ENTREVISTA COM CAETANO VELOSO

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Por estar em turnê promocional de seu novo CD, Abraçaço, fazer Caetano Veloso parar alguns minutos para responder a um questionário sobre sua relação com o cinema foi uma verdadeira façanha tanto para nós, a equipe editorial da revista, quanto para este que é um dos grandes nomes de nossa cultura. Imagino Caetano sentado num quarto de hotel ou mesmo em uma cadeira ao lado dos músicos afinando seus instrumentos, debruçando-se sobre nosso e-mail e pacientemente dando vida a nossas perguntas.

Com o grande Guilherme Maia, parceiro nesta empreitada musical e um dos responsáveis pela entrevista, e o empenho da assessoria do músico, especialmente de Radha Barcelos, a Cinecachoeira apresenta uma entrevista inédita com o homenageado desta edição: Caetano Veloso.

Guilherme Sarmiento

 

Entrevista por Guilherme Maia e Guilherme Sarmiento

 

Cinecachoeira –Qual a importância da narrativa em sua obra? Você, quando cria, deseja contar uma história?

Caetano Veloso – Quase nunca desejo contar uma história. Mas o cinema foi e é modelo consciente ou inconsciente de minhas canções. Alegria, alegria é toda feita de montagem. Na verdade, as canções tropicalistas têm muito de montagem de cinema. Enquanto seu lobo não vem, Superbacana, Tropicália, todas as canções dessa época têm a ver com cinema, sobretudo o cinema de Godard. Mas não só as minhas: Domingo no parque, de Gil, é muito cinematográfica.

Cinecachoeira – Inúmeras vezes você manifestou sua admiração por Glauber Rocha, mas consideramos sua aproximação com o Cinema Novo, tímida. Sentimos que o modo como pensa o cinema aproxima-o mais dos cineastas conhecidos como Udigrudis ou Marginais, especialmente Sganzerla e Bressane. Gostaríamos que falasse um pouco sobre isto.

Caetano Veloso – Como já disse, era Godard. Sganzerla e Bressane, que desenvolveram seus estilos ao mesmo tempo que os tropicalistas da música, também tinham Godard como mestre. Mas não é verdade que minha aproximação com o Cinema Novo seja tímida. Sou o autor da letra de Cinema novo, samba em parceria com Gil, que levou Fernando Trueba a dizer que qualquer cinematografia do mundo deveria invejar a brasileira. Há Glauber em Tropicália. E o Araçá azul nasceu da trilha de São Bernardo.

Cinecachoeira – O João Máximo diz que o cinema brasileiro é excessivamente cancionista e que muitas vezes essa escolha se deve muito mais a questões de natureza comercial do que dramatúrgica…

Caetano Veloso – É um procedimento do cinema moderno no mundo todo. Hollywood usou canções especiais para filmes (Laura, As time goes by, Johnny guitar…), mas o uso insistente de muitas canções  num só filme é coisa que começa nos anos 1970 e só tem feito crescer. O cinema brasileiro, sendo o Brasil um país em que a canção popular é tão forte, não poderia ser exceção. Às vezes canções ajudam a vender o filme. Mas isso só se dá mesmo se a canção der força às cenas a que estão coladas.

Cinecachoeira – Você já trabalhou com grandes nomes do cinema nacional, como Leon Hirszman, Cacá Diegues, Neville de Almeida, Jorge Furtado, Júlio Bressane. Como vê essa relação diretor-compositor no contexto da sua prática de compor para filmes?

Caetano Veloso – O mais interessante foi a trilha de São Bernardo, que fizemos de modo precário, mas que resultou muito inspiradora. Como experiência de detalhar a trilha de um filme, minha colaboração com Cacá Diegues foi a mais rica. Tieta do agreste, um filme que adoro, me levou a criar várias canções que, retrabalhadas, serviam de tema para cenas dramáticas. E Orfeu, filme de que gosto bastante menos, foi minha mais completa experiência como trilheiro de verdade. Mesmo assim, imaginei uma música quase de cartoon (ou de partitura russa a que Eisenstein às vezes submetia sua mise en scène e sua montagem, como em Alexandre Nevsky) para as “bacantes” que matam Orfeu que traz Eurídice nos braços no final do filme, mas Cacá desaprovou totalmente a experiência. Nesse filme, gosto das cenas de polícia invadindo o morro (está ali toda a gênese dos favela movies que vieram depois – sendo homenagem ao documentário de João Moreira Salles, que veio antes) e do carnaval na avenida, mas não gosto da encenação do romance do casal central. Fiz temas bons para essas cenas, há algo que funciona e comove, mas não dá para fazer o drama do casal crescer. De todo modo, foi a trilha que mais compus. Jaques Morelenbaum sendo, pacientemente e com uma humildade emocionante, apenas aquele que transcreve as ideias de temas, timbres e contrapontos que me vinham à cabeça.

Cinecachoeira –Como foi o processo de concepção, criação e execução da música do filme São Bernardo?

Caetano Veloso – Como já disse, foi o mais interessante. Embora a concepção geral da música do filme tenha estado muito mais sob minha responsabilidade em Orfeu, de Cacá, do que em São Bernardo. Foi assim: eu tinha chegado de Londres e Leon me disse que queria que eu fizesse a música para sua adaptação do romance de Graciliano Ramos. A primeira coisa que eu disse foi: ele não gostava de música – e Nelson Pereira dos Santos resolveu isso perfeitamente em Vidas secas, usando apenas o ranger das rodas de carro de boi como trilha. Leon respondeu que eu poderia fazer algo como os grunhidos que eu tinha feito na gravação londrina de Asa branca. E me mostrou algumas cenas. O filme ainda não estava todo montado. Ele tinha um mini estúdio de 4 canais e eu ia improvisando sobre as cenas que eram projetadas. Fazia um take com uma voz e depois somava mais uma, duas ou três. Sempre revendo as imagens. Ficou bonito.

Cinecachoeira – Por algumas declarações suas à imprensa, percebe-se seu interesse pela produção brasileira contemporânea. Que filmes recentes brasileiros assistiu e de que forma eles te mobilizaram como espectador?

Caetano Veloso – Vejo menos filmes do que desejo. Gosto de Filme de amor e de O casamento de Romeu e Julieta. Acho Cidade de Deus cheio de figuras muito vivas, interpretações brilhantes e grande virtuosismo na direção. Tenho carinho especial por Bendito fruto. Idolatro Houve uma vez dois verões e Saneamento básico. Receberia as piores notícias dos seus lindos lábios me arrebatou. Sempre serei fã de Superoutro. Gosto de Reis e ratos. O filme recente que mais me impressionou foi O som ao redor. Mas devo estar deixando de mencionar alguns filmes importantes para mim porque simplesmente não me vieram à cabeça à medida que eu escrevia aqui.

Cinecachoeira – A MPB há muito tempo superou esta oposição rígida entre arte e indústria: temos inúmeros artistas, como você, Gilberto Gil, Zeca Baleiro, Maria Gadu, enfim, várias gerações de compositores para os quais a relação música/mercado não necessariamente produz mediocridade. No cinema brasileiro parece que esta relação ainda é problemática…

Caetano Veloso – Acho que não penso do mesmo modo. O Cinema Novo era, no começo, quase que exclusivamente feito de filmes sem apelo popular e com grandes pretensões intelectuais, políticas e artísticas. Justo o contrário das chanchadas que o precederam. A Vera Cruz não dera os frutos que prometera. Mas nos anos 1970, Cacá, Jabor e Neville de Almeida, além de Bruno Barreto, produziram sucessos enormes de bilheteria sem deixar de manter a respeitabilidade do projeto inicial do movimento. E temos Central do Brasil, Cidade de Deus, Tropa de elite 1 e 2. Mas é verdade que a canção popular tem uma história mais consistente do que o cinema. Cinema é caro de fazer.

Cinecachoeira – Já faz mais de dez anos que dirigiu O cinema falado. Ainda tem projetos? Desistiu do cinema?

Caetano Veloso – Talvez. No fundo nunca sinto que desisti. Mas, na prática, na idade em que estou, parece que é o que aconteceu. Quando vejo Dustin Hoffman dirigir seu primeiro filme aos setenta e tal, penso que impossível não há. Mas é fato que não tenho muito talento para a música, mas tenho mais vocação para a vida de músico.

Cinecachoeira – Almodóvar costura as canções como fios narrativos nos filmes dele, e você participa de uma das cenas mais belas de Fale com ela, cantando Cucurrucucú paloma. O que acha da poética musical do Almodóvar?

Caetano Veloso – Adoro. Curiosamente tudo aquilo tem a ver com O bandido da luz vermelha. O uso dos boleros e das canções cantadas estava já desenvolvido no primeiro Sganzerla. É sensacional também a voz de Maysa sendo dublada por uma garotinha em Ne me quittes pas, cena de A lei do desejo.

Cinecachoeira – Por fim, gostaríamos que destacasse a música de um ou de alguns filmes que considera especialmente engenhosa, original, comovente ou, simplesmente, bela.
Caetano Veloso – Nino Rota em todo o Fellini – mas também em Rocco e seus irmãos, O leopardo, O poderoso chefão.

 

 

2 comentários sobre “ENTREVISTA COM CAETANO VELOSO

  1. Pedro Progresso

    Excelente entrevista. Caetano tem inúmeras crônicas sobre cinema escritas durante sua carreira, e alguns episódios mais fortes como o da briga com Roberto por um filme de Godard.
    Peço licença para publicar na página que administro (facebook.com/caetanocompleto).

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