Por João Marciano
Não é de meu interesse criticar a postura do cineasta Glauber Rocha, muito menos apresentar alguma teoria ou expressar uma opinião geral por sua variada obra. Na verdade, venho com um intuito de criticar um hábito mais incômodo. Quando, no Cinema Novo, se propagou o conceito de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” um novo problema surgiu. Certamente, nem todo entendedor de cinema é capaz de pegar uma câmera e com um orçamento miserável dar vida a um filme grandioso como Deus e o diabo na terra do sol, afinal, só existiu UM Glauber Rocha. Mesmo eu sendo grande entusiasta das produções independentes e dos corajosos cineastas desbravadores que se propõem a filmar algo em circunstâncias desfavoráveis, criou-se muita expectativa quanto ao cumprimento destes objetivos. Que qualquer um pode sair com uma câmera e produzir um filme decente, ou às vezes, além disso, adquirir reconhecimento em um processo mais simples. Esta é a “Síndrome de Glauber Rocha” que se manifesta em alguns estudantes de cinema, o que, em poucas palavras, não deixa de ser um complexo de genialidade e total deslumbre pessoal.
Não pretendo me alongar demais neste assunto, então tentarei ser o mais direto e breve possível, além de tentar esclarecer minha perspectiva, sendo esta crítica livre de qualquer desentendimento pessoal que possa vir a ser interpretada dentro do que for apresentado.
Atualmente isto tem se apresentado com menos frequência, mas ainda assim está presente principalmente com a popularização de títulos que se promovem como found footage (gravação perdida), como é o caso de alguns dos maiores sucessos de bilheteria do gênero de terror: A Bruxa de Blair, REC e Atividade paranormal. Esta técnica de filmagem reforçou a ilusão de que não precisa de muito para se fazer um longa metragem, principalmente agora quando a qualidade da imagem pode ser explorada desta forma. É necessário esclarecer que o problema não é o baixo orçamento, o problema vem das “ideias na cabeça”. Tomemos como exemplo positivo o filme mariliense Matadouro. Este longa feito no interior de São Paulo contou com um orçamento bem baixo, mas o roteiro e o modo como foi montado permitiram que mesmo com as limitações fosse melhor do que Desaparecidos, filme brasileiro de 2011 dirigido por David Schürmann. Muitos dos portadores da “Síndrome de Glauber Rocha” não se dão ao trabalho de usufruir de suas limitações para favorecer o projeto e de produzirem um roteiro que seja facilmente adaptável às ocorrentes mudanças possíveis. Basicamente, os sofredores deste mal apresentam uma grande imaturidade e falta de experiência perante o processo de construção de um filme, mas ainda temos que tomar cuidado para não confundi-los com os adeptos do trash, cujas produções são feitas para serem propositalmente ruins.
Dificilmente o diretor que sofra da Síndrome tem seu filme finalizado, pois os problemas que se manifestam nesta experiência acabam conflitando com os principais sintomas deste mal. Para ser honesto, nunca cheguei a ter acesso a qualquer título que tenha sido concluído dentro destas circunstâncias, afinal, ao se desiludir de tal façanha há três posições que podem ser tomadas: trabalhar melhor o roteiro e os recursos a fim de realizar algo mais sensato sem as alucinações de grandeza; buscar um apoio financeiro melhor e concluí-lo como uma produção de considerável orçamento; assumi-lo como trash; ou, então, abandonar o projeto. Como podem perceber, a “Síndrome de Glauber Rocha” não é algo duradouro, apenas uma fase em que alguns poucos jovens cineastas e cineastas novos se deparam antes de se desiludirem ou amadurecerem. A culpa não é de Glauber, e muito menos é uma problemática de âmbito nacional, mas que se torna mais evidente no Brasil devido ao sucesso de Deus e o diabo na terra do sol na época em que foi feito e devido ao fato de que fazer cinema neste país é um verdadeiro desafio. Isso ocorre quando a forma de se produzir um filme cai de importância e se passa a valorizar o “gênio ainda não descoberto”.
Em casos menos comuns ainda, indivíduos que não possuem qualquer conhecimento na área de audiovisual enxergam a possibilidade de fama ou de grande repercussão, já que, graças à filosofia de “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, se pressupõe em vários casos que qualquer formação ou experiência neste ramo é dispensável. O fato de que qualquer um pode fazer cinema não implica que qualquer um pode, necessariamente, fazer um bom cinema. Com o advento da internet isto se tornou um motivo que leva algumas pessoas a se exporem ao ridículo, gerando uma enorme onda de antissucesso que antes só era empregada aos melhores dos piores trashes produzidos. Qualquer um pode, sim, fazer cinema, desde que se tenha, no mínimo, uma boa noção sobre o que isso significa.
Neste ponto podemos concluir que esta Síndrome não atinge apenas quem ingressa no ramo cinematográfico com delírios de grandeza, mas também pode se manifestar em pessoas comuns que não entendem nada do assunto. Não pretendo discutir até que ponto o “cinema” e estes materiais se diferem por uma simples conformidade, já que atualmente as fronteiras entre as artes se diluíram, inclusive o que se considera “audiovisual”. Vale relembrar que a Síndrome de Glauber Rocha não está muito distante dos estudantes, apesar de nunca ser antes nomeada de tal forma. Entretanto, vem perdendo radicalismo e se tornado bem menos frequente do que já veio a ser. Toda profissão possui uma problemática similar, mas no campo das artes estas questões tendem a ser sempre mais valorizadas e até ironizadas (na área da literatura poderíamos muito bem descrever o mesmo fenômeno como “Síndrome de Paulo Coelho”, por exemplo). Gostaria de poder lançar uma lista de sintomas, mas não só seria inválido como também ineficiente, visto que cada um manifesta a Síndrome de modo diferente, mas há, como já havia apontado logo no começo, um complexo de genialidade que é padrão e pode ser notado.
Para ser franco, sou a favor do profissional humilde que sabe pontuar e distinguir bem as coisas. Não menosprezo qualquer experimentação e ousadia, deixo bem claro isso, porém ninguém deve entrar de cabeça em algo sem ter algum conhecimento do assunto e maturidade para concretizar seu projeto. Esta é a razão pela qual a Síndrome é vista como uma “arrogância premeditada”, e é necessário ser bem honesto para admitir que todos neste meio já tiveram esta autoprojeção em algum momento de suas vidas, mas uma hora ou outra precisamos ser mais realistas. “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” é de fato uma ideia fascinante, mas muito mais complicada do que parece ser.
Parabéns pelo texto. Acredito que a ideia pós movimentos impressionista, expressionista, etc, contribuem para este pensamento também. A impressão simplistas das artes modernas escondem a técnica e estudos empregados para produzir bons trabalhos.