Por Guilherme Sarmiento
Estamos chegando ao fim da cobertura. Este é meu último texto e, certamente, se estivesse sentado diante de meu computador para escrever sobre uma sessão desagradável, seria muito difícil superar o mal humor e com o espírito nublado pelo cansaço as obras não realçariam minha imaginação e não me despertariam para a escrita. Mas o fato é que a última sessão exibida em Cachoeira, dentro da Mostra Competitiva Nacional IV, para mim, continua viva e seus filmes ganham cada vez mais nitidez conforme se distanciam no tempo. Pensava sobre isso, ontem, no encerramento do Panorama Internacional Coisa de Cinema em Salvador. Em meio ao burburinho das premiações e da tão aguardada estreia do longa Depois da chuva, no hall de entrada do Espaço Itaú, em frente à Praça Castro Alves, via passar por meu campo de visão quase todos aqueles que ajudaram a tornar a edição no Recôncavo um sucesso, apesar das adversidades. Lá estavam Cyntia Nogueira, e o grupo de alunos responsáveis pela produção, e alguns realizadores e técnicos que compareceram ao auditório do CAHL, centro da UFRB, para debater com o público: entre eles, o editor do filme Exilados do vulcão, de Paula Gaitán, Fábio Andrade.
É notável a presença de críticos realizadores no cinema brasileiro recente e, muitas vezes, esta vida dupla não pode ser levada por muito tempo sem que a paixão de construir a própria obra não torne a opinião sobre as alheias um peso morto, talvez uma forma parasita, a ser com o tempo deixado para trás. Lembro-me bem do dia em que Kleber Mendonça recusou, muito delicadamente – isso foi no Panorama do ano passado –, colaborar com um texto para Cinecachoeira, porque sua condição de cineasta impedia-o de emitir qualquer juízo sobre a obra de outros colegas. Temo que o mesmo ocorra com Fábio Andrade, um dos destaques da revista Cinética e, atualmente, colhendo os louros merecidos pelo seu trabalho em Exilados do vulcão. Ironicamente, fora através de seus textos postados na revista virtual que Paula Gaitán conhecera sua arte e, a partir daí, surgiu o convite para que desse ao material até então bruto – segundo a autora, 90 horas de filmagem – uma pulsão musical, rítmica, dificilmente encontrada no cinema brasileiro recente. Se a crítica busca uma chave explicativa que dê acesso à obra, editar imagens, de um filme de conotações transcendentais, pede uma casa sem portas e sem janelas. E, aqui, dessa forma, o rigor de uma visão crítica se colocou a serviço de uma obra aberta sob a regência delicada e etérea da diretora colombiana.
Mas antes de chegar ao último longa da competitiva, temos de passar pelos curtas, que na última sessão foram dois: Sanã, de Marcos Pimentel, Tremor, de Ricardo Alves Jr. O programa de terça-feira, dia 05 de novembro, para mim, foi o mais interessante dos que eu tive oportunidade de assistir em Cachoeira, pois, nestes seis dias de cobertura, dividi regularmente o trabalho com dois alunos: João Marciano e Thacle de Souza. Fiquei especialmente tocado com a história passada nos lençóis maranhenses: Sanã é um filme que se movimenta quase automaticamente conforme a personagem é enquadrada diante de uma paisagem em diálogo. Portanto, o grande achado do filme foi o menino albino, uma espécie de criatura solitária e solar, representativa do amálgama do sal, da areia e da água. Através da figura tocante da criança se espelha toda a fragilidade de um ecossistema. Ao tempo em que sua alvura se materializa diante de um lugar em perpétua mudança, pela ação dos ventos sobre as dunas, ela se mortifica pelo castigo do sol sobre a pele desprotegida, cheia de feridas. Ao tempo que o lugar lhe dá de comer, aos poucos vai minando sua vida. Parece um crustáceo desprotegido, sem casca, recebendo sobre si todo o peso dos raios ultravioletas. Já Tremor consistiu no curta com a dramaturgia mais bem acabada do festival, levando os espectadores a submergir cada vez mais na escuridão da dor e do desespero. Durante todo o filme somos obrigados a encarar a trança de um homem em busca da esposa e este trançado revela-se ao final o simbolo de um laço, indissolúvel, com a morte.
Por fim, Exilados do vulcão. Paula Gaitán tem muita coisa em comum com outra cineasta brasileira que vem ultimamente se destacando por fazer do cinema uma experiência estética plena: Helena Ignez. Ambas foram casadas com mitos sagrados do cinema brasileiro e desde que ficaram viúvas manifestaram seus dons indiscutíveis para a sétima arte. Mas se em Ignez nota-se certas(incom)posturas estilísticas bem próximas das realizadas por Rogério Sganzerla, como evocações temáticas a partir de uma perspectiva feminina, Gaitán constroi um mundo muito particular que em nada lembra as vertigens do líder cinemanovista. (Após a sessão, a cineasta gentilmente respondeu sobre este aspecto de sua vida e sua obra, que postamos logo abaixo):
Se existe vertigem em Exilados do vulcão ela brota de correntes subterrâneas e não visíveis a olho nu, pois seu epicentro não se localiza no ponto de embate do indivíduo com a sociedade, ou do indivíduo com outro indivíduo, mas mina como água opaca por entre o risco permanente de se perder a memória. E a memória aqui não se satisfaz como um simples dado psicológico, pois o que o filme diz em todos os enquadramentos é que o homem não é a medida das coisas e, também, a memória não está contida em seu ser. Ela se espraia pelas encostas, se acumula sobre as crostas das árvores, suspende-se na atmosfera como uma neblina densa e pegajosa, constituindo a própria matéria da existência. Nós não contemos nossas lembranças, porque elas são muito maiores do que nós e, por isso, estamos inseridos nela como dentro da cavidade de um vale pedregoso. Não há nada mais triste para um amante do que se ver esquecido pelo seu amor, pois este esquecimento é experimentado como se fosse a morte de um ente. O mesmo se pode dizer das montanhas. Elas também experimentam o luto ao serem erodidas pelo vento e tomadas pela vegetação. O filme de Paula Gaitán é original porque amplia nosso olhar, deslocando-o de um decadente e narcisista humanismo secular, dando ensejo ao surgimento de um panteísmo que prescinde de corpos individuais, um olhar romântico que integra a natureza a este projeto de resgate, de salvamento do homem pela preservação de seu próprio meio.
América arvoredo,
sarça selvagem entre os mares,
de pólo a pólo balançavas,
tesouro verde, a tua mata.
Germinava a noite
em cidades de cascas sagradas,
em sonoras madeiras,
extensas folhas que cobriam
a pedra germinal os nascimentos.
Útero verde, americana
savana seminal, adega espessa,
um ramo nasceu como uma ilha,
uma folha foi forma de espada,
uma flor foi relâmpago e medusa,
um cacho arredondou seu resumo,
uma raiz desceu às trevas.
Assistir à Paula Gaitán é como ler Neruda. O homem é feito de barro, de pedra e de líquen. Um ponto a mais dentro de uma paisagem, que sempre está à beira de esquecer-se.