FEMINA

CONTRIBUIÇÃO PARA UM CINEMA MAIS FEMININO

[vimeo 54336614]

Por Paula Alves

 

  A mulher no cinema

 

Segundo Buet (BUET, 1999: p.4-19), nas primeiras décadas do cinema, as mulheres estavam presentes principalmente como atrizes e assistentes. A presença na direção era rara. O cinema de mulheres desponta na Europa especialmente nos anos 1970, carregando a identidade dos movimentos feministas, introduzindo uma nova dimensão à nossa percepção da história e do papel das mulheres, e contribuindo para a evolução dos modos de representação feminina no século XX.

Nos EUA, hoje em dia, as mulheres podem ser encontradas em posições chave na indústria do cinema. Alguns dos maiores estúdios são dirigidos por mulheres, diretoras estão fazendo filmes de grandes orçamentos, e o número de produtoras é cada vez maior. No entanto, executivos do film business, como Howard Rodman (diretor da Divisão de Roteiro da Escola de Cinema e Televisão de USC[1]) e Barbara Corday (primeira mulher presidente da Columbia Picture) acham que estúdios de cinema são tradicionalmente uma cultura masculina e que os homens em altos cargos não se sentem muito confortáveis trabalhando com mulheres.

Alguns argumentam que a indústria do cinema é uma indústria como outra qualquer nos EUA, e que os donos dos estúdios determinam os filmes que vão ser produzidos e o quanto se investirá neles, com base nas perspectivas de lucro. Os donos dos estúdios ainda são predominantemente homens.(TREMILLS, 2005: p. 45).

Segundo Tremills, eles ainda acreditam nas diferenças entre filmes masculinos e femininos. Ação e terror vendem para homens. Comédia romântica e drama vendem para mulheres. Segundo esses rótulos, diretores fazem mais dinheiro. Filmes de mulheres são mais difíceis de vender, especialmente com protagonista feminino.

Se as “histórias de homens” são as que têm perspectivas de fazer dinheiro, o estereótipo se estende para as pessoas que são contratadas para escrever, dirigir, fotografar e editar o filme, segundo Howard Rodman. Mulheres seriam mais apropriadas para fazerem filmes femininos; filmes femininos não fazem dinheiro; consequentemente, as mulheres têm baixa presença entre roteiristas e diretores.

Na tabela 1 podemos observar a participação das mulheres em funções chave nos 250 filmes de maior bilheteria no mercado interno norte-americano entre 1998 e 2006.

 

Tabela 1

Mulheres em funções chave nos 250 filmes de maior bilheteria, por função – EUA

Ano

1998

2000

2006

Diretoras

9%

11%

7%

Roteiristas

13%

14%

10%

Produtoras executivas

18%

16%

16%

Produtoras

24%

24%

20%

Editoras

20%

19%

21%

Fotógrafas

4%

2%

2%

Fonte: LAUZEN, 2010.

 

Um termômetro muito usado no cinema mundial para avaliar a atuação de estrelas ou diretores é a premiação da indústria americana, o Oscar. Somente em 2010  uma mulher, Kathryn Bigelow, recebeu este prêmio criado pela Academia 82 anos antes. Até então somente três diretoras haviam sido indicadas para a categoria Melhor Direção. Na categoria Melhor Roteiro, 94% dos prêmios ficaram com os homens ao longo desse quase um século de premiação.

            Já no Festival de Cannes – um dos mais importantes da Europa –, em 2010, nenhum filme dirigido por mulheres concorreu na principal competição de longas metragens. Muitos foram os protestos dos festivais de mulheres na Europa. Em 2011, quatro diretoras disputaram os principais prêmios, marcando a 64ª edição do festival como a edição que reuniu o maior número de mulheres na disputa pela Palma de Ouro, e uma delas foi premiada: a francesa Maïwenn Le Besco ganhou o Grande Prêmio do Júri.

Em 2012, foi a vez do Festival de Roterdã se curvar ao talento feminino: todos os principais prêmios foram para três filmes de diretoras estreantes: a chilena Dominga Sotomayor, a chinesa Huang Ji e a sérvia Maja Milos. No entanto, em Cannes, novamente, nenhuma mulher concorreu na principal competição.

 

 

Presença feminina no Cinema Brasileiro

 

No Brasil, até os anos 1930, temos apenas uma mulher na direção, considerada a primeira diretora a aparecer no cenário do cinema brasileiro, no final da fase do cinema mudo: Cléo de Verberena. Nos anos 1940, apenas duas novas diretoras estreiam na direção de longas-metragens: Carmem Santos e Gilda de Abreu (MIRANDA, 1990).

Nos anos 1950, algumas mulheres passaram a exercer funções técnicas, como continuidade e montagem. Na direção cinematográfica, duas novas debutantes: Carla Civelli e Maria Basaglia.

O prestígio alcançado pela atividade cinematográfica nas décadas de 1960 e 1970 – decorrente especialmente do movimento Cinema Novo –, aliado a uma série de ações governamentais, a criação de cineclubes, revistas especializadas, festivais e cursos de cinema (UFF, UnB e USP), contribuíram para a ampliação da presença feminina nos sets de filmagem (PESSOA, 1989).

No entanto, nos anos 1960, apenas quatro mulheres estreiam na direção cinematográfica no Brasil: Zélia Costa, Sonia Shaw, Rosa Maria Antuña e Walkíria Salvá.

Em 1969 é criada a Empresa Brasileira de Filmes S. A. – Embrafilme. Em 1976, cria-se o Conselho Nacional de Cinema – CONCINE (RAMOS, 1983). Nos anos 1970, aumenta consideravelmente a produção audiovisual brasileira. Se entre 1961 e 1970 foram lançados 439 filmes de longa-metragem brasileiros, entre 1971 e 1980 a produção dobrou, chegando ao impressionante número de 904 películas realizadas.

Com a chamada Lei Sarney (Lei n° 7.300), de 1985, deu-se início a captação de recursos para a cultura junto a empresas privadas (MORENO, 1994). Nesse momento, um grande número de realizadoras começa a atuar. Dentre os diversos temas explorados pelas documentaristas figura o da situação da mulher na cultura e na sociedade. Já as ficcionistas privilegiam temas polêmicos e ousados, abordando a liberação sexual feminina e criticando a transformação de seus corpos em objeto de consumo (PESSOA, 1989).

A base de dados utilizada neste trabalho confirma que o aumento da participação feminina na direção é significativo nessa década: dos anos 1970 para os anos 1980, a presença percentual feminina aumentou 85%. Doze mulheres estrearam na direção cinematográfica nos anos 1970 e vinte e duas nos anos 1980.

Em 1990, o presidente Fernando Collor extinguiu o Ministério da Cultura, a Embrafilme, o Concine e a Lei Sarney. Essas medidas causaram uma grande crise no cinema brasileiro. A produção no país, que vinha numa média de 89 filmes/ano na década de 1980, despencou para 33 filmes/ano na década de 1990.

Com a Lei Rouanet de incentivo à cultura, a Lei do Audiovisual, específica para a captação de recursos, mais a criação da Secretaria do Audiovisual, inicia-se a recuperação da produção fílmica brasileira a partir de meados da década de 1990, que é marcada pelo reconhecimento internacional, pelo grande número de novos autores e pelo aumento da presença criadora das mulheres (OTTONE, 2005).

Entre 1991 e 2000, 32 diretoras estreiam em longas-metragens, no entanto, muitas delas tiveram uma única, algumas duas experiências, sem dar prosseguimento a suas carreiras. A década de 1990 viu surgir um significativo aumento da participação percentual de filmes dirigidos por mulheres. Entre o período 1981-1990 e o período 1991-2000, o percentual de filmes de longa metragem lançados no Brasil dirigidos por mulheres cresceu 247% – mais do que na última década (entre os anos 1991-2000 e 2001-2010, o aumento foi de 35%).

Em 2001, é criada a Agência Nacional do Cinema – ANCINE. A produção audiovisual brasileira volta a crescer e ultrapassa pela primeira vez a marca dos mil filmes de longa metragem lançados em uma década – entre 2001 e 2010 são lançados 1067 filmes. Durante este período, estrearam na direção 162 mulheres, de acordo com os registros da nossa base de dados.

A seguir um resumo dos resultados encontrados na pesquisa. A tabela 2 apresenta as proporções de mulheres desempenhando funções chave nos filmes de longa-metragem produzidos no Brasil entre 1961 e 2010. Verifica-se que em todas as décadas a proporção de filmes dirigidos por mulheres é muito baixa, no entanto, esta proporção aumentou significativamente ao longo das décadas estudadas.

 

Tabela 2

Proporção de mulheres em funções chave nos filmes de longa-metragem, Brasil, 1961-2010

Décadas

Função 1961_1970

1971_1980

1981_1990

1991_2000

2001_2010

Total

Direção

0,68

1,77

3,27

11,35

15,37

6,87

Roteiro

0,68

2,43

3,60

9,51

13,78

6,48

Produção1

0,68

2,77

4,17

13,50

23,71

9,99

Fotografia2

0,00

0,33

0,45

0,00

3,19

1,13

Fontes: SILVA NETO, 2009; Filme B; AdoroCinema; Guia Kinoforum, 2011.

  1. Produção inclui dados de produção, produção executiva e direção de produção.
  2. Fotografia inclui dados de direção de fotografia, fotografia e câmera.

 

 

Comparando-se a porcentagem de filmes dirigidos e roteirizados por mulheres percebemos que, nas últimas décadas, há mais filmes dirigidos do que roteirizados por elas – 11,35% dirigidos em comparação a 9,51% roteirizados entre 1991 e 2000, e 15,37% dirigidos em relação a 13,78% roteirizados entre 2001 e 2010. No total, a diferença não é grande. Enquanto as mulheres dirigiram 6,87% dos filmes, elas assinam o roteiro de 6,48% entre 1961 a 2010, o que demonstra que a participação feminina na direção e no roteiro cinematográfico, quantitativamente, é semelhante.

Percebe-se que em todas as décadas, e no total do período, há mais filmes produzidos por mulheres do que roteirizados ou dirigidos. De toda forma, a baixa participação feminina nesta área – não chega a 24% entre 2001 e 2010 – surpreende, especialmente nos últimos dez anos, porque existe uma falsa impressão entre os profissionais do mercado audiovisual de que as mulheres teriam uma boa participação na produção cinematográfica.

Comparando-se com as demais funções, a área onde a participação feminina é menor, em todas as décadas, é na fotografia, passando apenas um pouco de 1% no total do período estudado, e de 3% na última década.

Os dados para protagonismo foram atribuídos a partir das sinopses dos filmes e, como essa informação estava disponível em poucos filmes para as décadas mais antigas, utilizamos nesta análise os dados referentes aos filmes lançados entre os anos 1991 e 2010.

A partir da tabela 3 verifica-se que em todas as décadas o número de filmes protagonizados por mulheres é menor do que os protagonizados por homens e protagonizados por ambos, ou seja, homens e mulheres.

 

Tabela 3

Distribuição percentual de filmes de longa-metragem por sexo do protagonista

Brasil, 1991-2010

Protagonista

Década

Sexo

1991_2000

2001_2010

Total

Homens

63,50

56,33

58,00

Mulheres

13,80

18,18

17,16

Ambos1

15,03

22,96

21,11

sem informação

7,67

2,53

3,73

Fontes: SILVA NETO, 2009; AdoroCinema.

1. Filmes protagonizados por homens e mulheres.

 

A variável “protagonista” pode ser considerada como uma proxy(aproximação) de representação de homens e mulheres nos filmes. Isto é, quanto maior o número de filmes com protagonismo feminino, maior a representatividade das mulheres através do cinema, visto que o protagonista é aquele personagem que normalmente tem um objetivo, uma meta, é o líder de um grupo no alcance desta meta, o olhar a partir do qual se conta a história.

Os filmes protagonizados por mulheres na última década representam apenas 18,18% do total, ou seja, tanto atrás quanto diante das câmeras vemos ainda uma defasagem da participação das mulheres frente aos homens no cinema brasileiro contemporâneo.

 

FEMINA – Festival Internacional de Cinema Feminino

 

            Os festivais direcionados a produções dirigidas por mulheres surgiram, principalmente, na Europa, nas décadas de 1970 e 1980, acompanhando o desenvolvimento do movimento feminista e o aumento substancial das realizadoras. Na América Latina, aconteceram, em diferentes países, nas décadas de 1990 e 2000, tentativas de realização de eventos cinematográficos com estas características. Alguns tiveram continuidade e outros não.

O primeiro festival de filmes dirigidos por mulheres com continuidade ocorreu no Brasil pela primeira vez em 2004, o FEMINA – Festival Internacional de Cinema Feminino. O fato de ter surgido nos anos 2000 não é por acaso. Assim como na Europa, veio como resposta ao crescimento das mulheres dentro do mercado audiovisual brasileiro. Por outro lado, seu surgimento nos anos 2000 revela certo atraso das iniciativas latino-americanas no sentido de dar visibilidade a esta produção, já que experiências nesta área há três décadas eram promovidas em vários países europeus.

O FEMINA é um evento dedicado à exibição majoritariamente de filmes dirigidos por mulheres, destacando a participação feminina na história do cinema e lançando as obras mais recentes das diretoras contemporâneas. Também exibe filmes co-dirigidos por homens e mulheres, e filmes dirigidos por homens com temática ou protagonista feminina. Tem como objetivo valorizar a participação da mulher no cinema, na arte e na cultura, estimular jovens diretoras, incentivar a produção de filmes com temática feminina e debater questões de gênero.

Em julho de 2012, o FEMINA realizou sua 9ª edição, na qual recebeu mais de 800 inscrições de filmes de 61 países diferentes, dos quais selecionou e exibiu cerca de 90 trabalhos entre curtas, médias e longas metragens, de todos os gêneros (ficção, documentário, animação e experimental), de 24 países diferentes, distribuídos em duas Mostras Competitivas, uma Internacional e outra Brasileira.

Além das exibições de filmes, o Femina realiza, todos os anos, um seminário composto por ministros, cineastas, produtores, atrizes, pesquisadores, jornalistas, representantes de organismos internacionais, professores e outros convidados que possam contribuir com os debates acerca da igualdade de gênero e direito das mulheres. O FEMINA acredita que a exibição de filmes conjugada aos debates contribui para a ampliação da participação profissional da mulher no cinema e na cultura, para a diminuição do preconceito, para a divulgação de representações que fujam aos estereótipos.

O FEMINA também realiza um trabalho de formação de plateia junto às instituições de ensino, de atendimento à mulher, disponibilizando transporte e alimentação para que alunos, professores e diretores da rede pública, mulheres de associações, cooperativas e projetos de geração de renda, público que dificilmente teria acesso a estes bem culturais, tenham a possibilidade de interagir diretamente com os palestrantes, as equipes das produções apresentadas, e outros convidados.

É importante destacar que em outros países onde surgiram eventos cinematográficos dedicados ao cinema feminino, a produção de filmes dirigidos por mulheres apresentou crescimento, indicando a importância destas inciativas para a diminuição das desigualdades de gênero que ainda imperam no mercado de trabalho brasileiro. Enquanto os homens predominarem nos cargos de comando do cinema, as decisões referentes ao planejamento estratégico, seleção de pessoal e execução orçamentária nesta área estarão majoritariamente em suas mãos. E, mais importante: a gerência do imaginário, da representação das relações de trabalho, das relações familiares, dos valores e modismos, também ficará neste mesmo domínio.

A conquista de uma igualdade de gênero plena passa inevitavelmente pelo aumento da presença feminina nos cargos de comando em todos os campos, inclusive na arte, mídia e cultura, em paralelo à disseminação de representações positivas e não estereotipadas das mulheres – dois caminhos inseparáveis e complementares.

 

Paula Alves é Mestre em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela ENCE/IBGE. Presidente do Instituto de Cultura e Cidadania Femina. Diretora do Femina – Festival Internacional de Cinema Feminino. E-mail: paula@feminafest.com.br

 

Referências

ADORO CINEMA. Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/>

ALVES, Paula. O Cinema Brasileiro de 1961 a 2010 sob a Perspectiva de Gênero. Dissertação apresentada no curso de Mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. Rio de Janeiro: 2011.

BUET, Jackie. Films de Femmes – six générations de réalisatrices. Paris: Editions Alternatives, p. 4-19, 1999.

FEMINA – Festival Internacional de Cinema Feminino. Disponível em: <http://www.feminafest.com.br>

FILME B. Database Brasil. Disponível em: <http://www.filmeb.com.br/database>

LAUZEN, Martha. The Celluloid Ceiling. San Diego: 2010.

MIRANDA, Luiz F.A. Dicionário de Cineastas Brasileiros. São Paulo: Art Editora / Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

MORENO, Antonio. Cinema Brasileiro. Historia e Relações com o Estado.  Niterói: EDUFF, 1994.

OTTONE, Giovanni. Terra Brasil 95-05. El Renacimiento del cine brasileño. Festival Internacional de Cine de Las Palmas, 2005. Madri: T&B Editores, 2005.

PESSOA, Ana. Por trás das câmeras. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque (org.). Realizadoras de cinema no Brasil: (1930/1988). Rio de Janeiro: CIEC, 1989.

RAMOS, José Mário Ortiz. Cinema, Estado e Lutas Culturais. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

SILVA NETO, Antônio Leão da. Dicionário de filmes brasileiros: longa-metragem – 2ª edição revista e atualizada. São Bernardo do Campo, SP. Ed. do Autor, 2009.

TREMILLS, Kate. Where have all the women gone? Moving Pictures Magazine. V. 1, issue 3, jan./ fev. 2005. Phoenix: Moving Pictures International, Inc., 2005.

 

NOTAS

[1] University of Southern Califórnia.

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