CINEMA PUNK

ARQUIVO, MONTAGEM E ESTÉTICA DE “O LIXO E A FÚRIA”

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Por Gabriela Machado Ramos de Almeida

Se fosse o caso de definir em poucas palavras o documentário O lixo e a fúria (Julien Temple, 2000), diríamos que se trata de um filme “punki sobre o movimento punk, dedicado a uma das suas bandas seminais, a inglesa Sex Pistols. Uma análise dos modos de agenciamento dos recursos visuais e sonoros do filme a partir da montagem permite identificar como objetivo do documentário o fortalecimento de um discurso de autenticidade e legitimação tanto da banda Sex Pistols, quanto, de forma mais ampla, do próprio movimento punk. Este trabalho apresenta uma análise do documentário O lixo e a fúria centrada na montagem, buscando descrever o modo como as imagens de arquivo são trabalhadas pelo diretor na constituição de uma obra marcada pela impressão de falta de acabamento e pela desarmonia visual e sonora.

Embora tenha durado apenas cerca de dois anos e, durante este período, não tenha feito shows em grandes casas ou estádios, o Sex Pistols foi a semente de um movimento que acabou por se tornar um dos mais influentes no contexto da cultura juvenil na segunda metade do século XX, tornando-se, para além de suas intenções artísticas, um modo de posicionamento político, estético e comportamental dos jovens.

O movimento punk teve origem em Londres, no ano de 1976, em meio a um contexto de recessão econômica, caos na área social e uma greve dos lixeiros que deixou a capital inglesa sem coleta de lixo durante um longo período, resultando na interdição de importantes ruas e avenidas da cidade, tamanha a quantidade de dentritos acumulado nas vias.

Já o Sex Pistols surgiu da associação entre o artista e empresário Malcom McLaren e quatro garotos, Johnny Rotten, Paul Cook, Steve Jones e Glen Matlock (depois substituído pelo lendário Sid Vicious). Insatisfeitos com o cenário musical da época, então dominado por superastros intocáveis e bandas do chamado “rock de arena”ii, do rock progressivo e da música disco, a banda nasceu para se opor ao mainstream da indústria fonográfica. Como afirmam seus integrantes no documentário, os grupos que faziam sucesso não tinham autenticidade, não representavam os jovens, eram sinônimo de entretenimento puro e simples. Viviam de turnês que tinham como objetivo exclusivo divulgar seus últimos discos lançados e, assim, impulsionar as vendas.

Na visão dos futuros integrantes do Sex Pistols, nada de verdadeiramente importante ou original acontecia na música havia muitos anos e, com a proposta de romper com este padrão, os quatro garotos se juntaram para começar a ensaiar. Não importava sua falta de recursos vocais ou instrumentais: queriam expressar sua insatisfação e desejo por mudança.iii

A adesão do público jovem ao movimento punk foi rápida, bem como toda a polêmica que sempre o acompanhou e faz com que até hoje a palavra “punk” remeta a violência, agressividade e confusão. A parcela mais conservadora da sociedade inglesa considerou-o uma ameaça aos bons costumes e uma péssima influência para os jovens e as crianças. Assim, ao mesmo tempo em que ganhava popularidade, sobretudo em função de toda a polêmica criada em torno da banda, o Sex Pistols passava também a ser censurado em rádios e vetado em casas noturnas e programas de televisão.iv

Para os integrantes do grupo Sex Pistols, tratava-se de incentivar as pessoas a serem do jeito que elas quisessem e se desligarem de modelos estabelecidos de comportamento (até que o próprio punk se tornou um modelo). Isso implicava numa supervalorização do bizarro, do grotesco, do feio e sujo, associados sempre ao autêntico e ao legítimo. Musicalmente, era mal composto e mal executado, quase primitivo de tão rude e cru. Por isso, hoje em dia, a avaliação da relevância do movimento passou a ser muito mais comportamental, social, do que propriamente artística.

As imagens de arquivo e a montagem em O Lixo e a Fúria

O lixo e a fúria conta com uma espécie de prólogo. Os seus cerca de cinco minutos iniciais funcionam como uma exposição não só da história que se vai contar, mas principalmente como um momento de engate da economia narrativa em que são antecipadas as informações necessárias para que o apreciador sinta o sabor do filme e saiba o que esperar da construção plástica da obra.

A história da banda Sex Pistols e do movimento punk é contada de forma bastante linear e didática através da narração, de modo que cabe à montagem o agenciamento dos recursos audiovisuais que conferem à obra aquelas que são as suas características mais óbvias – um filme baseado em imagens de arquivo justapostas ou sobrepostas, bastante fragmentado, que tem a ironia como estratégia discursiva e culmina, como fim último, num discurso geral abertamente favorável à banda e ao movimento de que trata.

A plena apreciação do filme depende, inclusive, do estabelecimento de um pacto: o que há de aparentemente mal acabado na obra não só não é defeito, como é também, na verdade, parte da sua graça. Tão bruto quanto o próprio tema de que trata precisa ser o filme para que lhe faça jus, e é partindo desta premissa que o cineasta coloca o apreciador na posição de receber, por exemplo, cusparadas, xingamentos e gestos obscenos em diferentes momentos que, porque dirigidos à câmera, são dirigidos, no final das contas, a quem contempla as imagens. O discurso da afronta e do desrespeito não está apenas na narrativa construída pelo filme sobre o movimento punk, mas muito também no tratamento visual de O lixo e a fúria, a partir do momento em que submete quem o assiste a uma experiência de apreciação bastante particular e, em certa medida, desagradável.

A relação mimética do filme com o seu tema é obviamente proposital. O que existe de mal-acabado na obra – sobretudo na qualidade das imagens de arquivo utilizadas e no seu tratamento – é assim por opção do cineasta, que transforma a montagem e o tratamento das imagens numa forma de manter a si próprio também em destaque. Se a música tocada pelo Sex Pistols era tosca, o motivo vinha do desconhecimento dos integrantes da banda das normas da boa composição e das técnicas de execução musical. No caso de O lixo e a fúria, o uso de imagens de arquivo de baixa definição e a falta aparente de cuidado na pós-produção não denotam pouca habilidade no manejo do material fílmico, mas sim constituem o estilo do diretor Julien Temple.

A montagem exerce função expressiva fundamental em O lixo e a fúria, já que é responsável pela composição das duas mais destacadas características da obra, que são o uso da ironia como expediente retórico e o forte apelo sensorial provocado pela “colagem” de imagens das mais diversas fontes, com diferentes tipos de granulação, cores e filtros.

Se no cinema a experiência agradável de apreciação de uma obra está frequentemente associada à sensação de harmonia e equilíbrio no tratamento dos materiais fílmicos empregados, e à combinação entre imagens e sons de forma esteticamente apreciável, o apelo de O lixo e a fúria se localiza justamente na força disjuntiva que a montagem opera para produzir justamente o contrário, desarmonia e desequilíbrio.

Tal característica não é privilégio deste documentário específico, mas sim um expediente do qual Julien Temple fez uso extensivo ao longo da sua trajetória como realizador. Muitas das imagens e animações utilizadas em O Lixo e a Fúria já haviam sido inclusive empregadas em outros dos seus filmes, como Punk can’t take it (1979) e The great rock’n’roll swindle (1980). Também em Glastonbury (2006) e Joe strummer – The future is unwritten (2007), alguns dos seus documentários de rock mais recentes, o cineasta “brinca” com imagens de arquivo que parecem inicialmente desconexas, sempre com o objetivo de extrair da montagem um estilo caracterizado pela irreverência e um tratamento plástico caracterizado pelo excesso de cortes, dando uma sensação de fragmentação do extrato visual dos filmes.

O que diz Carol Vernallis acerca do papel da montagem no videoclipe pode ser útil aqui para entender a forma como, em O lixo e a fúria, a montagem coloca o cineasta em posição destacada. Segundo a autora, a montagem no videoclipe direciona a fluidez da narrativa e o seu papel é garantir que nenhum elemento, individualmente, ganhe destaque excessivo (narrativa, cenário/ambientação, performance, artista, letras e música). Ainda segundo Vernallis, os diretores de clipes se valem da montagem inclusive para poder destacar qualquer um desses elementos a qualquer momento, quando for o caso. Para ela, isso acontece pelo simples fato de, no formato, a montagem se fazer notar demasiadamente.

Muito da particularidade da montagem do videoclipe reside na sua responsividade à música. Ela pode esclarecer aspectos da canção, como características rítmicas e tímbricas, frases específicas da letra, e especialmente as divisões seccionais da canção. (…) Pode ser útil imaginar a sucessão de imagens em um vídeo e a edição que as une mais como um colar de conchas de tamanhos e cores variadas, do que como uma corrente. Este retrato não apenas enfatiza a heterogeneidade de cenas em um videoclipe, como também sugere a materialidade da montagem em si mesma”. (VERNALLIS, 2004: 27-28)

É possível estabelecer um paralelo entre o que diz a autora sobre a montagem no videoclipe e a forma como ela é operada em O lixo e a fúria. Não só é um artifício que se faz notar como é a característica do filme que mais chama a atenção. Embora a narração conduza o apreciador pela história (que seria a corrente a que se refere Vernallis), também o filme é um “colar de conchas de tamanhos e cores variadas”. Além disso, apesar de não se tratar de um videoclipe, a montagem na obra analisada trabalha bastante colada com a música.

Um apreciador que não seja iniciado nos estudos sobre cinema pode até não entender exatamente qual elemento provoca a sensação de que o filme é “dinâmico”, de que o seu ritmo é “ágil”, ou de que a sua estética se assemelha àquela associada geralmente à de um videoclipe, mas certamente notará tais características. Como sugere Vernallis, a força disjuntiva da montagem, no caso do videoclipe, leva a algumas questões que podem ser estendidas ao documentário em questão: a) como duas cenas se relacionam?; b) em que termos a montagem as une? e c) qual o efeito de rede que essas disjunções operam no filme como um todo?

Outro autor que auxilia na compreensão do modo como a montagem é explorada em O lixo e a fúria é Marcel Martin, que explica a montagem expressiva como:

(…) baseada em justaposições de planos cujo objetivo é produzir um efeito direto e preciso pelo choque de duas imagens; neste caso, a montagem busca exprimir por si mesma um sentimento ou uma ideia; já não é mais um meio, mas um fim: longe de ter como ideal apagar-se diante da continuidade, facilitando ao máximo as ligações de um plano a outro, procura, ao contrário, produzir constantemente efeitos de ruptura no pensamento do espectador, fazê-lo saltar intelectualmente para que seja mais viva nele a influência de uma ideia expressa pelo diretor e traduzida pelo confronto dos planos”. (2007: 132-133)

A superexploração da montagem em O lixo e a fúria promove um desrespeito à unidade imagética e, consequentemente, o constante efeito de ruptura a que se refere o autor, a partir do momento em que aspectos normalmente valorizados na apreciação de um filme, como fotografia, composição dos planos, profundidade de campo, espacialidade e experiência sensorial do tempo acabam por parecer de menor relevância. A obra praticamente não permite que se pense nestes aspectos e, mais importante, não demonstra preocupação em arranjá-los de forma harmoniosa e coerente plasticamente, já que a falta de harmonia e coerência, neste caso, é também fruto de um arranjo cuidadosamente calculado.

A articulação do discurso fílmico em O lixo e a fúria se dá basicamente por analogia ou contraste, sempre a serviço de um efeito final de ironia. A montagem promove associações ora explícitas, ora apenas sugeridas, entre narração e imagem ou imagem e imagem. Já na sua abertura tem-se o primeiro exemplo. Depois de um trecho de noticiário da BBC, que informa a possibilidade de chuva forte na Inglaterra, ao apreciador é reservada uma cusparada. Momentos depois, uma “chuva” de cuspe lhe atinge diretamente, a partir de uma colagem de diferentes imagens de pessoas cuspindo na câmera.

O vocalista do Sex Pistols, Johnny Rotten, é associado ao longo de todo o filme ao personagem shakesperiano Ricardo III, bem como ao corcunda de Notre Dame. Através da sua própria fala e da montagem, o que se sugere é que, tal qual Ricardo III e o personagem de Victor Hugo, Johnny Rotten é “deformado”, “hilário” e “grotesco”.v A caracterização pode facilmente ser estendida à banda como um todo, à forma como o movimento punk foi visto quando do seu surgimento e ao próprio filme, que Temple faz questão de que seja também “deformado”, “hilário” e “grotesco”.

As imagens de Ricardo III inseridas em diferentes momentos de O lixo e a fúria foram todas extraídas do filme homônimo de 1955, protagonizado por Laurence Olivier. Embora Laurence Olivier seja considerado um dos melhores intérpretes de personagens de Shakespeare e, provavelmente, o melhor diretor de adaptações de filmes baseados em obras do escritor inglês, o modo como os trechos de Ricardo III são usados por Julien Temple confere ao filme original um quê de ridículo e à interpretação de Olivier um ar de excesso e afetação, e isto se repete em grande parte das imagens de arquivo que são inseridas em O lixo e a fúria. O cineasta as resignifica, conferindo-lhes um sentido totalmente diferente, não raro oposto ao que possuíam no contexto original de onde foram extraídas.

A estratégia da ironia é orquestrada de forma eficiente, de modo que muito do que o filme mostra e sugere não necessariamente é o que está dito explicitamente pela narração ou exposto na imagem correspondente, mas o resultado da sua associação através da montagem. Não são poucos os momentos em que o trecho de imagem de arquivo exibido não se mostra de muita validade para o entendimento pleno da história, já que possui um sentido em sua singularidade, e outro completamente diferente no contexto em que é inserido no documentário. A distinção do conteúdo aparente (explícito) e do conteúdo latente (implícito) se faz aqui bastante clara: aquilo que pode ser lido numa primeira camada de leitura é bem diferente do sentido simbólico que o diretor imprime à obra e o apreciador reconhece por si mesmo (MARTIN: 2007: 93).

A plena apreciação da obra não passa apenas pelo entendimento da história que é contada, mas também pela possibilidade de se deixar afetar pelo efeito de irreverência orquestrado pelo filme e pela característica de tributo que transforma O lixo e a fúria em uma eficiente homenagem ao Sex Pistols – sobretudo em função da construção plástica do documentário.

Gabriela Machado Ramos de Almeida é Doutoranda em Comunicação e Informação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Integrante do Conselho Deliberativo da SOCINE – Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovoisual e membro do grupo organizador do festival Cine Esquema Novo, realizado em Porto Alegre. Autora de artigos publicados em livros e periódicos sobre temas em torno do cinema documentário, do ensaio fílmico e das relações entre cinema e artes visuais.

 

 BIBLIOGRAFIA

COON, Caroline. 1988 – The New Wave Punk Rock Explosion. Londres: Omnibus Press, 1982.

 MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2007.

 VERNALLIS, Carol. Experiencing music video: aesthetics and cultural context. New York: Columbia University Press, 2004.

NOTAS

i “Punk” aparece aqui como adjetivo, não como uma categoria ou um tipo específico de filme.

ii Forma comum de referência a bandas dos anos de 1970 que contavam com forte apoio das gravadoras para a produção e circulação de seus discos e, como eram muito populares, apresentavam grandes concertos em estádios e arenas.

iii Não por acaso, o lema do movimento punk é o “do it yourself”, ou “faça você mesmo”, que valoriza a legitimidade do processo e da intenção em detrimento do resultado final.

iv Uma aparição do Sex Pistols em um programa popular da TV inglesa no dia 01 de dezembro de 1976 foi especialmente controversa. Provocados pelo apresentador Bill Grundy, os integrantes do grupo proferiram vários palavrões em sequência. No dia seguinte, o jornal Daily Mirror estampava uma foto da banda com a manchete “O lixo e a fúria” e um texto na capa que dizia que o grupo chocou milhões de espectadores com a linguagem mais suja já ouvida na televisão britânica (COON, 1982).

v Em diferentes momentos do filme, o extrato visual mostra imagens de Ricardo III ou de Johnny Rotten acompanhadas de um trecho de fala que repete enfaticamente, por vezes seguidas, o texto “Deformed! Unfinished!” (Deformado! Mal-acabado!).

 

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