Por Ian Gadelha
Lembro quando, há uns anos atrás, um amigo emprestou-me uma cópia de um filme francês chamado O mundo vivente, de 2003. Nunca tinha ouvido falar de tal filme, e foi com alguma expectativa que o assisti, diante das recomendações enfáticas de meu amigo. Grata foi a surpresa pela descoberta de um mundo e de uma estética tão singulares. Os primeiros planos, com seus enquadramentos rigorosos e seu ritmo lento, já revelavam um terreno propício para a poesia, a qual se estende também para as palavras e os diálogos. Seu tom fabular, sua curiosa perspectiva da fantasia e seus planos frontais dos personagens (características da obra do cineasta, sobre a qual falarei adiante) marcaram-me bastante na ocasião. Aquela foi a primeira vez que ouvi falar de Eugéne Green, e seu nome ficou guardado na memória como alguém a se estar atento; era, afinal, uma proposta bastante original dentro do cinema contemporâneo.
Em 2009, Eugéne Green lança A Religiosa portuguesa, seu último filme, e o primeiro do cineasta a ser exibido comercialmente no Brasil. Desta vez, ao invés de um espaço indefinido e um tom fantástico, ou Paris, o cineasta resolve filmar em terras lusitanas.
No início, algumas imagens muito elegantes de Lisboa, ao som típico do fado, elemento utilizado, em algumas partes do filme, para demonstrar com mais precisão e emoção o estado da protagonista ou mesmo seu destino (fado). Nota-se que Lisboa é também personagem do filme, e sua aura repercute diretamente nos personagens. É mesmo um lugar de redenção, cuja mítica o cineasta expõe através de algumas referências à cultura portuguesa. O fado funciona como representação sonora de tal aura. A letra de uma das músicas revela com alguma clareza o estágio inicial em que se encontra a personagem principal: “estou só, quero não estar/ se não estou, quero estar só/enfim quero sempre estar da maneira que não estou”. As palavras e os diálogos, aliás, (que nunca são interrompidos; um só fala depois do outro terminar sua fala), recebem mesmo uma atenção especial da parte do cineasta, somando-se à imagem para evidenciar ainda mais sua poesia.
No primeiro diálogo, o exemplo de frontalidade da câmera diante da personagem, característica que se estende por toda a obra do cineasta: os atores estão postos diretamente na frente da câmera, como se estivessem a falar para nós, espectadores. O efeito de tal operação, principalmente em momentos de maior densidade dramática, é mesmo a intensificação da emoção; o rosto em close, em enquadramento rigoroso, expondo assim de forma ampliada a expressão do ator, contando com a cumplicidade do espectador, como se esse fosse o reflexo daquilo que está sendo mostrado em tela. Certamente não é a primeira vez que tal recurso é utilizado na história do cinema, mas diria que a forma com que Eugéne Green a utiliza, associada a sua estética, torna o resultado dessa operação algo extremamente singular. Esse recurso é amplamente utilizado durante todo o filme.
Na trama, uma jovem atriz parisiense (Leonor Baldaque) chega à Lisboa para atuar em um filme intitulado A Religiosa portuguesa, adaptação de uma obra francesa (mas muito conhecida em Portugal) do século XVII chamada As cartas portuguesas. Tem-se, portanto, uma forte função metalinguística dentro filme, que repercute e se desdobra de variadas formas ao longo da história, adquirindo, inclusive, ares transcendentais a partir de determinado ponto. Diria até, utilizando um termo da literatura, que este é um “filme de formação”, visto que acompanhamos as questões da personagem e sua evolução e descobertas durante o decorrer do filme.
Inicialmente, temos contato com Julie e o início de sua jornada, em que se encontra sozinha a explorar Lisboa (o nome da primeira parte do filme é “A mulher solitária”). Se se encontra só, não é por muito tempo; ocorre uma série de encontros, que pouco a pouco vão dando pistas da natureza do que a incomoda: uma busca pelo amor, ainda que não se saiba exatamente de que natureza é esse amor. Paralelo aos encontros, as filmagens, onde Julie interpreta a religiosa portuguesa, formando assim a subtrama ficcional que funciona como elemento impulsionador da questão dramática fundamental da personagem, tornando-se essencial para a compreensão e construção da narrativa. Dessa forma, a vida de Julie e da personagem se confundem cada vez mais – “tento misturar a verdade através de coisas irreais”, diz Julie em certo ponto do filme –, culminando em um encontro final revelador que é uma das coisas mais bonitas já feitas no cinema dos anos 00. É ver pra crer.
Exceto por um pequeno grupo de fãs, a obra de Eugéne Green permanece pouco conhecida no Brasil. Uma obra a se descobrir.
Ian Gadelha é estudante do Terceiro Período do Curso de Cinema da UFRB.