro se situa coincide com o Renascimento ou os primórdios dos nossos tempos modernos.
Nos 400 anos através dos quais a vida de Orlando passa, um dos primeiros signos de aprendizagem é o amor. Orlando, jovem fidalgo inglês, escolhido da Rainha Elizabeth I, apaixona-se loucamente pela estrangeira russa, Princesa Marucha Stanilovska Natacha Iliana Romanovitch. Ele a chama de Sacha, “para abreviar, e porque esse era o nome de uma raposa branca, russa, que tivera em pequeno – criatura suave como a neve, mas com dentes de aço, e que o mordeu tão ferozmente que seu pai a mandou matar.” (1978, 25)
Ao conhecê-la Orlando pergunta:
“– A quem havia amado, que havia amado até ali? … Olhando-a, derretia-se a espessura de seu sangue; o gelo tornava-se vinho nas suas veias; ouvia as águas fluírem e os pássaros cantarem, mergulhava em água profunda, via a flor do perigo crescendo numa fresta; estendia a mão.
– Tenha a bondade de passar-me o sal, diz Sacha.
– Com o maior prazer, madame, respondeu Orlando, falando em francês com acento perfeito.” (1978,22)
Orlando amava uma estrangeira e falava francês na corte inglesa. Sally Potter destaca a cena no filme, e acrescenta a pergunta de Sacha:
– Como se comunicavam os ingleses com o estrangeiro, já que não falavam outras línguas?
– Orlando responde – Eles falam o inglês mais alto ainda, madame”.
Orlando ama a diferença quando escolhe Sacha. Essa diferença está projetada tanto no signo da cultura quanto no amor pelo outro, estrangeiro. O que não impede que ele sofra a perda e o abandono do seu objeto de desejo.
Desiludido pelo amor, Orlando passa 7 dias e 7 noites em sono profundo, nem vivo nem morto, num estágio de oscilação entre a exaltação do amor perdido e os portões da morte e suas promessas de esquecimento. Ao despertar, o retiro e a solidão povoam o novo tempo na vida de Orlando, que se abre outra vez para a poesia. Nick Greene, o poeta do momento, encontra Orlando preocupado em decifrar as tecnologias da escrita poética. Como escrever, para quem, quando? Green quer viver para a glória de uma literatura que está sempre no passado, na Grécia antiga, sem vínculos com o seu tempo. Mas, para chegar lá, é preciso uma pensão de trezentas libras por ano, pagas trimestralmente. E Orlando paga pelos conselhos do poeta. O aprendizado chega outra vez através da dor. Greene ridiculariza o fidalgo e sua pretensão à escrita. Com a desilusão, Orlando queima numa grande fogueira 57 obras poéticas, conservando apenas O carvalho, seu muito curto sonho de adolescente. Aos 30 anos, livre de uma vasta montanha de ilusão, Orlando declara: “Seja eu fulminado, se algum dia escrever mais uma palavra para agradar a Nick Green, ou à musa. Mau, bom, ou medíocre, escreverei de hoje em diante o que a mim me agradar”. (1978, p. 56)
A nova desilusão de Orlando concorre para afirmar um novo tipo de escrita e um elogio à obscuridade, como a forma que permite ao espírito seguir seu destino, desimpedido. Essa obscuridade é afirmada em toda a narração. Não como uma morbidez desiludida, mas como uma constatação desapaixonada da transitoriedade das coisas do mundo, uma afirmação das passagens na construção da coerência do mundo, na ordem das suas imagens. É numa visibilidade precária que Orlando avança, tateando, seguindo em frente. O tema da melancolia está disseminado em todo relato. Vemos o personagem refletir e experimentar o sentimento melancólico como uma passagem necessária na aventura da sensibilidade humana. No filme isso se reflete na iluminação das cenas, que usa quase sempre cores onde predominam os tons escuros em contraste somente com a pele muito branca de Orlando, e a neve da paisagem européia. A imagem melancólica é necessariamente uma imagem precária, em lusco fusco, passando entre claro e escuro, indefinidamente.
Reconfigurando e redistribuindo imagem e identidade
Podemos interpretar a melancolia positivamente? Ou ao menos, podemos propor para ela outra cadeia de agenciamentos, que não a fixação no amor perdido, na qual o sujeito nunca desiste de investir no passado e dessa forma se torna incapaz de transferir seu amor para um novo objeto, como quer Freud?
Trabalhando com imagens precárias de vídeos contemporâneos, imagens danificadas que vão desaparecendo pelo desgaste do suporte ou por opção estética, a autora Laura Marks6 afirma que sim. Reavaliando a melancolia, Marks propõe que essas imagens dispersas, melancólicas, trabalham também com identificação e subjetividade, podendo ser pensadas de forma diversa da que propõe a psicanálise de Freud e Lacan, ao afirmarem que a identificação com a diferença necessariamente aniquila o self, já que a identidade é construída no horror da alteridade. A autora acredita que a melancolia evocada por uma imagem que desaparece (fading images) pode produzir não horror, mas um olhar amoroso. O entendimento de Freud e Lacan sobre a melancolia coincide sintomaticamente com a convicção Ocidental de que o mundo gira em torno do ego. Uma concepção, portanto, atada a coerência de um ego que se quer completo. Se pudermos imaginar um estado subjetivo onde o ego luta para existir sem investir na ilusão de sua própria completude (Freud / Lacan), então podemos supor que a melancolia não impede o amor, mas simplesmente mantêm o amor na presença do conhecimento de que o objeto amoroso está perdido (estará sempre sendo perdido). Uma outra imagem do self aparece desta exploração do amor e da perda que não a do sujeito ansiosamente isolado da psicanálise: a de um self profundamente interconectado com outros. Podemos agora pensar a melancolia como um signo da modernidade que se quer ambígua diante do projeto fálico da tecnologia e da visibilidade total.
Assim também propomos interpretar as passagens de Orlando pelo amor e pela desilusão, pelo claro e escuro, pelo masculino e pelo feminino. Podemos ainda dizer que seu projeto de visibilidade passa necessariamente por essa imagem ambígua que produz uma identificação flutuante, passando sempre entre territórios, conjugando mundos.
Na passagem seguinte vamos encontrar Orlando no estrangeiro, em Constantinopla, a serviço da diplomacia inglesa. Virginia Woolf nos avisa que “esse relato é lamentavelmente incompleto, já que a revolução e o fogo destruíram todos os papéis de onde se poderia obter informações sobre Orlando. Com fragmentos assim é que devemos fazer o possível para reconstituir a vida e o caráter de Orlando por este tempo.” (1978:66) Este é o momento da passagem mais famosa do relato de Virginia Woolf: a mudança do sexo masculino para o feminino de Orlando.
Logo após a insurreição que abala Constantinopla e a sutil estabilidade na qual transcorre a vida de Orlando no estrangeiro, encontramos outra vez nosso personagem naquele período obscuro, entre o sono e a morte, pelo qual havia passado com a perda de Sacha. Orlando volta a ficar desacordado 7 dias e 7 noites seguidas, e ao acordar, eis a revelação: ele é ela. O fidalgo se transforma em Lady Orlando. Para nossa surpresa, no entanto, e apesar da estabilidade do relato se apoiar só em fragmentos, Virginia Woolf declara: “… a mudança de sexo, embora alterando seu futuro, nada alterava de sua identidade.” (1978, p. 77)
Diferente de Freud, para quem anatomia é destino, Virginia Woolf não subordina identidade ao sexo. Nessa passagem, o que vemos é a contraposição entre duas formas de pensar: a relação masculino / feminino; uma apoiada nas convenções sociais e outra na invenção.
Na travessia entre Constantinopla e Londres Orlando especula sobre as oposições masculino X feminino, tentando apurar o sentido de seu sobressalto. Vamos ouvi-la:
“Tornou a sentir o indescritível prazer com que vira Sacha pela primeira vez, havia cem anos. Naquele tempo perseguira; agora escapava. Qual o êxtase maior? O da mulher, ou o do homem? Não será talvez o mesmo?” (1978, p.86)
Na Inglaterra, no convívio com a sociedade londrina, Sally Potter (1992) acrescenta outros tantos clichês – “… O intelecto é um lugar solitário não apropriado para mulheres. Elas, sem marido ou pai, estão perdidas.”; “… As mulheres não têm desejos, só afetações.” – culminando com a comunicação de que Orlando tivera todos seus bens confiscados, até que a corte inglesa decidisse se ele e ela eram a mesma pessoa, com direito a posses, títulos e propriedades.
A ambigüidade e o estado mental desorientado e atordoante de contrapor modos tão esquemáticos e aprisionantes do ser masculino/feminino leva Orlando à Natureza e à obscuridade.
“… É melhor, pensou, estar vestida de ignorância e pobreza, que são os obscuros ornamentos do sexo feminino; é melhor deixar a outros o governo e a disciplina do mundo; é melhor estar livre da ambição marcial, do amor ao poder e de todos os outros desejos varonis, desde que se possam fruir em toda a plenitude os mais sublimes arrebatamentos do espírito humano, que são : contemplação, solidão, amor.” (1978, p.89)
O encontro entre Marmaduke Bonthrop Shelmerdine e Orlando é o encontro entre masculino e feminino livre das convenções e dos maneirismos atribuídos aos papéis sexuais. O vai e vêm entre masculino e feminino encarnado no encontro amoroso dos dois torna invisível o específico de cada um deles. São um homem e uma mulher que se pertencem e ao mesmo tempo são profundamente singulares e independentes. Ele parte com o vento sudoeste e dá um filho a Orlando, que dessa forma recupera seus títulos e posses diante da Corte inglesa. O encontro amoroso dos dois é uma das cenas mais tocantes do filme de Sally Potter. No filme, logo após o encontro na natureza, o casal montado em um cavalo preto dá de cara com uma locomotiva, também preta, toda sons, aço e velocidade que lhes corta o caminho. Orlando pergunta – O que é isso ? É o futuro, Shel responde. E uma cortina de fumaça faz desaparecer a cena toda.
A imagem do futuro está ligada ao encontro desse masculino e feminino conectado à liberdade, e também ao fog, a uma paisagem aonde não se pode distinguir nada ao certo. Uma imagem obscura, lugar do sublime arrebatamento do espírito humano.
Podemos talvez nos referir a esta imagem como à imagem ambígua a qual nos referíamos no começo. Podemos ainda associá-la à aventura e ao enigma que Joel Birman, na sua crítica a psicanálise, propõe como a figura da feminilidade7. Uma figura para além do falo, onde o que está em jogo é uma postura voltada para o particular, o relativo, o não controle das coisas. O lugar da singularidade do sujeito e suas escolhas. Bem distante da homogeneidade abrangente da postura fálica. Vale lembrar aqui que o autor sublinha ser esta postura, não atada ao homem ou a mulher, enquanto gênero sexual. Ela remete, talvez, a outra postura do humano, marcada pelo singular da feminilidade. Visibilidade e sexualidade podem ser pensadas diversamente. Orlando nos indica o caminho.
Rita Lima é professora e pesquisadora da UFRB, Curso de Cinema e Audiovisual, com Projeto de Pesquisa Cinema Expandido. Atualmente coordena o PET Cinema, desenvolvendo inúmeras ações de pesquisa e extensão na região do Recôncavo Baiano.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, in VII (1901-1905). Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (ed.eletrônica). Imago Editora, Rio de Janeiro, 1969.
________ Luto e Melancolia, in XIV (1914-1916). Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (ed.eletrônica). Imago Editora, Rio de Janeiro, 1969.
JAY, Martin. Scopic Regimes of Modernity, in Vision and Visuality (ed.Hal Foster). The New Press, N. York, 1998.
POTTER, Sally (dir/roteiro). Orlando, A Mulher Imortal. Filme , 1992.
WOOLF, Virginia. Orlando. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1978.