Por Guilherme Sarmiento
Uma das grandes estrelas desta 9º Edição do Panorama Internacional Coisa de Cinema, sem dúvida, é o falo. Apesar de eleger o “cu” como protagonista, o filme de Hilton Lacerda abriu novas possibilidades de abordagem do nu frontal/lateral masculino com um atraso de mais de quarenta anos do observado em Os cafajestes, reconhecido pela desinibição com que Norma Bengell expôs seu sexo diante das câmeras. O corpo do homem, ao contrário do da mulher, só era então completamente defasado para evidenciar o ato sexual em si. A ostensividade com que as pornochanchadas deixavam à mostra o púbis das atrizes e escondiam o dos atores reforçaram ainda mais um tabu até há pouco difícil de se transpor sem certo grau de desconforto. Talvez, antes de Tatuagem, Cinema falado, de Caetano Veloso, cujo verbo no particípio induz tanto a um sentido de “fala”, “voz”, como de “falus”, tenha sido o que melhor se defrontou com esse interdito e tentou superá-lo com naturalidade. Não podemos esquecer também de Como era gostoso o meu francês, ainda que no filme de Nelson Pereira dos Santos esta nudez seja forçada por um sentido rigoroso de reconstituição histórica. Devido a estes meus questionamentos, no intervalo de uma das sessões, ao me deparar com o diretor de um dos longas da noite, Jorge Alencar, brinquei com ele dizendo que seu filme deveria se chamar “pinto” ao invés de Pinta. São inúmeras as referências, tanto simbólicas quanto materiais, ao pênis neste filme, entretanto, sua amostragem não foi exclusiva: Fernando que ganhou um pássaro do mar e Exilados do vulcão fizeram menção à “personagem” antes do fim da noite. Considero este enfoque da sexualidade, mais do que um mero apelo a novas orientações do desejo, uma tônica do cinema contemporâneo, para o qual o corpo se tornou a última trincheira da política.
Obviamente os filmes apresentados na Competitiva Nacional VIII não tinham o sexo como sua fonte principal, excetuando o grotesco e divertido jogo cênico denominado Pinta. Devido a atrasos na viagem entre Cachoeira e Salvador, o programa foi alterado e a Competitiva menos extensa foi transferida para o primeiro horário, às 16 horas. Um longa com jeito de média (72 min.) e um curta um tanto excessivo (20 min.). Como é tradição no Panorama, os longas são introduzidos por curtas e esse formato reflete posicionamentos políticos bem claros da curadoria. Além de ser um ato em memória de uma lei que obrigava as salas de cinema exibirem um filme curto antes de qualquer obra cinematográfica comercial (Lei do Curta), este gesto parte de um entendimento de que não existe desnível estético entre as metragens e que ambas devem ser apreciadas em conjunto. Tal cosmovisão cinematográfica trás benefícios sobretudo para os iniciantes cujas películas, muitas vezes, florescem ao pé de árvores de grandes e protetoras copas, devolvendo ao espectador um insuspeito sentido de unidade à programação/paisagem.
Como o apontado em artigo anterior, nada parece gratuito nesse festival minuciosamente planejado e,em função disso, assiste-se sempre às sessões com uma pulga atrás da orelha. Neste dia o pequeno inseto satisfizera-se plenamente com os jogos propostos (ou não) por Marília Hughes e Cláudio Marques. Foi especialmente sentido o momento em que uma sereia atravessou os créditos finais do curta e deixou o vestígio de suas barbatanas de plástico sobre a fantasia, ainda fresca, de um personagem do longa. O menino filósofo de Pinta possuía um rabo de peixe e, de forma inusitada, apontava sua genética híbrida através de um traçado intertextual pré-estabelecido. O próprio nome Pinta – motivador da brincadeira infame anterior – já criava um desconcertante vínculo entre estes dois filmes tão diferentes um do outro. A princípio pensei ser o nome de uma das caravelas que chegaram ao Brasil, (Santa Maria, Pinta e Niña), motivo reforçado pelo tema da película de Felipe Bragança e Helvécio Marins Jr.
Fernando que ganhou um pássaro do mar, o curta da sessão, é uma comédia que trata desta relação um tanto quanto complexa de uma colônia com seu antigo colonizador, onde a gratidão pelo descobrimento se deixa, muitas vezes, encobrir pelo despeito ou pelo rancor. Ele começa com um indígena empurrando um barco em cujo interior está um papagaio. A ave viçosa e falante representa uma espécie de moléstia subdesenvolvimentista e, ao aportar na Península Ibérica, leva com ela tudo aquilo que anteriormente Portugal legou a sua colônia depois de anos de espoliações. Inflação, desemprego e derrotismo chegam na Terrinha como um presente de grego. Só resta ao português devolvê-lo e, com esse ato, desfazer nossa falsa euforia civilizatória no retorno do regalo. Curiosamente, o curta parece um roteiro do Bressane – se ele escrevesse roteiros – dirigido por João César Monteiro – se ele estivesse vivo. Apesar de seu pendor para a comédia, talvez pelas inquietações de Felipe Bragança, cujo curta Zahy tangenciava o mesmo tema, a proposta de um filme politicamente engajado e conectado com as questões do presente desfez as iniciais potencialidades de um riso menos envergonhado.
Prosseguindo dentro da programação, testemunhamos a estreia do supracitado Pinta, cujo deboche e humor desconcertantes conquistaram a plateia, ora retirando gargalhadas ora constrangendo o público a um silêncio súbito pelas altas cargas de nonsense. Destaque aqui para o diálogo sobre a vagina ácida, um plano longo no qual o carisma dos atores, associado a uma direção de arte apropriada, resumiu bastante bem a proposta do filme: todas as cenas estão pautadas pela criação de um ambiente erótico e ao mesmo tempo anedótico. Não é a toa que uma das grandes referências cinematográficas do filme seja O sabor da melancia, do cineasta Tsai Ming-Liang: a banalidade com que o sexo é experimentado na contemporaneidade levou-o a um grau de fantasia tão absurdo que, paradoxalmente, infantilizou o praticante em meio ao seu sonho de um prazer sempre aquém do desejado. Só resta, abaixo desta camada de riso, a expressão de certa agonia mal disfarçada. Esta agonia adquire substância no filme, não exatamente consciência, pela capacidade de Jorge Alencar em elaborar um balé de corpos, de imagens plásticas e, também, por seu acurado senso de montagem. Entretanto, ao transpor para a tela sua experiência de 15 anos junto a uma companhia de teatro, tornando o filme, primordialmente, uma colagem de sketches escolhidas para celebrar o vínculo profissional e artístico, Pinta acaba enredado em suas origens sem efetivamente se configurar como uma experiência cinematográfica plena.
Essa impressão não advém exatamente de uma postura teatral ostensiva dos atores e da cenografia diante da câmera, mas de uma narrativa sem pouso, errática. Por mais que Jorge Alencar tente, através da criação de um narrador em off, traçar uma ponte entre suas muitas histórias, elas não deixam nunca de ser sketches sem um fim muito claro. Mesmo após a fala do menino filósofo, cuja máxima contrapõe mistério a enigma, dando a chave para que a fragmentação narrativa extrema da película seja apreciada como um recurso formal legítimo, fica-se a impressão de uma experiência interessante, mas ainda assim inarticulada. Pois todos que propõem um enigma, qualquer que seja ele, possuem de antemão sua resposta, ainda que esta resulte provisória. E Pinta intermitentemente recusa-se a responder e, ao invés de intrigar o espectador, deixa-o satisfeito com suas soluções divertidas de encenação e alienados de um sentido menos centrípeto de construção dramática.
Abaixo um pequeno depoimento de Jorge Alencar durante sua passagem por Cachoeira: