POR OCASIÃO DA HOMENAGEM A HELENA IGNEZ
Por Ismail Xavier
Em Canção de Baal, Helena Ignez realizou um espetáculo de alta densidade, verdadeira pérola de um cinema contemporâneo rarefeito em criações desta envergadura. O filme incorpora uma experiência cultural das últimas décadas que Helena simboliza em seu extraordinário percurso de atriz que esteve no centro das inovações mais arriscadas, postura a que não renuncia nesta direção de um experimento ligado às criações do cinema e do teatro brasileiros modernos. Reúne a irreverência dramática do jovem Brecht e o cerimonial que se apóia na intensidade do gesto e da palavra. Os movimentos de câmera, o jogo de máscaras e de luzes nos interiores, expõem os excessos de uma virilidade dominadora, força vital livre de censuras, mas também pulsão de morte, negação embrutecida da ética burguesa. O lirismo impresso na gama de cores da natureza, não por acaso liquefeita, contrasta com a tônica do grotesco dessa vida em sociedade, trazendo, talvez, as inflexões do feminino a escancarar as contradições de Baal.
Creio que esta mesma articulação de movimentos de câmera, jogos de máscaras e luzes contrastadas retorna em Luz nas trevas: a volta do bandido da luz vermelha, trazendo as inflexões do feminino para o imaginário instituído por Rogério Sganzerla em 1968. Imaginário que ele retrabalhou durante anos, em anotações e no roteiro que Helena e Ícaro Martins vieram a filmar, assumindo na imagem e no som a composição de um espelho inclinado que se projeta nas mais diversas situações do novo filme, cujo espírito lúdico afasta o efeito de estranheza próprio à insólita presença do duplo que tanto perturba o personagem do conto de Dostoievski. Se há senso de rejeição, ele surge aqui apenas na cena do bandido II (Ney Matogrosso) em sua cela diante da TV que exibe a ação de Paulo Vilaça, o bandido I. Em tudo mais, esta experiência do duplo é o que se procura com humor, tal como já o fizera o próprio Rogério ao conceber o seu filme e seu personagem. E Helena soube muito bem assumir o selo da homenagem sem renunciar às novas inflexões e tonalidades, dando ensejo a reflexão sobre as relações entre os gêneros (gender) dentro das tensões criadas pelo marco patriarcal. Agora, não se trata da exposição do machismo de Baal, mas da composição de um estilo de encenação que amplia, desdobra, a performance do feminino, antes concentrada nela própria como a Janette Jane que ela soube tão bem inventar.
Luz nas trevas compõe um romance familiar muito peculiar em que se entrelaçam vida e arte, e se desloca a posição dos sexos quando passamos do “eu fracassei”, que a voz do bandido I reitera ao longo de O bandido da Luz Vermelha, ao ressentimento do bandido II, empenhado em recuperar sua vida “roubada” pelo cinema, e igualmente às aventuras do jovem Tudo ou Nada, o bandido III (André Guerreiro Lopes), que se espelha na vida picaresca do bandido I, às vezes no menor detalhe, embora seja filho do bandido II e pense o estar repetindo. A retomada do ciclo de aventuras e confrontos do bandido I é conduzida em nova chave, seja porque seu desenlace será distinto, seja porque o embate de Tudo ou Nada com o feminino dispensa a figura da femme fatale do film noir que traiu o bandido I, substituída aqui pela namorada sem veneno que o embala no carro, na praia e na cama, tal como Janette Jane o fizera, mas numa parceria não afetada pela máscara que lá escancarou, desde o início, a vocação traidora de Janette que o bandido tratou de neutralizar, com relativo sucesso, numa vingança que, por seu lado, foi o ponto de inflexão no movimento suicida que, prefigurado desde o início em sua fala, se consumou no último lance espetacular do filme de Rogério, aqui para irritação do bandido II.
Tudo ou Nada, o bandido III, ao contrário do bandido I, em dado momento vai para a cadeia, ocasião em que as imagens assumem traços de filmes realistas que focalizam os presídios com seus rituais de tortura, clima pesado, e a violência impactante das ocasiões de fuga que o cinema tem reiterado. É como se fosse necessário repetir o trajeto do pai – o bandido II – que começa na prisão, quando ele se assume como a versão original do bandido I. Dizer ‘original’, em verdade, não faz sentido, pois não preciso inverter a ordem e chamá-lo de bandido I porque, nas regras do jogo, não importa, um e outro sendo versões de um imaginário no qual Acácio, o inspirador, sempre se manteve extra-campo, fora de cena, pois o seu ser no cinema é acima de tudo o seu nome de batismo na mídia, cifra associada a um estilo de ação sugestivo que incitou a imaginação e gerou roteiros a serem vividos por múltiplos personagens, incluído este que agride o aparelho de TV na cela, sem nenhum humor, e expõe sua predisposição de filósofo que se leva a sério – ao contrário das vozes sentenciosas do filme de Rogério cuja veia paródica contaminava tudo. Tal gravidade expressa na imobilidade da cadeia termina por se inverter na jocosa cena da fuga que contrasta com o tom barra pesada da experiência de seu filho e recupera o tom satírico do filme de Rogério que era, até esse momento, incorporado por Arrigo Barnabé, que se espelha no modelo Linhares-Cabeção, conduzindo as ações da polícia como se estivesse no imaginário de Clara Crocodilo ou dos Tubarões Voadores, esperando uma parceria de estilo que Ney Matogrosso só vem a efetivar quando passa a perambular pela cidade na parte final de Luz nas trevas. Nas ruas, o bandido II se recompõe, talvez porque Helena, ela mesma, assume diante da câmera sua condição de chave mestra capaz de abrir qualquer Portal das Mil e uma noites e abolir a separação entre cena e bastidor, direção (de Luz nas Trevas) e memória (de O bandido), trazendo ao filme e entregando a Ney Matogrosso a mala “EU” onde o bandido I inscreveu o selo da identidade como coleção incongruente de papéis e souvenirs mal tratados que condensa o paradigma da colagem POP que permeia todo o filme de 1968. Tal paradigma de citações, com suas imagens clichê, suas falas clichê e seus recortes de luz ajustados à velocidade da montagem, é reciclado em Luz nas trevas para compor uma nova coreografia da vida urbana. Esta inclui uma generosa coleção de imagens de O bandido, que servem de contraponto para a fossa do bandido II, que só se move de forma mais desenvolta quando seu filho, o bandido III, perde a fluência e o lado aventuroso do embate com os ricos, mestres de uma contravenção financeira que está fora do seu alcance, e vai preso. Buliu demais com a propriedade alheia e, de forma especial, com as encarnações do feminino que encontrou em festas nas quais era “penetra” ou em assaltos que dispensaram subterfúgios. Num caso ou noutro, tais mulheres se emanciparam da condição de objeto do desejo que ficavam, em 1968, à mercê do bandido I; descartaram o figurino da vítima e assumiram o controle da cena ao confrontar Tudo ou Nada. Aqui os poderes se invertem, ou quase. São atrizes famosas, convidadas para vestir a máscara escolhida de si mesmas, no papel de ricas anfitriãs sedutoras com domínio da performance.
As atrizes de Luz nas Trevas se impõem ao redefinir o lugar do feminino no imaginário que prolonga e desloca o mundo do bandido I, em especial Djin Sganzerla, que assume a posição na intriga como um duplo de Janette Jane com tonalidade inversa, moça liberada que cruza a “quase” Boca do Luxo em que o bandido III se insinua, sem aderir à maquiagem, trazendo uma pitada de cara limpa ao mundo do bandido III com a qual este se atrapalha, algo bem distinto do cenário da suspeita desajeitada do bandido I diante da vamp da Boca do Lixo.
Esta ordem de inversões marca a astúcia do enlace de arte e vida na qual Djin encarna o duplo de sua mãe, que a dirige nesta performance, que desloca o jogo instituído para o feminino no filme do pai. Co-roteirista e co-diretora de Luz nas trevas, Helena completa um ciclo que vai além do tributo a Rogério. Seu duplo jogo ou jogo de duplos sinaliza diferenças de estilo na passagem de gerações e traz o elogio à figura do performer, não sendo casual a escolha de Ney Matogrosso para o papel do bandido II.
A citação como pedra angular da composição formal já presente em O bandido, volta em Luz nas Trevas pela última vez para compor nova inversão, evocando a montagem rápida da seqüência final de O bandido em que o teatro do suicídio de Jorginho é emoldurado pelo apocalipse das vozes da mídia e pela energia da cidade, numa colagem de referências que abandonava o protagonista imerso na confusão do mundo sublunar esvaziado de sentido, sob o olhar de uma lua soberana no centro da tela (imagem final, ponto final). Agora, a seqüência do desenlace é precedida de uma montagem rápida que inclui um flash da lua, instável, fora do centro, sendo ela agora enredada na sucessão de imagens que só ganham estabilidade quando emerge o palco suspenso da performance de Ney Matogrosso, aqui já talvez não mais pura representação do bandido da luz vermelha, mas ele mesmo, presença de atração convidada que assume o centro da cena, tal como o fizeram as atrizes. Com domínio do espaço da noite da cidade, ele está no alto de um prédio a afirmar a sua história cantando Sangue Latino, canção emblemática da banda Secos & Molhados. Postura afirmativa que projeta o olhar – para a lua? – e compõe o lance final do enlace masculino-feminino, não só em função do imaginário que ele sempre personificou em sua carreira, mas pela evocação do mesmo enlace afirmativo encarnado por Jura Otero a dançar o flamenco no alto de um prédio de São Paulo, ela também de preto, a vestir um traje masculino de modo a compor a figura de toureiro-dançarina na única cena filmada em São Paulo para Bang-bang (1970), primeiro longa de Andrea Tonacci, cujos passos iniciais de cineasta se deram nos curtas metragens feitos em colaboração com Sganzerla.
Inflexões do feminino, romance familiar, entrelace de arte e vida são motivos que articulei aqui a partir da mise-en-scène. No entanto, logo no início, Luz nas trevas, ao evocar a abertura de O bandido, compõe uma auto definição que diz muito nesta direção. Onde ouvíamos “trata-se de um faroeste do terceiro mundo”, forma de Rogério parodiar a dicotomia campo-cidade do Cinema Novo e inaugurar as alusões que fará a Deus e o diabo e Terra em transe, de Glauber Rocha (outra peça do romance familiar), agora ouvimos, salvo engano, a frase “este filme é um melodrama cujo personagem (ou passageiro?) é o infinito”. A auto-referência irônica dá o tom e já anuncia a forma que vai assumir o diálogo entre um filme e outro, assumida a chave da intimidade e do afeto em sua máxima intensidade, condição para que se projete nas figurações todas, nessa rede infinita de duplos com que se tece, digamos em chave barroca, o teatro da vida.
Neste sentido, não há homenagem maior a Rogério do que esta inscrição do percurso partilhado, e transmitido, nesse círculo de espelhos wellesiano em que o feminino, ao contrário da Dama de Shanghai, aposta na vida, sem mesmo excluir qualquer substrato de melodrama, enquanto adverte seu espectador de que “todo drama é uma farsa”, mote que interpreto aqui numa chave chapliniana, o que me permite inverter dizendo, solidário no humor, que “toda farsa é um melodrama”.
Ismail Xavier é um professor e teórico de cinema brasileiro, com inúmeros livros publicados, dentre eles O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência; Sertão mar: Glauber Rocha e a estética da fome; O olhar e a cena. Possui graduação em Comunicação Social com Habilitação em Cinema pela Universidade de São Paulo (1970), mestrado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1975), doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (1980) e doutorado em Cinema Studies – New York University (1982).
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