MICHAEL HANEKE E AS LÁGRIMAS
Logo que cheguei à Sala de Arte Vivo Paseo, localizada em um shopping pequeno e burguês, onde se serve no saguão comida mexicana com um acentuado gosto de cominho, uma velhinha simpática pegava da mão do bilheteiro o seu troco. Ela iria assistir ao filme do Haneke. Pagava o meu ingresso pensando se aquela seria uma experiência recomendável para uma idosa, se a sala escura e tenebrosa em que iria adentrar minutos depois seria produto de uma miragem satisfeita durante a rápida leitura de uma resenha, um bonequinho aplaudindo de pé, ou mesmo a chancela do oscar, capaz de levar imaginações sugestionáveis até o topo de uma colina de onde supostamente rolariam as melodias mais adocicadas. Talvez o título atraísse com sua sonoridade cálida as desavisadas criaturas, cuja inocência passaria ao largo de qualquer ironia no uso de um sentimento nobre para despistar os mais baixos instintos. O certo é que se chega ao fim do filme com a vívida impressão de que assistimos a uma das obras mais românticas dos últimos tempos e ainda agora a limpidez melodiosa dos improvisos, de Schubert, me recorda da cativante experiência sonora, visual e emotiva passada ao lado daquelas doces velhinhas que, certamente, não tiveram suas expectativas destruídas pelo novo filme do autor de Funny Games.
Isto não quer dizer que o Haneke não tenha se esforçado para que a história mantivesse o decoro diante dos chavões mais célebres do melodrama, dentre os quais, o uso ostensivo da música para carregar as emoções naturais em histórias onde se expõe a luta inglória do homem contra a morte e a humilhação. Potencial havia para isto: a trilha tem como base um repertório vastamente conhecido, composto tanto por Beethoven (o mais romântico dos compositores clássicos), como por Schubert, autor que, junto com Schumann e Chopin, definiram as bases melódicas e harmônicas para se expressar a melancolia, a nostalgia, criando novos cromatismos sonoros para o uso – e abuso – dos instrumentistas mais sentimentais. Através da interpretação sensível do pianista francês Alexandre Tharaud, também personagem do filme, somos apresentados ao tema principal do drama com as personagens centralizadas numa sala de concerto, assistindo aos últimos movimentos do Improptu In G Flat Major.
Como se vê, a opção escolhida pelo diretor foi tornar o elemento musical o mais extra diegético possível. Neste filme específico, Haneke propõe um jogo perverso com o espectador, interrompendo inúmeras vezes os Improptus Schubertianos – iniciados em vários trechos da história – antes que sua presença crie vínculos suficientemente duradouros com a imagem e, com isto, provoque emoções indignas de uma abordagem cerebral dos acontecimentos. Assim que nossos olhos ficam rasos d´água diante do tocante drama, ele silencia o teclado, desliga o aparelho de som, e envolve a cena em silêncio, retirando sua responsabilidade pela precipitação de lágrimas casuais. Nenhum dos protagonistas chora: aliás, a única personagem que o faz – a filha do casal – dá ao ato a impressão de certo egoísmos e impotência. Mas a questão é que, mesmo se atentando aos cuidados do diretor em preservar o ar seco dentro do apartamento e da sala de cinema, cria-se um ambiente fantasmagórico onde as notas interrompidas continuam a ressoar em nossas mentes: a catarse, portanto, não provem unicamente de uma espectatorialidade viciada, mas de uma cumplicidade romântica entre todos os envolvidos no espetáculo. Esta ressonância, quase espiritual, da ausência de corpos e sons no ambiente encontra seu ápice na cena final, com a personagem de Isabelle Huppert sentada no apartamento de seus pais, após o trágico, ou melhor, romântico desfecho.
Esta sensibilidade romântica evocada pela trilha sonora conclui-se tanto na entrega dos atores a seus papeis quanto na abordagem temática e suas consequentes elaborações simbólicas no interior da composição fílmica. A velhice transparece no filme em todo seu fulgor carnal, porém, através dos rostos das personagens, a dignidade humana paira como uma lua límpida segura por mãos afetuosas. A velhice real, sem a maquiagem ou os efeitos digitais, não impregna os corpos em sua decadência física e moral, mas irradia através de gestos investidos por atores em cujo semblante acumularam-se os dias. Ao se levantar dificultosamente de uma cadeira para responder aos chamados de sua esposa doente, Jean-Louis Trintignan carrega em sua postura toda a história do cinema francês e anuncia, também, o final de uma Era de Ouro desta mesma cinematografia, assim como a maravilhosa Emmanuelle Riva, seu par nesta corajosa e impecável composição de personagens, deixa os seus gestos se projetarem desde o tempo de Hiroshima Mon Amour para serem deteriorados pelo avanço da idade. Estamos diante de atores que vivenciam, experienciam, em suas vidas aquilo que interpretam diante das câmeras: a chegada dos anos e a aproximação da morte.
Contudo, a nostalgia de uma época em fase de dissolução, extra e intradiegética, fica ainda mais ressaltada pela forma como o amor e a morte se conjugam no filme de Haneke. Se no romantismo o suicídio tornava-se o gesto desesperado para fundir estas duas pulsões tão díspares na possibilidade da transcendência, em “Amor” a eutanásia constitui-se na resposta contemporânea a este mesmo desejo. Ela é uma espécie de suicídio no outro e pelo outro, através do amor. Este ato, a princípio abominável, possui para o romântico conotações espirituais: no filme esta intenção se expressa através da inusitada entrada de uma pomba, animal presente em inúmeros poemas de amor, representando a fidelidade e a simplicidade, como deixa perceber Casimiro de Abreu, o poeta da nostalgia, em um de seus poemas clássicos:
Na minha terra, no bulir do mato,
A juriti suspira;
E como o arrulo dos gentis amores,
São os meus cantos de secretas dores
No chorar da lira.
De tarde a pomba vem gemer sentida
À beira do caminho;
— Talvez perdida na floresta ingente —
A triste geme nessa voz plangente
Saudades do seu ninho.
Para os desavisados fãs de Haneke seria totalmente deslocado finalizar uma crítica sobre algum filme seu com um poema tão açucarado. Depois que assistirem ao filme, entretanto, verão que nem eu nema as velhinhas fofas temos algum tipo de distúrbio emocional ao deixar, ao final de Amor, algumas lágrimas sentidas e gratas durante a passagem dos créditos.
Olá, gostaria de saber quem é o autor desse texto, pois estou citando ele em uma pesquisa acadêmica e necessito dessa identificação.
Grata.
Oi, o texto foi escrito por Guilherme Sarmiento, o editor chefe da revista Cinecachoeira.