UM ÉPICO CONTEMPORÂNEO.
Por Angelita Bogado
Helena Ignez, atriz consagrada pelo cinema brasileiro, apresenta ousadia e originalidade em seu longa metragem de estreia Canção de Baal (2008). Inspirada na obra do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), Ignez reverencia o teatrólogo, mas também o subverte. Esta leitura apontará o diálogo com a estética brechtiana, suas influências e rupturas.
O filme Canção de Baal se apresenta como uma experiência estética de ruptura, promove o estranhamento como forma de tocar o espectador. Uma obra que conjuga diferentes manifestações artísticas e não segue o velho sistema de gêneros: literatura, teatro, música, fotografia e filosofia estão, aqui, amalgamados pela linguagem cinematográfica singular de Ignez.
Canção de Baal escolhe como locação uma fazenda de café no interior paulista, no meio da Mata Atlântica. A narrativa é apresentada sob um fundo niilista. Baal (interpretado por Carlos Careqa) é o poeta e cantor que recebe um convite de Meck para um jantar oferecido em sua homenagem. Ali, Baal passa a ser sarcástico com os demais convidados, escandalizando-os com a acidez do seu verbo e a liberdade de suas ações.
A influência de Bertolt Brecht aparece de imediato: o filme Canção de Baal é inspirado na primeira peça de Brecht intitulada Baal (1918). Este texto não pertence ao período mais estudado do autor: o do teatro épico. Nessa primeira fase, a sociedade burguesa é negada através de personagens anárquicos que estão a sua margem. Este traço de niilismo presente no primeiro texto teatral de Brecht é o que estimula Helena Ignez exaltar o espaço mágico e a narrativa anárquica em seu longa de estreia.
Nas primeiras críticas ao longa Canção de Baal foi comparado ao filme do dinamarquês Lars Von Trier, Dogville. Em entrevista concedida ao Estado de São Paulo, em agosto de 2006, Helena Ignez pareceu não se intimidar com os paralelismos feito pela recepção, e disse, “Assim como Lars Von Trier, eu também fui influenciada por Brecht.”
Em sua fase mais madura, Brecht desenvolveu a ideia do teatro épico, ele acreditava que o aparelho teatral havia perdido o controle sobre si e se convertido em tribuna. Passou a defender o palco como lugar de transformação, e para isso criou o teatro de tese, com forte caráter político. Brecht acreditava “que de um homem tudo se pode fazer”. Com esta máxima brechtiana, Trier veste sua protagonista e nos deixa despidos em Dogville. Já a diretora brasileira prefere despir seu protagonista Baal para nos mostrar o quanto estamos vestidos.
Nesta perspectiva de influências das escolas brechtianas, Cancão de Baal estaria para o teatro drámático, assim como Dogville estaria para o épico. No entanto, tudo aparência. Defendemos que Ignez se aproxima do teatro dramático para atingir um efeito épico e que Dogville flerta com o teatro épico para promover o drama.
A linguagem de Baal, ao romper com o nosso horizonte de expectativa, nos move e nos transforma. A tela se torna um espaço de sacralização. O projeto cine-teatro, inspirado em Brecht, de Helena Ignez, exige a participação ativa e móvel do espectador: é preciso romper a superfície da tela, os limites da representabilidade, para que a fruição se torne um ato celebratório. Canção de Baal necessita de leitores dispostos a tocar a invisibilidade das imagens e sons.
O diálogo com a produção inicial e tardia de Brecht
O primeiro texto do jovem Brecht, Baal (1918), se apresenta como um teatro de transição para a sua fase mais madura, conhecida como teatro épico. Uma dramaturgia com marcas expressionistas, menos político-social e mais voltada para a tragédia individual, tem influência direta dos autores Rainhold Lenz (1747-1792) e Friedrich Schiller (1759-1805).
Lenz e Schiller fizeram parte do movimento literário alemão Sturm und Drang. Esses autores emprestaram a impulsividade da juventude aos seus personagens, indivíduos contrários a ordem social vigente, aniquilados pelo sistema, e que sucumbem diante do mundo. (nova forma de organização social, nascimento das grandes cidades, um sistema mecanicista).
Para esta análise é preciso lembrar que Baal, assim como os personagens do Sturm und Drang, propõe uma volta à natureza, valorizando a canção popular e recusando o modelo de vida imposto pela metrópole. Sobre a produção inicial de Brecht, Anatol Rosenfeld comenta:
“[…] de início tende ao expressionismo, e evade-se no exotismo romântico dos esgotos, reduzindo o mundo humano à vida vegetativa […] numa obsessão voluptuosa pela decomposição. Este sentimento de vida manifesta-se na forma de baladas popularescas que, narrando casos escabrosos ou aventuras de gente associal, imitam o estilo de feira e o canto das empregadas domésticas, de mistura com ênfase do estilo bíblico”. (ROSENFELD, 1993: p.153)
Na impossibilidade de haver uma aceitação do modelo social vigente, Baal mergulha num mundo de libertinagem e exige, para o espírito criador, o direito à poesia, à fantasia e à irracionalidade. Essas foram as reivindicações dos jovens dramaturgos do Sturm und Drang e de tantos outros movimentos artísticos, como os que Helena Ignez integrou durante sua carreira de atriz (Cinema Novo e o Cinema Marginal), que buscaram na liberdade de expressão e na linguagem revolucionária uma forma de contra cultura.
A nostalgia de uma vida integrada à natureza não deve ser lida como um escapismo. De certa maneira há uma tomada política na recusa ao modo de vida brutal das grandes cidades. A arte “expressionista” se coloca contra o homem robotizado e coisificado, e desconstrói a realidade objetiva através da projeção da subjetividade. Os diálogos não são propriamente entre os personagens, a fragmentação do texto e o jorro de palavras e ideias constroem uma ponte com o público. Sobre o expressionismo, Bornheim diz que “o enfraquecimento do diálogo como que destitui a subjetividade e tende a transformar o discurso do ator numa forma de comentário” (BORNHEIM, 1992: p. 27).
Canção de Baal traz vários diálogos aparentemente soltos que se direcionam diretamente ao espectador. Como na sequência de abertura, em que a personagem diz: “Não entendi nada”. Com este comentário, o espectador percebe que é preciso se perder para se achar.
Portanto, o comentário travestido de diálogo fornece uma racionalidade explicativa à aparente irracionalidade da obra Canção de Baal. O diálogo em crise e o embaralhamento das palavras em Baal, no filme, deflagram algumas faces da crise do homem contemporâneo: os avanços tecnológicos e a perda da humanização nas relações, a conscientização ecológica e a escassez dos recursos naturais, a manutenção da miséria e o desperdício. São estratégias de linguagem adotadas por Helena Ignez que distanciam Canção de Baal da escola dramática de Brecht e o aproximam da estética épica.
No filme, a quebra da ilusão – o distanciamento proposto pelo épico de Brecht – parece apontar um modelo documental. Não necessariamente enquanto gênero, mas enquanto linguagem.
Sob a narrativa de Canção de Baal paira certa imobilidade, não há progressão nem um encadeamento linear das ações dos personagens. A imobilidade trabalhada promove um desconforto muito grande nos espectadores. Ela nos envenena enquanto indivíduos sociais. Este efeito é quebrado pelo emprego do documental. A linguagem documental realiza dentro do filme um movimento contrário, criando mobilidade no interior do drama, uma quebra no roteiro (como diria Jean-Louis Comolli). Abre espaço para uma ruptura do modelo e, assim, promove o projeto brechtiano de distanciamento, reflexividade e mobilidade do indivíduo. Helena Ignez declarou: o bom cinema ou é documentário, ou é teatro.
Baal sentimental ou ingênuo?
Em Cancão de Baal vemos o desabamento dos cenários sociais. A aparência da personagem Baal engana. No filme de Helena Ignez, Baal, nome do deus fenício, arquétipo do mal, ao negar a sociedade também apresenta uma aura de pureza.
Para compreendermos a ambiguidade da personagem do filme de Ignez, vamos retomar as teorias de Friedrich Schiller. O dramaturgo que influenciou Brecht criou um conceito sobre poesia ingênua e sentimental que se mostra ainda hoje bastante produtivo e entendemos ser bastante apropriado para este estudo. Antes, é preciso esclarecer que, para o período de Schiller, poesia é um termo empregado para todas as narrativas de sua época: teatro, poesia e prosa. Por isso, podemos estendê-lo, sem nenhum constrangimento, à narrativa cinematográfica.
Para Schiller, os ingênuos são os poetas, os artístas clássicos da antiguidade, indivíduos não cindidos capazes de sentir e pensar em total harmonia com a natureza. Já os sentimentais buscam a conciliação entre arte e natureza perdida pelas sociedades modernas.
A atividade primordial que distingue o ingênuo do sentimental está no ato reflexivo do poeta. O escritor moderno deve reconduzir o ser humano à natureza por meio da razão; a partir de sua atividade intelectual e artística ele pode desenvolver as potencialidades presentes na criança. Portanto, o termo “sentimental” está ligado à reflexividade do poeta, muito distante do poeta sentimental e impetuoso do Sturm und Drang.[1] Para Márcio Suzuki, “O ingênuo e o sentimental, […], distinguem-se pelo fato de o primeiro referir-se a uma maneira natural ou instintiva de criar, ao passo que o segundo se destaca por um procedimento eminentemente reflexivo.” (SUZUKI, 1998:p.31).
Baal esbanja uma liberdade pueril, no entanto, suas ações são de um resgate consciente. Em sua postura de aparente libertinagem podemos perceber uma profunda crítica sócio-cultural.
O protagonista de Baal é construído de forma alegórica. Trata-se de um anti-herói, um poeta alcóolatra, absolutamente terreno e essencialmente lírico. O Baal, de Brecht, foi condenado pela crítica. Naquele momento, ele foi visto como um autor inabilidoso e sem competência no desenvolvimento das personagens. Muito desta crítica se deve à comparação a sua produção tardia, considerada mais madura.
A junção dos elementos díspares profano e sagrado, divino e diabólico, intuição e reflexão, presente e passado conjugam-se em Baal. Em uma definição schilleriana, o cine-teatro Cancão de Baal é unidade representativa da poesia “sentimental.”
Um jornal de Trieste, na Itália, declarou que “a vanguarda brasileira estava nas mãos de uma garota de setenta anos”. Mesmo desfilando personagens dignos dos anos 60 e 70, o filme de Ignez traz frescor à produção cinematográfica nacional contemporânea. Com o seu indomável Baal, a diretora buscou a unidade e a harmonia de outrora, que só pode ser alcançada através da construção poética intencional.Realizou uma narrativa que explode a unidade de ação e explora dramaticamente um personagem a margem das convenções. Suas escolhas são conscientes. Musa do Cinema Novo e do Cinema Marginal, Ignez concebe Canção de Baal como símbolo da sua carreira.
Angelita Bogado é professora assistente do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.Tem experiência na área de comunicação e letras, com ênfase em Literatura Alemã, Teoria Literária e Cinema. Coordena o Grupo de Extensão Cine Caos. A sua pesquisa está voltada, principalmente, para o estudo das narrativas de si no documentário contemporâneo.
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. O que é teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In.: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BORNHEIM, Gerd. Brecht a estética do teatro. Rio de Janeiro: Graal. 1992.
BRECHT, Bertolt. Baal. In.: Teatro completo em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e terra. 1986, volume1.
COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder. Trad.: August de Tugny, Oswaldo teixeira, Ruben Caixeta. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008
ROSENFELD, Anatol. História da literatura e do teatro alemães. Campinas, SP: Perspectiva, 1993.
SCHILLER, Friedrich. Poesia Ingênua e Sentimental. (Tradução. pref., notas de Márcio Suzuki). São Paulo: Iluminuras, 1991.
SUZUKI, M. O Gênio Romântico: crítica e história da filosofia em Friedrich Schlegel. São Paulo: FAPESP/ Iluminuras, 1998.
[1] Sobre isso, no prefácio de Poesia Ingênua e Sentimental, Márcio Suzuki declara: “Para Schliller, é indispensável que se marque rigorosamente o limite entre o universo poético (certamente muito mais amplo) que pretende descrever com o adjetivo sentimental e a Empfindsamkeit histórica, adstrita na Alemanha a época do Sturm und Drang , movimento do qual ele fora, ao lado de Goethe, um dos expoentes. Entende-se nesse sentido, sua condenação daquele “mal da sentimentalidade e dos tipos choramingas que, pela má interpretação ou arremedo de algumas obras excelentes, começou a predominar há dezoito anos na Alemanha. Portanto, ao optar pelo vocábulo sentimentalisch, Schiller parece fazer uma escolha consciente, pondo seu conceito ao abrigo de confusões com o sentimentalismo dominante sobretudo na época de sua juventude.” (SUZUKI,1991, p.25)