ENTREVISTA COM HELENA IGNEZ

UMA PERSONAGEM MAIOR DO QUE A VIDA

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Quando chego a São Paulo, uma surpresa: entro em um taxi conduzido por uma mulher. Dona Violeta, uma senhora de cinquenta anos, possui a curiosidade metafísica comum a todos os taxistas. Com o olhar atento ao trânsito, pergunta-me de onde venho e para onde vou. Esta é a senha para que se crie um fugidio vínculo costurado entre uma manobra e outra. Pergunto-lhe se havia outras taxistas como ela na cidade. Numa frota de duzentos carros, ela era a única mulher. Aquele acontecimento soou para mim como um sinal de boas vindas, já que pisava numa das maiores cidades do mundo com a missão de entrevistar uma artista a partir da qual a palavra mulher passou a significar “revolução”. Mesmo sem saber, Dona Violeta ciceroneava minha entrada neste universo feminino expandido pela ação destemida de Helena Ignez, a homenageada deste número de Cinecachoeira.

A Mercúrio Produções localiza-se nas imediações da Rua Augusta, parte da geografia da cena alternativa paulista. Das boates onde prostitutas se contorcem em passos de pole dance às pequenas salas de stand up onde os atores exercitam a economia do gesto, Helena respira no ambiente transgressor e criativo dentro do qual as personagens de sua lavra adquiriram corpo. Ângela Carne e Osso estaria à vontade ali, tal como o Bandido da Luz Vermelha um dia esteve ao ler os letreiros luminosos de sua narrativa cáustica. Personagens, como mesmo disse a atriz, “maiores do que a vida”, e, talvez por isto, tão divisíveis no horizonte da imortalidade, capazes de escavar passagens que desviam o contingente de sua trajetória comum.

Junto com meu amigo Cristian Borges, cineasta e professor do curso de cinema da USP, fomos ao encontro desta que é uma das criadoras do cinema brasileiro moderno. Com seus múltiplos dons, fez da vida um lugar maior ao interpretar e dirigir estes personagens que lhe ultrapassaram.  Conheçam um pouco sobre esta baiana de Salvador, mulher de cinema, numa entrevista exclusiva dada para a Revista Cinecachoeira.

Entrevista Cristian Borges e Guilherme Sarmiento

 

Guilherme Sarmiento: Tanto em Canção de Baal como em Luz nas Trevas, a gente percebe a mão de uma cineasta já madura, pronta, e fica a pergunta: por que você demorou tanto para dirigir um filme?

Helena Ignez: Baal foi 2009, mas eu já tinha estreado com dois filmes antes, em 2006, A miss e o dinossauro – bastidores da Belair, realizado para uma mostra sobre Rogério Sganzerla de forma muito automática, impulsiva, porque havia a necessidade de colocar aquelas imagens em circulação. Um material que vinha filmando desde a década de 1970, hoje considerado uma preciosidade histórica, além de uma fotografia linda em Super 8. Montei e fiz o filme a partir dessas imagens.

Cristian Borges: Um filme de bastidores?

Helena: Era uma espécie de making off sobre a produtora Belair: nós filmávamos indistintamente, Júlio (Bressane), Rogerio (Sganzerla), Ivan Cardoso e eu, era um material coletivo. Seria um novo filme da Belair, mas acabou não sendo montado. Não caberia também a mim uma disputa com Rogério, não fazia sentido, mas houve um momento em que surgiu a necessidade de me expressar, aproveitar minha experiência como atriz para ir um pouco além e romper algumas barreiras. Em 2003 e 2002, antes de A miss e o dinossauro, comecei a fazer um média, A reinvenção da rua, que o Rogério montou, filmado aqui em São Paulo e em Nova York.

Guilherme: O Rogério foi um parceiro muito importante em sua carreira. Como era o set de gravação, havia liberdade para criar, era uma criação conjunta?

Helena: Tínhamos muita liberdade, todos os atores que trabalhavam com ele, porque Rogério conhecia os atores com quem trabalhava. Éramos instigados a fazer coisas. Era bem o método do Rogério: instigar com humor, amorosamente. Não era aquele diretor que briga, grita, com o ator, entra em conflito, pois na minha geração havia certo conflito. Hoje isto não acontece porque há um intermediário, que é o preparador de atores. Então, se ocorre algum desentendimento, não chega no set. Rogério sabia o que ele poderia esperar, e gostava de ser surpreendido. Se o ator desse “a mais”, aquilo era aproveitado no filme. Ele escalava “não atores” atores, como Otavio Terceiro, que chegou a trabalhar com Sérgio Cardoso, mas a carreira dele não foi por ai. Ele fez do Otávio uma grande “persona”, uma figura significativa dentro de sua obra, retirando dele mesmo, Otávio, a caracterização que desejava. Rogério sabia trabalhar com o ator, o cinema dele tinha esta sabedoria: Jô Soares, Lilian Lemmertz, Maria Gladys, são grandes performistas. Os personagens vêm com esse gosto crítico, próprio de quem viveu a transição da década de 1960 e 1970. São personagens maiores que a vida.

Guilherme: Você considera Ângela Carne e Osso, de A mulher de todos, seu melhor trabalho com o Rogério?

Helena: Realmente aquilo foi uma sorte, deve ter sido mesmo o meu melhor trabalho…

Guilherme: Pra mim, você, a Norma Bengell e a Leila Diniz formam o grande trio de mulheres que ajudaram a revolucionar os costumes no Brasil. Atrizes marcantes por representarem papéis que deslocavam a mulher de seu lugar. Ângela Carne-e-Osso repercutiu na época? Como foi a recepção?

Helena: A “quase” sub intelectualidade torceu muito o nariz para o filme, exatamente pela questão do erotismo, da liberdade, do anarquismo… A intelectualidade de esquerda deu uma “passada” no filme. O pessoal do Cinema Novo… Uma parte da crítica, não. Jean Claude Bernadet há poucos meses atrás disse que A mulher de todos é o melhor filme brasileiro. Ele adora o filme! O Paulo Emilio também gostou, os irmãos Campos, mas o que predominava no Brasil, como pensamento naquela época, era o Cinema Novo. Então o Cinema Novo não deu o aval…

Cristian: Você acha que os cineastas sentiam-se acuados pelo Cinema Novo?

Helena: É claro que se sentiam, né? O sucesso de A mulher de todos realmente mexeu na panelinha que fazia aqueles filmes chatos. O Cinema Novo dialogava com um publico muito restrito. Eles se posicionavam contra o grande publico, contra a herança da Chanchada, porque queriam fazer um cinema intelectual, um cinema para festivais. E fizeram.

Guilherme: E como é que você ficava nessa rixa, já que contribuiu enormemente pro Cinema Novo ser o que é, atuando em O pátio, A grande feira, O grito da Terra, O padre e a moça…?

Helena: Eu nasci no Cinema Novo e com o caminhar através da linguagem do cinema fui fazendo escolhas de modo natural. Todo o caminho foi consciente, desde Salvador, fazendo O pátio, onde descobri que, mesmo vendo todas as Chanchadas da Atlântida, rido muito com Grande Otelo e Oscarito, não me adequava àquela linguagem. Com O padre e a moça eu me satisfiz no sentido de ter atingido um patamar muito interessante de trabalho, de atriz Stanislaviskiana, com um naturalismo sofisticado, e ai surgiu o Bandido da luz vermelha

Guilherme: E através do bandido você foi trabalhar com Rogério…

Helena: Trabalhar com Rogério já é uma marca. Significa um trabalho especial. Então foi fácil trilhar ali até um determinado momento. Depois eu abandonei o cinema para encontrar outras linguagens. Na verdade, com a morte de Rogério foi que de novo eu entrei de cabeça no set de filmagem, como lá no começo. Agora dirigindo e produzindo, pelo menos assumindo a produção, que eu sempre fiz de uma maneira obscura.

Cristian Borges: Você, além da necessidade de se expressar através do cinema, tinha, digamos assim, alguma dívida para com o Rogério ao realizar Luz nas trevas?

Helena: Não, não uma dívida, mas uma necessidade de levar à frente esse roteiro, de estabelecer um diálogo.

Amigo: Eu digo nesse sentido de uma missão de um modo de dar continuidade a um trabalho que foi interrompido com a morte dele…

Helena: Mas isso nem foi pensado, foi obrigado: uma ideia que me tomou… Estava com uma responsabilidade de dirigir um roteiro dele. Para mim não era fácil.

Guilherme: Ele deixou outros roteiros?

Helena: Muitos outros. O difícil é conseguir levar adiante, conseguir financiamento. Tem um muito interessante que se passa no nordeste, no sertão.

Guilherme: Qual o nome do roteiro?

Helena: É Trono manchado de Sangue, mas que foi registrado na Biblioteca Nacional como O capitão do cangaço.

Guilherme: Que legal: um filme de cangaço escrito pelo Sganzerla…

Cristian Borges: O trono manchado de sangue é o Macbeth dirigido pelo Kurosawa. Tem a ver?

Helena: Tem a ver. Acaba tendo porque é um épico. Ele ia fazer com Gilberto Gil, estava tudo afinadinho. Era o próximo projeto de Rogério. Aí apareceu uma oportunidade de fazer o Luz nas trevas, que ele chamava de B2… O capitão do cangaço é um roteiro muito interessante e agora, com essas histórias de que Lampião era gay, ia ser maravilhoso fazer. Eu li uma reportagem grande falando sobre isso, dizendo que ele gostava de costurar e tal…

Guilherme Sarmiento: Acho que os filmes que você fez, apesar de serem desbocados, tem uma marca feminina muito forte. Por exemplo, em Canção Baal, as mulheres cumprem um papel fundamental na narrativa. Elas se entregam de corpo e alma ao protagonista, que é um grande canalha…

Helena: O Baal é um filme acerca do machismo. Seu protagonista é extremamente machista, altamente escroto, apesar de muito talentoso, um grande poeta, músico… As mulheres ali também fazem o jogo dele, elas têm a capacidade de amar, mas são quase idiotas. Uma se suicida, a outra é escorraçada por ele. Baal é um desastre com as mulheres. Tentei construir um personagem meio Chapliniano também, ele tem muito do Oscarito, um jeito esquisito…

Cristian Borges: Você viu versão do Baal com o Fassbinder, que foi feita pra tv na década de 1970, se não me engano, muito interessante…

Helena: Ele dirigiu?

Cristian Borges: Quem dirige é Volker Schlöndorff. Fassbinder interpreta Baal. Ele tem um pouco dessa coisa, de ser meio grosso, feio, cafajeste, uma personalidade muito intensa que ajudou a dar vida ao personagem.

Helena: Que interessante… Eu não sabia.

Guilherme: Você viu alguns filmes para realizar Canção de Baal?

Helena: Sim, especialmente as adaptações de Brecht. Um filme que me influenciou bastante pela energia, mas que não tem muito a ver, foi Sem essa aranha

Guilherme: Eu achei muito legal aproveitar Brecht, a voz dele no filme torna tudo muito impactante. Mas existem certas desconstruções que não entendi muito bem. Por que você colocou Einstein ali?

Helena: Eu não aguentava mais o peso do texto de Brecht no filme. Quando eu vi na montagem, achei que precisava de algo para equilibrar a história. Einstein foi um personagem que sempre me fascinou, um gênio total, inspirador, que não era apenas um cientista. Lia também clássicos indianos, tinha uma espiritualidade. Eu adoro aquela fotografia com a língua de fora, uma figura performática, maravilhosa! Comecei a ler muito sobre ele, suas biografias, livros que você compra em banca de jornal. Também pesquisei sobre a visita dele ao Brasil: as palavras dele no filme foram retiradas de seus textos. Como os hippies, falava muito da natureza; tinha aquela coisa de ser distraído: se perdia andando em volta da universidade, nas montanhas, uma figuraça mesmo, além de mulherengo. Fui seduzida por ele.

Cristian Borges: Por que você resolveu fazer o Baal antes do Luz nas trevas?

Helena: Eu estava muito mais próxima de Brecht. Baal, sempre me intrigou, pois foi um musical realizado antes da Ópera dos três vinténs, uma semente dos musicais Brechtianos.

Cristian Borges: E o Luz nas trevas? Como foi dividir a direção?

Helena: No Luz nas trevas eu trabalhei intelectualmente sozinha. O Ícaro (Martins) apareceu em seguida, pelo lado da produção mesmo, da captação de recursos, da formatação do projeto. Ele conseguiu captar quase dois milhões de reais em quatro editais, durante dois anos. Conseguiu um financiador bem importante, que realmente adorou o projeto. Não é que Luz nas trevas foi “apadrinhado”, mas foi um pouco protegido, uma proteção que o Rogério nunca teve, e que eu não teria sozinha, então foi por ai. Até certo ponto foi legal, mas depois Ícaro perdeu o pé com o contrato onde eu dei muitas liberdades, muitas regalias. Começou a criar conflitos internos com a direção de arte, com os atores, comigo, com o diretor de fotografia, e eu segurando a barra, segurando… A partir daí a coisa travou. Acabou afastado da montagem, porque ele queria que o filme fosse montado completamente quadrado e, aí, houve o rompimento. Ele me processou de uma maneira muito boba, logo depois de Luz nas trevas ser selecionado para Locarno. Pelo contrato, nos créditos, o nome dele deveria ser colocado na frente do meu, mas toda a imprensa, sem que ninguém solicitasse nada, me destacou na divulgação do festival. Então, ele fotografa uma coisa deste tamanho, entrega ao juiz e me acusa de quebra de contrato. O processo foi aberto no momento em que o filme entrou no Festival do Rio… Menos de um mês depois, eu estava com o melhor advogado de São Paulo.

Guilherme: Quanto foi o filme todo?

Helena: Dois milhões e seiscentos. Baal foi zero.

Cristian Borges: O crítico e cineasta francês Luc Moullet, num livro publicado há algum tempo, cunhou a expressão A politica dos atores, invertendo um pouco a lógica da “política dos autores” criada pela Nouvelle Vague, reivindicando um papel autoral para intérpretes como Jean Pierre Léaud, Anna Karina, etc. Pedro Guimarães, um amigo meu que atualmente faz pós-doutorado na ECA, está trazendo esta teoria para cá e aplicando-a no cinema brasileiro. Uma das atrizes escolhidas para a análise foi você, além do Matheus Nachtergaele e o Grande Otelo. Eu queria saber se identifica esta marca, trabalhada desde o início de sua carreira, na sua experiência de diretora?

Helena: A verdade interior. O que eu quero mostrar em tudo o que faço é isso: dentro da “mulher de todos” existe uma verdade cinematográfica fortíssima. Num trabalho de ator, mesmo o arquifalso é verdadeiro. Naquele momento existe a atuação. Veja o Matheus: carregar esta função não é fácil, por que tem essa “mediunidade”, entre aspas, tem uma incorporação.

Guilherme: Como foi dirigir o Ney Matogrosso?

Helena: Foi muito bom, mas não o orientei a receber o personagem; foi um processo mais intelectual, no sentido de fazê-lo compreender as palavras, o sentido delas. O Ney fala muito bem e o deixei livre para fazer as coisas do jeito dele, com veemência, pois é muito veemente, e possui um mundo interior forte.

Guilherme: Chamar cantores ou músicos populares para interpretar personagens de cinema parece ser uma marca do cinema Udigrudi. Sganzerla, Bressane, faziam isto regularmente: Caetano Veloso, Arrigo Barnabé, Gonzagão trabalharam nos filmes deles. Você também herdou isto, né?

Helena: Isto vem do meu gosto cinematográfico, de minha formação. Com 10, 11 anos eu vi todos os musicais da Metro, com suas grandes estrelas, Fred Astaire… O cinema americano dessa época, dos anos 50, atraía muito publico.

Guilherme: Você busca esta linguagem popular nos seus filmes?

Helena: Sim. Dos novos filmes que estão sendo lançados agora, o da Lúcia Murat, Uma longa viagem, Girimunho, que é maravilhoso, da Clarisse Campolina, o Luz nas trevas parece dialogar mais com o público, talvez pela música ser uma elemento atrativo, facilitar o acesso.

Cristian Borges: A figura de Ney já estava no roteiro antes ou não?

Helena: Desde que eu adaptei o roteiro, a parte do Ney já estava lá, essa era a essência. Aí eu tive a ideia da performance – no Bandido da luz vermelha o Paulo Vilaça já cantava o tempo todo sem ser cantor, então por que o Ney não iria cantar?

Guilherme: É interessante esta predominância dos personagens masculinos nos seus dois filmes: A canção de Baal e Luz nas trevas. Não pensa em dirigir uma história com um protagonista feminino?

Helena: No meu próximo projeto, baseado na peça Ralé, de Gorki, existe um fortalecimento dos personagens femininos. Convidei o Ney pra participar também. É um filme que dialoga com as teorias antropológicas do Eduardo Viveiro de Castro, tendo a Amazônia como centro das questões que hoje mobilizam o mundo. Considero este pensamento como herança da semana de arte moderna, que também influenciou demais o cinema brasileiro. Agora finalizo uma produção, produto de uma oficina que dei no Rio de Janeiro, onde predominaram mulheres, chamada Em busca de um filme.

Guilherme: Quem fez a adaptação de Ralé?

Helena: Fui eu, mas não chega a ser um roteiro adaptado, mas inspirado. O filme não tem o peso, o drama da peça de Gorki.

Guilherme: Baal também é uma adaptação livre…

Helena: Mas Baal é mais Brecht do que Ralé é Gorki. Quero algo mais alegórico, sem comprometimento maior com a arte social do dramaturgo russo. Vou lidar com a experiência da Ayuasca a partir de um grupo anárquico de passagem pela Amazônia.

Guilherme: Você se enquadra dentro da estética e das inquietações vindas do cinema conhecido como marginal, onde não há um comprometimento com o realismo clássico. Tem um dialogo muito forte com o teatro…

Helena: Tenho uma ligação com o teatro, mas também com as artes plásticas. Já fiz um trabalho de artes plásticas fora do Brasil, na Suíça, chamado Eletric Sganzerland.  Na época fizeram uma grande homenagem a minha trajetória de atriz, exibindo mais de vinte filmes. Fiquei honrada, mas achei engraçado ser reconhecida em outro país, tudo muito surreal. Foram dez meses de preparação da mostra.

Cristian Borges: Foi ideia de algum brasileiro?

Helena: Não, foi de Marina Mottin, curadora do Festival I Mille Occhi in Trieste, que organizou uma mostra belíssima, de um carinho enorme, cheia de detalhes: tinha abajur feito com fotos minhas, aventais também, coisa de primeiro mundo mesmo. Fiquei encantada!

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