Por Michel Marie
Tradução Fernanda Aguiar C. Martins
Costumamos circunscrever a chegada do cinema falado ao ano de 1927, em torno do sucesso de público e comercial, jamais observado anteriormente, do célebre O Cantor de Jazz (The Jazz Singer, Alan Crosland, 6 de outubro de 1927). Sem negar a relativa pertinência dessa data para a história industrial do cinema, hoje parece necessário encarar a passagem do cinema mudo ao falado como um fenômeno muito mais evolutivo, se estendendo durante todo o período do cinema mudo. Alguns lembretes relevantes em termos históricos permitirão precisar melhor o período 1926-1934 como os oito ou dez anos que viram a coexistência inédita de duas formas de expressão fílmica com todos os tipos de fórmulas intermediárias: filmes musicais, com ruídos, parcialmente falados, etc., até o desaparecimento completo da produção, após a distribuição dos filmes mudos ao longo dos anos trinta.
Todos os historiadores do cinema notaram que os irmãos Lumière ultrapassaram Thomas Edison porque este desejava explorar seu quinetoscópio com os sons do fonógrafo que balbuciava algumas palavras desde 1889. O período inicial, o dos inventores, assiste à aparição de numerosas patentes de aparelhos de reprodução sonora. Os primeiros industriais do cinema francês, Léon Gaumont e Charles Pathé, exploraram cilindros antes de se lançar no comércio das imagens animadas. O Fono-Cinema-Teatro deu o que falar na Exposição Universal de 1900, em Paris: pode-se aí ver e escutar na tela Sarah Bernhardt declamar uma passagem de Hamlet e Réjane, Madame Sans Gêne, bem antes de Arletty. É Léon Gaumont quem mais se apaixona por essa nova técnica e, a partir de 1908, graças ao Cronophone, ele poderá apresentar ao Gaumont-Palace filmes sonoros de primeira mão, realizados por Alice Guy. Todas essas curtas bandas representam canções populares, árias de óperas ou peças teatrais declamadas pelos atores e cantores em voga. É de fato o sucesso do longa-metragem mudo de ficção, a partir de Nascimento de uma Nação (David W. Griffith, 1914), que vai entravar o desenvolvimento do sonoro durante cerca de dez anos, até 1925-1926, no momento em que a crise, já cíclica, da frequentação das salas, conduz a um aumento do interesse comercial por essa técnica ainda subexplorada. Mas todo o período batizado retrospectivamente de “mudo” extravasa com sons musicais e vocais, desde a origem, pianista e orquestra acompanham o desfile das sequências de perseguições e de amor, os comentadores explicam a ação para o público popular e leem os intertítulos em voz alta para os analfabetos. O cinema religiosamente silencioso foi inventado a posteriori pelas projeções de filmes de repertórios da época “muda”, organizadas pelas primeiras cinematecas. Não é evidentemente um acaso se estas últimas nasceram nos primeiros anos do falado com o objetivo de salvar o patrimônio anterior a 1927, tornado impossível de ser explorado para os diretores de salas e os distribuidores de filmes “falados”. A corporação mais violentamente hostil para o sonoro é a dos músicos que interpretavam as partituras durante as projeções e sua luta se prolongará até 1931-1932, o que é um índice revelador da amplitude e da força de seu movimento e do número de pessoas empregadas precedentemente pelos exploradores.
As técnicas de reprodução sonora utilizam o cilindro, em seguida o disco, são ainda difíceis e supõem novos equipamentos nas primeiras salas fixas, cujas instalações estão ainda longe de serem equacionadas. É a invenção da célula fotoelétrica e do som ótico criado desde 1923 por Lee DeForest, o “foto-filme”, que conduz ao progresso decisivo (projeções no Rivoli de Nova York, em 1923). No entanto, os primeiros sucessos sonoros lançados pelos irmãos Warner recorreram ao velho procedimento sobre disco, o sistema Vitaphone. Os anos vinte assistem à expansão fulgurante da telefonia sem fio e do rádio, cujas patentes pertenciam às grandes companhias elétricas. As primeiras firmas cinematográficas nasceram nos Estados Unidos em setores econômicos marginais, graças à iniciativa de jovens imigrantes. Os bancos do Leste começam a se interessar por essa nova indústria, quando ela dá provas de sua audiência comercial, a partir de 1918-1920. Desempenharão um papel decisivo na aceleração do processo de passagem para o sonoro no fim da década por intermédio da General Electric nos Estados Unidos e da A. E. G. na Alemanha. O cinema sonoro se impõe inicialmente nesses dois países e os industriais franceses deverão se equipar de aparelhos sonoros americanos ou alemães a partir de 1929. A guerra declarada em 1914 será fatal para a dominação francesa, inaugurada por Lumière e Méliès, em seguida, bastante ampliada por Charles Pathé, a partir de 1900. O cinema sonoro e falado é inicialmente e, sobretudo, americano e alemão.
Os filmes sonoros anteriores ao triunfo do longa-metragem mudo são principalmente os curtos temas musicais e não se integram a um projeto narrativo no qual a fala estaria a serviço da história contada pela imagem e pelo som. Paradoxalmente, o longa-metragem mudo, a partir de 1914, vai sistematizar o uso do intertítulo: os filmes históricos, os folhetins policiais, as comédias e os melodramas concedem fala aos personagens amplamente, os quais se exprimem através dos letreiros interpostos. É mesmo estarrecedor notar a proporção muito importante de filmes mudos do período 1915-1927, que adaptam peças de teatro, por consequência obras dramáticas inteiramente fundadas na interação verbal, enquanto precisamente a fala é o elemento que falta ao filme mudo. Isso é verdade tanto em relação à produção comercial (Les Trois masques/ As Três Máscaras, de Charles Méré, adaptada por Henry Krauss, em 1921) quanto às obras-primas especificamente mudas (Lady Windermere´s Fan/ O Fã de Senhora Windermere, de Ernst Lubitsch, 1925, extraído de Oscar Wilde). E, seguramente, A Paixão de Joana d´Arc (Carl Dreyer, 1928) leva o paradoxo artístico a seus limites extremos, uma vez que o filme é exclusivamente construído sobre um julgamento, uma troca verbal entre as perguntas dos juízes e as respostas da acusada. O paradoxo é apenas aparente, porque a estética do mudo, elevada a seu mais alto grau de resplendor aqui, se interessa antes de tudo pela imagem, pelo rosto, pelas mímicas, pelos olhares, pela maneira como as palavras são visualmente articuladas pela boca, garganta e todo o corpo, na falta da difusão sonora.
O som musical invade a tela de cinema com a chegada do cinema falado, a canção e a voz alta, excessiva, que os alto-falantes divulgam com profusão nesse final dos anos vinte, os sons do rádio e dos gramofones. Nos Estados Unidos, os primeiros filmes sonoros são operetas, comédias musicais, adaptações das peças representadas na Broadway: Don Juan de Alan Crosland (1926) com John Barrymore e Mary Astor, In Old San Francisco (1927), O Cantor de Jazz (1927), The Singing Fool (Lloyd Bacon, 1928), Lights of New York (1928). Eis igualmente o início do policial sonoro: Perfect Crime, primeiro filme gravado em RCA Photophone, desenhos animados sonoros; Steamboat Willie e atualidades lançadas pela Fox, Fox Movietone, que começam em 1928.
O célebre O Cantor de Jazz que assegura o triunfo do falado e faz tudo revolver constitui, no entanto, um filme mudo de oitenta minutos com menos de dois minutos de falas sincronizadas. Toda sua organização dramática repousa num grande número de intertítulos e numa música de acompanhamento contínua, que comenta as sequências como na tonalidade dos outros filmes mudos. O “falado” surge por intermédio do “filme cantado”, opondo frontalmente, numa ficção sumariamente edipiana, um pai corista de sinagoga e um filho amante de jazz. Trata-se de uma peça de Samson Raphaelson e o cantor Al Jolson, por sua vez, é muito conhecido do público com seus recitais e discos. O falado só intervém como por acidente em duas retomadas. Uma primeira vez durante quinze segundos, entre duas canções, enquanto Al Jolson se endereça em som sincrônico à orquestra que o acompanha. Esta intrusão do diálogo não possui nada de especificamente fílmico. Ela intervém sempre nos registros em discos operados em concerto, quando o cantor se dirige à sua orquestra e ao público. A verdadeira passagem ao falado se opera um pouco mais adiante quando Jackie (Al Jolson) reencontra sua mãe e lhe oferece uma performance de seus talentos de cantor de jazz, mas ele só lhe falará em som sincronizado durante mais de um minuto aproximadamente até a interrupção intempestiva do pai que grita “- Pare!”, condenando a sequência a se prolongar em diálogos mudos, retranscritos em intertítulos. Somente durante o ano de 1929, o “falado 100%” – segundo as fórmulas publicitárias da época – substituirá progressivamente o “sonoro-cantado” sem, no entanto, o abandonar totalmente.
Os primeiros filmes franceses falados do “sonoro-cantado” – com som gravado em disco ou película (repetimos, porque os filmes mudos eram vistos e escutados pelos espectadores com um acompanhamento musical, mesmo mínimo) – têm um sucesso incomparavelmente medíocre em relação às produções Warner. No final de 1928, Marcel Vandal – fundador dos Estabelecimentos Éclair – se associa a Charles Delac para realizar L´Eau Du Nil/ A Água do Nilo, adaptação de um romance de Pierre Frondaie. Trata-se de um melodrama, cuja ação se situa, em parte, no Egito. A exemplo de tantos outros, consiste num filme mudo, acompanhado de música e cantos, que os Estabelecimentos Aubert exploram em agosto de 1928 como sendo a “primeira projeção sonora” comercial, mas ele não consegue atrair de fato a atenção do público. No entanto, o lançamento parisiense de O Cantor de Jazz em janeiro de 1929 no Palácio Aubert, é um triunfo, apesar do obstáculo da língua inglesa – vale salientar que Al Jolson canta em inglês e o filme não é dublado.
Enquanto as companhias americanas realizam desde 1929 289 filmes falados em um total de 562 longas metragens, a França só pode realizar 8 filmes parcialmente sonoros e cantados em um total de 94 filmes para tentar resistir à invasão dos talkies. Será preciso esperar Alberto Préjean e Sob os Tetos de Paris (Sous les Toits de Paris), uma produção Tobis, para que uma voz francesa encontre enfim um público internacional no ano seguinte, precisamente, no verão de 1930.
A firma Pathé-Nathan decide se lançar na aventura confiando ao veterano André Hugon (ele havia começado em 1915) a adaptação de um melodrama córsego de Charles Méré, As Três Máscaras, já realizado em 1921 por Henry Krauss e reeditado em 1924. O filme é rodado em quinze dias nos estúdios ingleses, por falta de meios de registro sonoro em Paris. É composto, sobretudo, de longos planos fixos e Jean Toulout encarna um pai de família da Córsega, que recusa que seu filho se encontre com uma jovem de origem modesta. Todavia, o pai só possui de “córsego” o nome, pois seu sotaque é o de um ator dos estúdios parisienses. Certamente, há o esforço de fazer o espectador escutar o som de um machado sendo amolado e alguns raros ruídos ambientes do vento, mas a mise en scène tende a valorizar, sobretudo, a voz do belo canto do jovem estreante (François Rozer) durante uma serenata bastante convencional sob a sombra de ruínas românticas. Apenas a sequência do baile mascarado utiliza com um mínimo de invenção a música ambiente, notadamente nos planos com o casal partindo em passos lentos, enquanto que os estribilhos de canção do baile se prolongam no fora de campo. A ideia central do roteiro – embora interessante para o novo ventríloquo, que é o cinema falado – é muito mal explorada pelo cineasta: o filho apunhalado pelos irmãos da jovem é trazido para a casa de seu pai, que o acredita única e exclusivamente bêbado; todos os personagens estão, pois, mascarados e só podem ser identificados pela voz – tema seguramente mais fácil de representar num filme sonoro do que num filme mudo.
A Gaumont-Franco-Film-Aubert realiza dois filmes sonorizados: um melodrama dirigido por Léonce Perret, Quand Nous étions deux/ Quando Nós Éramos Dois, com André Roanne no papel do jovem rapaz, e uma comédia histórica, adaptação do romance célebre de Alexandre Dumas, Le Collier de la reine/ O Colar da Rainha (Gaston Ravel e Tony Lekain), filme sonoro parcialmente sonorizado, próximo da fantasia histórica parodiada muito malevolamente por Stanley Donen e Gene Kelly em Cantando na Chuva (1952). Os dois produtores independentes da época apostam no modelo do policial sonoro Le Mystère de la Villa Rose/ O Mistério da Casa de Campo Rosa, (prod. Jacques Haïk, dir. Louis Mercanton e René Hervil), e no da opereta tradicional La Route est belle/ A Estrada é Bela, (prod. Braunberger-Richebé, dir. Robert Florey) com o famoso tenor André Baugé no papel de um cantor pobre, apaixonado por uma prostituta, que é levado a substituir um famoso tenor desaparecido. Como para O Cantor de Jazz, os produtores utilizam a notoriedade anterior do cantor como atrativo da nova técnica.
Todos esses filmes são gravados em estúdios ingleses, a maior parte com a aparelhagem RCA Photophone. As produções franco-germânicas do mesmo período são nitidamente mais convincentes. É difícil apreciar Le Réquin/ O Tubarão, produzido por Henri Chomette para a produtora Tobis, que oferece um primeiro papel sonoro a Albert Préjean, porque a cópia que sobreviveu até hoje, restaurada pelos Arquivos do Filme de Bois d´Arcy, compreende apenas duas sequências cantadas e uma última bobina inteiramente falada, dedicada a uma sequência do tribunal. Seu principal mérito é ao menos fazer escutar cantar pela primeira vez numa tela de cinema Albert Préjean, durante a sequência inicial da taberna, prefiguração da famosa cena cantada por Jean Gabin, em La Belle équipe/ A Bela Equipe, alguns anos mais tarde (1936).
La Nuit est à nous/ A Noite é Nossa, coprodução franco-germânica (Films P. J. Venloo, Carl Froelich-film, Lutèce-film) realizada em duas versões por Carl Froelich e Henry Roussell, é seguramente o filme sonoro mais original de produção francesa de 1929. A sequência de abertura, dedicada a uma corrida de carro (a “Targa Florio”), alia com muita eficiência uma montagem ultracurta e efeitos de closes sonoros muito inventivos, à maneira das partituras de ruídos caras aos futuristas e à escola soviética vertoviana. Quando Marie Bell, após o seu acidente espetacular, se encontra numa cabana de pastores sicilianos, estes últimos falam sua própria língua e não se exprimem como os camponeses córsegos irreais do melodrama de André Hugon. É provável que o modelo estilístico das atualidades sonoras tenha influenciado fortemente as sequências “documentarizantes”, rodadas em exteriores, que encontramos nos filmes de ficção do início dos anos trinta. A fascinação dos cineastas pelas corridas de automóveis e pelo zumbido de motores tende a se afirmar nas sequências de perseguição. Assim, no início de Parfum de la Dame em noir/ Perfume da Dama de Preto (1930), Marcel L´Herbier monta em alternância o trajeto de Rouletabille (Roland Toutain) na direção de seu bólide carro, à imagem do jovem engenheiro de A Desumana (Jaque Catelain), e o casamento do casal Stangerson-Darzac, misturando ruídos do motor, música de perseguição com contrabaixo e música de órgão acompanhando a cerimônia nupcial.
Um dos maiores obstáculos contra o cinema sonoro era evidentemente o das próprias línguas. Para explorar os filmes mudos, era suficiente mudar e traduzir os intertítulos. As técnicas de dublagem só se tornarão correntes a partir de 1934-1935, aliás de maneira muito desigual segundo os países. O período de transição (1929-1934) é dominado pela prática das versões múltiplas. O número recorde dessas versões pertence sem dúvida ao Trou dans le Mur/ Buraco na Parede, realizado em Joinville pela Paramount, adaptação de uma peça de Yves Mirande, em 13 versões: versão francesa, René Barbéris, sueca, Edvin Adolphson, espanhola, Benito Perojo, etc.
O multilinguismo se tornou o tema central de alguns filmes, dos quais o mais famoso permanece sendo Allo Berlin? Ici Paris!/ Alô Berlim? Aqui Paris! (Hallo Hallo ! Hier spricht Berlin!, 1931, produção Tobis), de Julien Duvivier, uma única versão compreendendo duas línguas, com roteiro de Rolf E. Vanloo. Dois telefonistas demonstram que sabem se fazer entender em suas próprias línguas; um romance se dá via contatos telefônicos bem antes dos serviços de mensagem atuais e do Navire Night caro a Marguerite Duras (1979). Essa aproximação erótica franco-germânica se opõe à anglofobia desenvolvida por Tristan Bernard em L´Anglais tel qu´on le parle/ O Inglês tal como o Falamos, razão essencial da adaptação desse vaudeville em 1930 por Robert Boudrioz, conhecido diretor de L´Atre/ O Dez (1922) para Gaumont-Franco-Film-Aubert. Um intérprete, em serviço num hotel turístico parisiense, dá um jeito de ser substituído a fim de comparecer a um encontro: um vagabundo perfeito na pele do cômico Félicien Tramel. Se os jovens telefonistas do filme de Duvivier brincavam com a ambiguidade linguística como um fator de sedução, a falta de comunicação entre os funcionários do hotel e os burgueses ingleses de Tristan Bernard é levada ao auge da caricatura em proveito da gíria parisiense que o vagabundo e seu comparsa utilizam. O som do filme busca “desteatralizar” o vaudeville desajeitadamente alternando a sequência inicial dos planos de exteriores vistos a partir da calçada e dos planos de interiores no hotel, enquanto um camareiro usa um aspirador de pó de modo muito barulhento. Um pouco mais adiante, a heterogeneidade topográfica entre o hotel parisiense e os escritórios de Londres é mostrada exclusivamente por intermédio da língua; o único personagem de certo modo valorizado pelo roteiro é evidentemente o jovem jornalista, que fala francês e inglês, e aproveitará para seduzir uma das jovens inglesas (a valorização é infelizmente minimizada devido à interpretação muito medíocre de Roger Dann, caricatura de Georges Flamant em A Cadela). A representação dos estereótipos nacionais ultrapassa os limites da convenção e os atores ingleses (Bell Barnie, Betty Winter, Roy Wood, Ashton) chamam a atenção sobre si excessivamente, tirando proveito de uma carência evidente da direção de atores, tanto que nos perguntamos se o diretor não está ele próprio na situação de vadio que não entende inglês. Apesar de tudo, a última parte do filme fundada num agravamento do absurdo e das corridas perseguições entre os andares se aproxima, em certos momentos, do burlesco de Por Conta do Bonifácio (Room Service, Seiter, 1938, com os irmãos Marx).
A passagem ao falado é tradicionalmente interpretada como sendo uma grave fase de regressão estética do cinema. É verdade que As Três Máscaras e O Inglês tal como o Falamos não oferecerão argumentos hostis a essa leitura, mas a tese simplificadora que considera todos os filmes de 1930-1932 como sendo registros passivos de peças de teatro deve ser seriamente revisada. Em particular, o mito da fixidez da câmera, observado em vários casos como em André Hugon, não se aplica a muitas obras. Eis certamente o caso dos primeiros filmes sonoros de diretores estreantes como Jean Renoir, Julien Duvivier ou Jean Grémillon que revelam, ao contrário, com mais amplitude, a riqueza de sua invenção estética. A sequência da prisão de Cayenne que abre A Pequena Lisa (La Petite Lise, 1930) é uma obra-prima de composição audiovisual e o trajeto da câmera, que chega ao quarto repleto de banhistas, não deixa nada a desejar aos voos de Karl Freund em O Último dos Homens (1924). Duvivier mescla com um virtuosismo extraordinário a estranheza do canto dos curtidores, a cantoria de um pedinte muçulmano e a música de Jacques Ibert no início de seu remake sonoro de Os Cinco Senhores Mauditos (Les Cinq gentlemen maudits, 1931), e Jean Renoir oferece um retrato da burguesia mercantil inteiramente fundado na tipologia das vozes, o sarcasmo livre e, por contraste, a discrição deslocada do modesto caixa Legrand (Michel Simon, com tom quase bressoniano nesse começo de filme), quando roda o banquete de uma indústria em A Cadela (1931). Apenas o cinema sonoro lhe permitiria encenar de tal maneira esse teatro de marionetes social muito amargo.
Augusto Genina, um diretor bem menos consagrado pela história do cinema, após ter filmado com talento um roteiro de René Clair, Prêmio de Beleza (Prix de Beauté, 1930), com uma magnífica sequência final de assassinato da heroína (Louise Brooks) por seu amante perante sua própria imagem de estrela projetada num ecrã, oferece, com Paris-Beguin (Paris-Béguin), adaptação de um roteiro original de Francis Carco, um filme muito representativo da qualidade média da produção francesa, de 1931 (prod. Films Osso, gravação RCAPhotophone). Como em numerosos filmes do período, o filme inicia com um som gravado, o do fonógrafo, Renoir começa A Grande Ilusão (1937) da mesma maneira enquadrando o Marechal (Gabin) que escuta um disco e cantarola a canção “Frou-frou…”. O cinema sonoro se autodesigna assim graças ao registro fonográfico. No decorrer da banda sonora de Paris-Beguin (Paris-Béguin), faz-se escutar a música gravada, a câmera panorâmica no quarto da heroína, repleto de objetos espalhados, de garrafas vazias, de cinzeiros cheios, após uma noite agitada. A decupagem conduz a uma sucessão de closes e de inserts até a intervenção fora de campo da arrumadeira que vai atender o telefone. Outrora, teríamos descoberto em close o olho da heroína que maquia um de seus cílios. A sequência seguinte, totalmente em contraste, introduz o espectador numa cena de music hall após uma vigorosa pontuação musical com címbalo. A diversidade dos quadros, o ritmo da montagem, o descompasso entre a imagem e as informações sonoras mostram que, desde 1931, o cinema sonoro manifestava uma liberdade de escrita e uma mestria dos novos dados técnicos, que se esclerosarão na segunda parte da década, quando o mito da transparência e da decupagem clássica triunfará.
Todavia, o filme que, somente ele, se afigura como manifesto do sonoro no quadro da produção germano-francesa permanece sendo Sob os Tetos de Paris (1930), de René Clair (prod. Tobis, lançamento parisiense em maio de 1930, Berlim em agosto de 1930, Londres e Nova York em dezembro de 1930). Na origem do sucesso do filme, encontram-se os mesmos elementos que asseguraram o triunfo de O Cantor de Jazz: um cantor muito popular que encarna na tela um papel próximo de seu estatuto social, uma intriga linear a serviço de seu talento, que lhe permite surpreender várias vezes os temas recorrentes do filme, como o do título “Sob os tetos de Paris” e “Não é assim”, uma forte inscrição numa tradição cultural anterior (a cultura judia e o jazz para o filme americano, o populismo parisiense e a mitologia de Ménilmontant para René Clair). A Tobis tem a inteligência de unir à magia da técnica cinematográfica (os cenários tão parisienses de Lazare Meerson, a câmera virtuosa de Georges Périnal) a sedução da canção popular e os créditos das edições musicais Salabert. A intriga e os personagens correspondem tão bem aos estereótipos narrativos, que o público internacional sempre acreditou representarem os “tipos” franceses e a ausência quase total de roteiro, além do salto narrativo, ao invés de ser uma falha, se exerce em benefício da clareza narrativa. Clair sabe apostar no “sonoro cantado” e mistura o quanto pode o modelo do falado. O diálogo de seu filme assume uma função dramática tão fraca que a questão da compreensão da língua falada pelos personagens aparece como sendo secundária. Aliás, a jovem romena que corteja Albert não parece entender melhor o francês que o espectador de Berlim ou de Los Angeles. Cada vez que Albert tentará falar com Pola será impedido pela situação dramática; quando canta perante seu público na rua não consegue a proteger das tentativas do bandido. René Clair chega a oferecer ao espectador mais de doze minutos de canções e duas longas sequências de baile popular com acordeão (mais de onze minutos). Nesses vinte e três minutos de música, justificada pela ficção e pertencente ao universo dos personagens, é preciso acrescentar as três numerosas intervenções orquestrais de Armand Bernard, que comentam a narrativa parodiando certos temas contemporâneos de Chaplin. Entende-se que Albert, Louis e Pola não possuam o prazer de se eternizar em discursos intermináveis… Jean-Luc Godard saberá se recordar em Uma Mulher é uma Mulher (1961).
Após alguns anos, depois do fracasso do O Milhão (Le Million, 1931), René Clair emigra para a Inglaterra. Marcel Pagnol e Sacha Guitry vão filmar por conta própria Angèle (Angèle, 1934) e O Romance de um Trapaceiro (Le Roman d´un tricheur, 1936). Outro período do cinema falado tem início com eles.
Michel Marie é historiador do cinema, professor emérito da Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle, autor de vários livros, entre eles, A Nouvelle vague e Godard, o Dicionário Teórico e Crítico de Cinema, A Análise do Filme. Organizou no Brasil em 2012 com a Associação Balafon uma retrospectiva integral da obra do documentarista canadense Pierre Perrault em sete capitais e um colóquio internacional no Rio de Janeiro.
Fernanda Aguiar C. Martins é professora adjunta do Colegiado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, coordenadora do grupo de pesquisa AIS – Análise da Imagem e do Som (CNPq).