III FESTIVAL DE CINEMA UNIVERSITÁRIO DE PENEDO

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Por Guilherme Sarmiento

Chegar até Penedo se parece muito com se chegar até Cachoeira. Em ambos os trajetos há a predominância da monocultura da cana que, se antes era matéria-prima para o açúcar, hoje serve para abastecer os carros de combustível. A cachaça ainda é a nossa principal fonte de renda. E, nesse sentido, entre Salvador e Cachoeira, Maceió e Penedo, vemos espalhada nas marginais a matéria-prima de nosso maior engenho: o cinema. Cinema é cachaça. Lembro da vez em que Sérgio Santeiro, ao retornar de São Luís do Maranhão, me presenteou com uma garrafa de Tiquira, uma bebida alcoólica azulada e forte, espremida da raiz da mandioca. Tudo que fermenta produz aguardente. Pela janela do micro-ônibus os bagaços da cana, os melaços secos pelo sol, desprendiam um cheiro adocicado e entorpecente. Estava ali como convidado do 3 Festival de Cinema Universitário de Alagoas.

Atrás de mim, enquanto recostava a cabeça e tirava breves cochilos diante da planície verde, escutava a conversa animada de Ranieri Brandão e Ricardo Lessa Filho, dois jovens críticos que recolocaram o cinema alagoano na pauta do dia. Iam ministrar uma oficina dentro do festival. Os dois, assim como toda uma equipe de redatores, realizaram um importante dossiê para a revista eletrônica Filmologia, onde se elaborou uma revisão histórica da cinematografia alagoana e, ao mesmo tempo, se constatou a vitalidade da produção recente: vinte e três curtas cobertos por palavras circunspectas, cercados por olhares inquietos por testemunhar um novo nascimento. Eles representavam toda a força de uma nova geração para a qual o cinema tornou-se um bem compartilhado, escapando das salas de exibição pouco a pouco ocupadas pelas igrejas, ou sitiadas em shoppings centers, para acabar comprimido na forma de arquivos AVI, MP4 e baixado de sites especializados, como o Making off, para os drives de computadores pessoais. Assim como a Sétima Arte, a escrita também encontrou nas páginas virtuais o meio ideal para se disseminar sem a necessidade de um substrato material. Talvez na internet a crítica de cinema tenha encontrado a interface ideal para dialogar com seu objeto: ambas estão reduzidas agora a uma mesma tela luminosa. Tanto a página quanto a imagem em movimento chegam até o olhar do espectador após atravessarem quilômetros de cabos óticos ou de reverberarem suas ondas no perímetro de um roteador, diferenciado-se somente pelo alinhamento de um código a ser decifrado.

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É a partir deste novo estado de coisas que se chega até Penedo. A pequena cidade histórica localizada às margens do Rio São Francisco hoje não possui salas de cinema. O Festival de Cinema Universitário de Alagoas, realizado entre os dias 12 e 16 de novembro de 2013, projetou os curtas da mostra competitiva no bonito Teatro Sete de Setembro, adaptado para exibição em digital, sendo que há vinte anos atrás qualquer evento cinematográfico era recebido na ampla e luxuosa sala do cinema São Francisco, hoje adormecida no subterrâneo do principal hotel da região. Quatro dias após minha chegada fui levado, junto com o jornalista Ninho Moraes, até o antigo Cine Penedo, parcialmente reformado pelo IPHAN, e atualmente sob os cuidados da Universidade Federal de Alagoas, que, na figura do incansável Sérgio Onofre, pretende reativá-lo e, nos fundos, estabelecer as salas de aula de um futuro curso de audiovisual. Naquela construção presenciamos uma cena memorável. Um grupo de antigos moradores irrompeu na semiobscuridade do galpão e, medindo o espaço vazio, lembrou dos tempos áureos de um aparato hoje experimentando outros arranjos de fruição estética. Sob a casca do prédio ainda sem cadeiras, telas, cabines, ou equipamento de projeção, as senhoras impunham com sua memória a notação de uma distância, de um afastamento, já inalcançável pela materialidade do presente: as imagens em movimento expandiram-se em outras direções e já não habitavam ali.

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Da mesma forma que, hoje, o cinema como aparato se desmonta para ser um conjunto de ações de preservação de uma memória, a universidade, com cada vez mais recursos, avança para se tornar um dos promotores deste resgate. Sem sombra de dúvida, com a ampliação de oferta dos cursos superiores em audiovisual, criou-se não somente a ambientação ideal para a expansão da produção de curtas-metragens, como as condições para que iniciativas de extensão estabelecessem um plano de acesso a estes produtos através da criação de Cineclubes e Festivais de Cinema. Ou seja, a Universidade passou a ser um agente direto na formação do público e na promoção de novos cineastas. Um dos objetivos de minha presença ali era justamente divulgar um projeto que pretende qualificar e quantificar a produção de filmes realizados em universidades, além de encontrar novos canais para sua circulação: a Rede Nordeste de Cinema Universitário. Representava um projeto nascido na UFRB, dentro do PET-Cinema, grupo de pesquisa tutoriado por Rita Lima. Durante as sessões competitivas, entrei em contato com uma produção diversificada e vigorosa, bastante representativa das inquietações de uma nova geração que se apresenta.

A primeira delas é que, mesmo mantendo a excelência na feitura de documentários, o cinema brasileiro contemporâneo tenta fugir de uma abordagem vertical da sociedade e, ao contrário de outras épocas pautadas pelo enfoque da miséria e da pobreza como frutos da injustiça social, preocupa-se mais em documentar seu entorno em tom íntimo, fazendo emergir os contornos de um diário, ou desconstruir esta polarizações muito rígidas através de um olhar antropológico. É o caso, por exemplo, de Leprosário, curta representante da Paraíba, no qual uma vila habitada por portadores de hanseníase é mostrada a partir de um olhar integrado ao cotidiano, aproximado, mais interessado em entender o funcionamento dos vínculos internos estabelecidos ali do que cartografar os perímetros de uma marginalização alhures. Seguem pelo mesmo caminho os dois documentários premiados da noite, Mwany, um sensível relato sobre uma migrante moçambicana em Maceió, grande vencedor da noite de premiação, e Codinome beija flor, um projeto mais arriscado, por abordar o desgastado, e ainda assim inquietante, tema da Aids, premiado pelo público.

Mwany, curta dirigido pelo alagoano Nivaldo Vasconcelos, aborda o dia a dia da cativante Sônia Andrea, que deixou para trás Moçambique para vir estudar no Brasil. O filme não se contenta em simplesmente documentar o cotidiano de uma imigrante, mas busca elaborar uma série de emblemas confeccionados a partir de um acervo mítico, poético, legado pela cultura africana. Cada cena procura sintetizar alguns conteúdos simbólicos expressivos de uma região mitificada. Sônia, a partir desta chave, não é simplesmente uma pessoa individualmente constituída, dividida entre dois mundos. Ela é a própria Mãe África desterrada. Sua força telúrica e sua fertilidade expressam-se através da árvore – elemento natural constantemente enquadrado na película – e nos cuidados dispensados à filha. Esta potencialidade criadora do feminino e suas reverberações emblemáticas tem seu momento mais feliz no depoimento da própria personagem, que compara os mil usos da capulana, tecido com estampas coloridas, utilizado como turbante, saia, toalha, canga pelas moçambicanas, com a versatilidade feminina. Prosseguindo por esse mesmo tom intimista, Codinome beija flor, premiado pelo público, colhe relatos de pessoas comuns que, a princípio, escapam dos considerados “grupos de risco”, fornecendo uma painel multifacetado dos portadores do HIV. Em alguns momentos, mesmo considerando a boa intenção da proposta, o filme soa pudico e superficial, pois não revela com clareza como algumas personagens contraíram a doença e, com isso, perde-se a meada de um ciclo pela imposição de um interdito.

O juri acertadamente, nesta edição do Festival Universitário de Alagoas, dividiu o prêmio principal entre o documentário Mwany e a ficção O que aprendi com meu pai, de Getúlio Ribeiro. Com uma dramaturgia bem feita e uma fotografia adequada ao contexto árido e errante de um matador de aluguel, o curta mostra que, além do experimentalismo formal e temático, há espaço para se realizar filmes mais arrojados narrativamente dentro da universidade, curtas que apostam numa via mais direta de diálogo com o público sem com isso agredir a inteligência de ninguém. Foi muito gratificante perceber que a curadoria, talvez por ser este um festival ainda em vias de imprimir uma marca, deixou um leque de curtas tão heterogêneos constarem na programação e fornecerem um painel bastante significativo da produção universitária contemporânea. Diante destes filmes, coloco-me como Ranieri se colocou diante do cinema Alagoano:

 “Um cinema que foge porque nossas letras nem sempre o alcançam e porque nem sempre as palavras pesadas para falar sobre ele são as melhores ou mesmo as piores – bem como ele mesmo, um cinema que, ainda que dentro do conceito (…), assusta perante a instável busca pelo aprendizado da narração”.

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