VESTÍGIOS DE UM ENCONTRO COM JÚLIO BRESSANE – POR UMA DRAMATURGIA DO SOM

por Virginia Flôres

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Introdução

Este meu encontro com Júlio Bressane se deu no Leblon, Rio de Janeiro, em sua casa, numa tarde de 19 de março de 2011. Era meu propósito inicial fazer umas três entrevistas ao longo da escrita do meu trabalho de pesquisa de doutorado[1]que versou sobre o som fora de quadro, a partir do cinema moderno. Com as entrevistas eu esperava investigar como o cineasta vinha trabalhando o som em seus filmes na contemporaneidade. Os filmes MIRAMAR (1997), SÃO JERÔNIMO (1998), DIAS DE NIETZSCHE EM TURIM (2001) e FILME DE AMOR (2002), foram objetos de estudo de caso do meu trabalho.

A transcrição dessa primeira conversa encontra-se agora aqui, na Revista CineCachoeira, numa forma de compartilhar com a comunidade de pesquisadores. Mas, como o próprio Júlio diz na entrevista, “tudo o que se faz é aquele momento”. E não houve outros momentos formais como este de 19 de março. Não houve outros encontros, perpetuados em forma de áudio, que possam servir como material de pesquisa, mas encontros informais que guardo com muito carinho e sabor em minha memória.

A transcrição do áudio é uma forma de se guardar o que foi dito, de se perpetuar as palavras em suporte papel. É diferente, é diverso de se escutar a conversa, mas, creio eu, tem um valor especial: o de podermos imaginar as entonações, as inflexões, os assuntos mais atraentes para cada um dos presentes, as coisas que se valorizaram ou se desprezaram. É como uma imagem fora do quadro.

O resultado do encontro foi muito além do que eu buscava inicialmente. Falou-se pouco, afinal, dos filmes que constavam da minha pauta inicial, porém muito do que se pode dizer conceitualmente sobre o assunto som fora de quadro. Mais do que uma entrevista, Júlio deu um depoimento, livre e contundente, sobre o som e a imagem, sobre o trabalho dessas matérias tão caras para quem faz cinema. Falou de sua forma artística, tão cara a seu trabalho como é a experimentação; de como é o encontro com o(s) outro(s), com seus colaboradores, com as alteridades; de conceitos filosóficos; de costumes das épocas, das influências da cultura; de música; do som fora de quadro que desautomatiza uma imagem, que traz algo de inesperado para quem recebe.

Espero que essa conversa venha contribuir para o leitor aprofundar suas ideias a respeito do pensamento do cineasta Júlio Bressane.

Virginia Flôres

Vou começar falando sobre os filmes que trabalhamos juntos, na verdade, não os revi especificamente para o nosso encontro. Um bom ponto de partida seria falar do som desses filmes, a partir de “Miramar”[2]. Isso se explica porque o meu trabalho é sobre o som. Estou querendo ir à França falar com uma senhora que trabalha o som como vestígio, o som como memória, sempre como acúmulo de memória, etc. Então, dos filmes que a gente fez, você lembra especialmente de algum deles, de algum ponto em que a gente tenha trabalhado essa questão do espaço imagético e sonoro diferenciado? E como você acha que os signos do filme cresceram em função disso?…

Júlio Bressane

São coisas que fogem a certos esquemas de pensamento; em alguns casos são experimentos que você faz, evidentemente, tirados de uma outra coisa, que acabam se juntando numa imagem ou num som, e que você não tinha feito antes, e nem tinha havido esse tipo de …

VF

Sem pensar num resultado…

JB

Eu vou tentar desenvolver essa coisa com você, mas só para te dar um exemplo anterior de experimento, em que naquele dado momento, por rebeldia, por tudo, fiz filmes que tinham o caráter de ruptura, de violência. Que eu mesmo não tinha avaliado quando estava naquele momento fazendo. Estar desfiando, montando os fios de uma patologia sua que naquele momento, e que te acompanha a vida inteira, e que naquele momento estava…

VF

Era inconsciente…

JB

Era inconsciente o experimento, você estava fazendo um experimento, era inconsciente como tudo que é inconsciente num olhar, num gesto. E tinha também o fato de não ter um exato parâmetro anterior. Nesse caso eu me lembrei que tem a Família do barulhoO Anjo Nasceu, que nesse sentido teriam muitas coisas a te falar sobre a questão da desautomatização do som, a separação da imagem, o acúmulo sonoro, o som espacializado… Tudo isso, a montagem de som, não a montagem do som na imagem, a montagem do próprio som. Esses dois filmes poderiam te falar muito sobre isso, mas isso ainda não é um preâmbulo e me lembrei do Agonia. Por um procedimento obscuro, um procedimento que poderia até ser chamado de “brutalista”, eu revendo esse filme há uns anos atrás fiquei surpreendido, porque esse é um tipo de montagem de som, que por muitas razões de rebeldia, de vontade de construir e de destruir, o filme tinha uma pista só, não tinha duas. E essa pista só foi direto para o ótico. Isso é um procedimento que não se faz por muitas razões, inclusive por uma prudência técnica. Contudo, isso, como qualquer coisa, tem um resultado. Você pode fazer uma impressão do livro em papel bíblia, com determinados cuidados, com iniciais em letra gótica, etc, mas pode também fazer o papel quase que com mimeógrafo ou com outra impressão e dependendo do momento, do costume da época, que é o que nos comanda, a coisa ser mais ou menos mal feita. Mas depois, fora daquela época, daquele momento, você vê como uma outra coisa qualquer. E há ali uma coisa muito interessante que é a questão do inconsciente do som. Como existe o inconsciente da imagem. Isso é uma coisa interpretativa. A memória inconsciente do som como existe uma memória inconsciente do tempo. Ali, com esse processo, eu percebi uma diferença em pelo menos três sons de silêncio. Existem numa determinada trilha três silêncios diferentes. Por aí você pode ter um indício do que significam as dificuldades e a necessidade de um ouvido ocular, de um ouvido atento para sentir todas essas experiências, essas mudanças que estão ali e que são justamente esses significantes que vão montar a coisa. Nesse sentido, um filme como Agonia tem uma coisa muito curiosa.

VF

Ele foi restaurado?

JB

Não, ele merece inclusive uma restauração sonora porque algumas coisas foram destruídas, o som ficou… E o som é precioso em todos os sentidos. No Agonia, o som, a música, enfim, a sonoridade do filme é tirada do Fernando Pessoa. Todos os diálogos do filme são prosas ou versos do Fernando Pessoa. Toda essa coisa musical que eu juntei, fiz uma aproximação do Noel Rosa com o Fernando Pessoa, o “Fernando Ninguém” se aproximando do “João Ninguém”. As caricaturas dos dois se chegando. Isso tudo é uma coisa que está dentro da escuta do filme, que constrói a imagem do filme. Dessa sonoridade, desses significantes é que se monta a imagem do filme… Tem a questão até simbólica dos três silêncios, existem três silêncios possíveis. Digamos assim, o silêncio de um estúdio, o silêncio de uma ausência de fita – se você botar uma fita sem ser magnética é um silêncio, mas com uma certa diferenciação – e o silêncio como aqui de uma gravação indireta, em que está tudo em silêncio, mas tem interferências e tal. Isso tudo está dentro do filme. Isso tudo é música do filme e está dentro da imagem. E tem uma coisa que foi um experimento que nunca foi feito. Nem eu tinha ideia de preparar esse experimento. Tinha uma ideia tosca de separar a imagem. Inclusive o filme, em algumas cenas, eu já tinha montado o som e não tinha a imagem ainda. Muitas cenas. O filme eu montei com o Radar[3]. Eu tinha alguns rolos que tinham pontas faltando de imagem…

VF

Mas você tinha o magnético transcrito?

JB

Já tinha o magnético transcrito. Eu fiz o som, na verdade, primeiro. Depois algumas coisas…

VF

Foram rearranjadas…

JB

Um pouquinho, mas ficou o som em desacordo com a imagem. Isso foi um experimento precoce ali dessa época e feito “à bruta”.

VF

Como se você estivesse ainda no som ótico, nos primórdios, quando você só podia botar música, ou fala, ou ruído?

JB

Exatamente. E isso tudo agora refeito como “paródia bárbara” disso. Bárbara por …

VF

 Por já estar à disposição outras coisas…

JB

É isso aí. É só essa observação para ver que essas coisas vão tomando forma e depois elas ficam diversas. Eu acho que o que teve um primeiro momento com essa questão do som foi o Miramar.

VF

Pois é. Quando você falou dos três silêncios agora, eu me lembrei das qualidades daquelas peças de teatro, os diferentes timbres e sonoridades ali são uma coisa que também você só consegue ver de um som junto com outro.

JB

Miramar e depois o Dias de Nietzsche em Turim[4], que também foi uma coisa que teve uma diferença, um foi som direto. O Dias de Nietzsche em Turim foi um som construído. Todo ele construído artificialmente dentro de um estúdio, que tinha uma relação de fundo com aquela imagem. O filme era uma espécie de uma caixa de bombom do Nietzsche. A caixa de charuto. Uma coisa feita com um controle quase artesanal. Todo feito dentro de um estúdio, com aquela estranheza da tradução do Nietzsche em português. Coisas inéditas, terrenos ainda sem marcas de pé. Você estava andando pela primeira vez ali, e o som acompanhou isso. O som do Nietzsche é uma espécie de onda que vem serena e no final ela cresce para terminar em silêncio de novo. O filme termina em silêncio. Mas essa crescida de onda é no sentido da variedade e da monotonia do som. Ele tem uma monotonia, muita variedade, músicas, mas há uma monotonia do som no sentido de que nisso ele é semelhante à imagem; ele tem a convenção da imagem. Ele produz aquela imagem. Então a imagem que ele produz é uma imagem, uma coisa construída artificialmente, com cuidado manual, quase artesanal. No caso do Nietzsche mais uma vez há uma relação, isso já foi muito estudado, Michael Baxandall, uns caras importantes, a questão de que um idioma, uma língua forja a imagem dela. A imagem também é forjada pela língua, o idioma francês, inglês, alemão, italiano, eles forjam as suas imagens. Esse primeiro traço significante. Isso foi na coisa do Nietzsche muito experimental pela novidade da questão, de ver o Nietzsche em português, muito menos a produção de imagens do Nietzsche em português. Esse deslocamento desse signo e que foi também essa trilha, essa pista de som que de certa maneira sugeriu a imagem, sugere aquela imagem. Ela não determina aquela imagem, mas ela sugere aquela imagem, as óperas, aquelas sonoridades estranhas de coisas, de objetos, de pássaros, a fala do Nietzsche em português, a voz do ator, do Fernando falando o texto. Tudo isso, a organização… O Nietzsche é um filme musical nesse sentido, porque foi todo ele organizado em função daquelas sonoridades que estavam… Nós levantamos ali uma questão importante do Nietzsche, que é a questão do Nietzsche músico. A trilha sonora do filme foi feita com músicas do Nietzsche. Nunca houve isso antes, primeira vez. Um músico, filósofo do Rio Grande do Sul, o Rosa[5], estudioso do Nietzsche, gravou todas as peças musicais do Nietzsche.

VF

Ele já tinha gravado, ou ele gravou especialmente para você?

JB

Ele não tinha gravado todas. Ele fez primeiro um levantamento do trabalho, gravou com a orquestra, o governo do Rio Grande do Sul pagou tudo, e as peças que eu escolhi para o filme eu paguei, ele reuniu os músicos e gravou as músicas que o Nietzsche adorava do Chopin. Beethoven, a peça do Wagner, toda aquela coisa do gosto musical do Nietzsche. O filme tinha um caráter de música no sentido até de organização, organizar um texto grande, que teria que ser condensado, compresso ali. Todo esse trabalho de solução de imagem foi feito através da sonoridade.

VF

Tem uma forma orgânica, não é? A própria música escolhida encadeada dentro do filme dá uma organicidade ao filme…

JB

E sugere como toda essa música que já conhecia antes, já sabia o texto, aquilo já está determinando a criação daquela imagem. Essa sonoridade você não faz depois, ao contrário, você faz antes com bastante antecedência. Então, a sonoridade da imagem sugere a imagem. Há uma gênese assim. E que as torna separadas. Por exemplo, o filme do Robert Bresson O condenado à morte que escapou tem uma cena em que o protagonista está na prisão, fazendo os trabalhos duros da prisão, lavando a privada, lavando o chão, fazendo a limpeza das coisas, com uma peça do Mozart. Essa peça do Mozart está ali, essa sugestão só existe ali. São duas coisas separadas. Ali é uma dissociação, foi posta porque está dissociada da sugestão daquela imagem. Mas mesmo essa dissociação associa alguma coisa que você não vai poder separar mais. A peça que ficou ali e que foi sugerida, aquele som, só vai existir daquele jeito com aquela imagem. Foi feito para justamente dissociar e criar uma espécie de…

VF

Uma nova associação completamente…

JB

De contraste, de coisas separadas, mas justamente isso acaba com que aquela imagem e aquele som você não possa mais vê-los de outra maneira que não seja com aquele emparelhamento. Lá no Miramar tem muita coisa, porque ele trabalha também com outro terreno que é muito como ficção, não como uma autobiografia, trabalha essa questão da memória da ficção. Todas essas ficções que são partes do real; o real é tudo, toda a memória, todo o passado, toda a música.

VF

Você fala assim como clichê? No Miramar eu me lembro do papel da produtora, papel da atriz, a relação dele com a atriz. Quando você aborda isso, você também fala dessa memória?

JB

Tudo isso é real, no sentido de que toda a memória, toda a música, todo o passado, tudo isso faz parte da realidade. A realidade abraça tudo isso. Ali há um acúmulo de sonoridades, um acúmulo de significantes, como parte desse gênero filme de memórias. As memórias, por mais piedosas, por mais escassas que sejam, são sempre coisas, têm muitas coisas até o infinito. Balzac, coisas assim que abarcavam a memória do mundo. Isso tudo quer dizer que essas sonoridades, que esses significantes são uma selva disso. E evidentemente todas essas organizações sonoras – eu até aqui falando com você não tenho ferramentas, condições, experiências de escuta para poder investigar, fazer uma pequena cartografia desse som. Não tenho condições porque são coisas que eu vi, fizemos juntos, mas que precisavam de uma reflexão, de uma escuta fora daquele momento e fora dessa emoção que produziu aquilo. E isso eu não fiz. Então, a minha fala por melhor que seja, sempre vai ter uma vacuidade muito grande. Porque o que é importante nessa questão, o “deus” dessa questão da escuta, é o detalhe. Então, para isso de fato era preciso uma escuta do texto. Ele tem deliberadamente muita memória, muito acúmulo de sons, de sons heterogêneos, de tempos diversos. De algumas coisas, de um estranhamento no ostensivamente familiar. Duas sensações sonoras contrárias no mesmo momento, deslocamentos sonoros, e também de linguagem, tem trilhas sonoras de filmes, tem gravação, teatralização de vozes de romances de língua inglesa, de filmes do cinema americano, do cinema francês, a voz do Cocteau, há uma abundância de significantes. E a montagem de cada um deles, isso de fato resultaria numa projeção muito correta do que poderia ser o Miramar. Você poderia fazer também do Miramar uma investigação através do som. Seria uma escuta, mas uma escuta visual. Seria possível isso. Agora, todos os filmes que nós dois fizemos, depois do Miramar foi o São Jerônimo, depois foi o Nietzsche, depois foi o Filme de Amor. Todos esses quatro filmes… O São Jerônimo é um outro caso também de se ver porque tem uma coisa interessante também, semelhante ao Nietzsche, que é essa sonoridade estranha à língua, ela não é cursiva da língua, ela não existe em português. Essa sonoridade estranha produzindo também um contraste com imagens estranhas. O São Jerônimo também tem muito desse estranhamento pelo que é familiar. Aquela coisa do sertão, que parece ser muito familiar, mas de repente você vê aquilo como estranhamento. Esse estranhamento é possível pelo som. O São Jerônimo, por exemplo, poderia ser um filme mudo, mas ele não poderia ser aquele filme, mudo. Porque a construção daquela imagem só teria aquela força e aquele caráter de estranhamento se tiver aquela sonoridade que é muito rica e muito significante. O São Jerônimo tem uma outra coisa, muito mais do que o Nietzsche… O Nietzsche foi traduzido em português em 1898, então, em 1896 já havia um artigo pioneiro do João Ribeiro falando sobre o Nietzsche, então já existia até muita coisa dele em língua portuguesa. São Jerônimo não existe em língua portuguesa. Aqueles textos que estão ali, traduções, tudo de um panorama de um idioma desconhecido. E o som introduz uma coisa que foi uma espécie de sonoridade para o cinema mudo. O primeiro músico que fez música para filmes, que pensou a imagem com a música, foi o Camille Saint-Saëns. E a peça cinematográfica dele que é “O Carnaval dos Animais” é a peça que toca a imagem de uma parte daquele filme. É essa peça, é essa sononoridade que dá ao filme um aspecto, um valor de sobrevivência. O São Jerônimo é uma peça de sobrevivência. São sonoridades, são traços, são filmes que sobrevivem aqui. Sobrevive o cinema, sobrevive o São Jerônimo, sobrevive uma vontade de fazer filme. A questão que está em jogo é a da sobrevivência, sobrevivência de um símbolo.

VF

E também na criação, porque tem a criação da língua, os neologismos todos. A sobrevivência numa criação…

JB

E ele é uma espécie de território inicial porque toda essa sonoridade do filme foi construída como um parergonParergon são as coisas que estão dentro de um quadro, de uma obra de arte, mas não ocupam o centro dela. São as coisas que vivem em função dela. Muitas vezes uma moldura, que é um parergon, ela está dentro da pintura, e você não pode tirar o quadro daquela moldura. Não é um detalhe. O detalhe é alguma coisa que está dentro do quadro. O parergon, como diz o nome, é para-ergon, está junto da obra. Não é um detalhe. O “Cristo” do Caravaggio estava mostrando a ferida para o São Tomé, e ele olhando. Isso é um detalhe. A sombra da pequena bíblia no quadro do Antonello de Messina, aquela pequena sombra. Isso é um detalhe do quadro, a sombra dramática para dar importância ao livro. Agora, uma moldura, uma assinatura, isso é um parergon.

VF

Quando você falava da sombra do coelho no “Cleópatra”. A sombra seria um parergon?

JB

A sombra ali é um detalhe. Porque, por exemplo, ali está o punhal. Aí tem a sombra do punhal. O que é a sombra na pintura? A sombra chama-se l’ombre à porter, cast shadow, porque ela é dramática. Você faz a sombra de um objeto e aquele objeto ganha uma função dramática. O estilete, com a sombra, torna-se especial. Isso é um detalhe de uma sombra. Agora, um quadro do Van Gogh. A assinatura do Van Gogh pode ser um parergon. Você pode fazer uma leitura daquela letra dele, daquele traço dele, daquele espaço onde está escrito. O surgimento de uma… Uma Eva nua com um pano transparente, um véu cobrindo ela. Esse véu é um parergon. Está dentro da imagem, mas tem uma função, não é um detalhe. Às vezes até a moldura, o quadro do Goya “O colosso”, a moldura é um parergon. Essa ideia de parergon foi muito bem estudada por um autor chamado Jacques Derrida, “A verdade em pintura”. Isso tudo é para falar da questão do São Jerônimo. A trilha sonora do São Jerônimo não é como a do Nietzsche. Ao contrário, a trilha sonora é pela escassez. Ela acompanha um pouco aquela ideia de deserto, de escasso. Os ventos, a trilha é feita de ventos, de barulhos aqui e ali.

VF

Tem um trechinho do filme do Hitchcock, uma hora que os panos passam pelas costas dele.

JB

Isso é outra coisa, é para você ver como estava avançado o cinema… É o Saint-Saens. Esses acordes, que o Bernard Hermann, que era um músico muito erudito, quem fazia as músicas do Hitchcock, fez em alguns filmes, sobretudo, no Psicose, esses acordes parodiando Camille Saint-Saens, numa sonoridade que ele fez numa imagem muda. Aquele acorde daquele jeito ali é feito para uma imagem muda. Não é para aparecer com a imagem. É para mostrar justamente aquela intensidade, a imagem é o contrário daquilo, a imagem não tem nada. A imagem é um vazio. Mas o contraponto musical é esse. É por isso que eu te disse que são os parergons, porque ali só essa utilização dessa música de cinema mudo num filme; isso é uma ideia de parergon. Isso é uma boa investigação para nós fazermos, tanto do som quanto da imagem, porque aí caminham juntos. Vão avançar e recuar juntos. Avançar com uma estilização, com uma paródia, e recuar com as origens dessas imagens. São Jerônimo tem no início uma imagem antiga, de filme antigo, de uma cabra parindo. Então, ali tem já muito da intromissão da imagem. E o som que acompanha é uma espécie de som radiofônico, de comentário de uma imagem também quase radiofônica. Aquele som parece meio rádio, aquela seca, o nordeste ainda em preto e branco. Tudo isso são micrologias, que seriam necessárias, que existem dentro dessa trilha, desse fragmento de tempo que você organizou comigo. O Miramar também tem, dentro da trilha sonora, uma forma de heterônimos, de tantas referências de uma mesma coisa. O que está ali também em formação não é só toda essa trilha, toda essa sonoridade, mas também a formação do próprio personagem, que é um jovem que está se formando e tal. Toda essa organização é de uma mesma pessoa, mas com uma tal diversidade de personalidades… É uma ficção. O filme realmente é uma cartografia de ficção, seja na música, na imagem, o signo no Miramar é uma cartografia de ficção. Então toda essa ficção musical do filme é de muitas pessoas. Aí é que está a questão da heteronímia. O Miramar pode ser como esses hotéis que têm à beira mar; são muitos Miramares. Cada cidade, que tem praia, tem um hotel Miramar. É uma personalidade que não cabe em uma pessoa só, então ela se multiplica em muitas pessoas. E essa multiplicação se dá também na forma da trilha. A música vai juntando coisas e vai ampliando coisas. As sonoridades vão se juntando e até se repetindo. E tudo isso eu acho que daria… Como eu te disse eu não estou nem equipado, eu precisaria ouvir mais e procurar encontrar algumas ferramentas que pudessem me fazer decifrar melhor.

VF

Mas se você não se incomodar, a gente vai se encontrar outras vezes…  Eu li o “Deslimite”[6] no dia em que eu vi que o título era esse… Eu não sabia que você lançaria um livro com esse título. Obviamente, peguei logo essa palavra e trouxe para o meu assunto que era o som fora do quadro, sem o limite. Quando você escolheu esse título, você pensou em deslimite como tudo o que não parte de uma figura modelar?

JB

Em 1976 ou 1977 eu vi uma carta na Abrace ou na associação de Cineastas, não me lembro se do Mario Peixoto, mas de alguém falando das condições de vida do Mario Peixoto, que estava mal, morando não sei onde… Depois de 1970 em diante, logo depois do Matou a Família e foi ao cinema e do Anjo Nasceu, fiquei muito ligado ao Limite, vi um trecho daquele antigo e fiquei boquiaberto. Aí nos anos 70, assisti a uma projeção do Limite, vi o filme todo. Aí escrevi e fiz um filme que foi o Agonia, que é uma crítica cinematográfica, é uma escolha de clichês do Limite, que eu recriei. Quando eu soube dessa história do Mario Peixoto, eu escrevi um texto que está publicado no meu primeiro livro, chamado “Deslimite”. Foi o que eu vi ali. A nossa língua é feita com um processo de afixação, são os prefixos e sufixos. O prefixo “des” tem uma característica curiosa, ele transtorna o radical. Essa é a função dele. Quem se valeu muito desse prefixo foi o Guimarães Rosa. O lance do “des” no “Grande Sertão”, que é uma característica difícil em qualquer língua, que é de subverter, transtornar o radical. Quando vi aquilo, não existe essa palavra, eu que inventei: “Deslimite” foi o título que eu dei para o artigo. Aí, nesse livro é porque são oito textos, todos eles são marcados por uma fratura do deslimite. Todos eles são gestos de deslimite. E eu botei esse título porque é o que tem de comum nesses oito textos. E agora, recentemente, estou fazendo um filme chamado Deslimite, que é o mito de Endimião. Endimião é um príncipe, caçador, muito bonito, e que depois de uma caçada, cansado, adormeceu na mata. A lua, vendo ele deitado e despido, se apaixonou por ele. E ele também, quando viu, se apaixonou pela lua. E o amor de um deus por um mortal é proibido. Zeus, então, castigou Endimião. Deixou que ele tivesse amor por ela, mas condenou-o ao sono eterno. Mas a lua ficou ali, e mesmo assim continuou admirando ele. Quando tinha noite de lua cheia ela se aproximava para vê-lo. Esse é o mito. Eu quero fazer um filme de uma mulher professora, escritora, uma mulher individual, mais velha e que se apaixona por um menino, por um jovem, tem uma paixão, um amor, mas ela tem um impedimento, um pudor que não permite que ela faça nada. Apesar da paixão e do tesão que ela tem, ela nunca se declara. E introduz o menino num universo mental de signos, que ele desconhecia. Ele tem uma chaga, que vai aparecer no final, junto com a mãe. Tem a cena em que a mãe chega para a professora e diz quem é o garoto e quem é ela. Essa é a melhor cena do filme, é a cena chave.

VF

Você escreveu o roteiro?

JB

Escrevi o roteiro, mas espero desenvolver isso ainda bastante porque é um filme para se fazer em três, quatro dias, mas precisa fazer um bom equilíbrio de forças porque tem muitas coisas. Ele é um filme muito anacrônico e muito inatual. Então, tem que ser feito com certo cuidado, porque são situações, são símbolos de uso muito restrito. 

VF

Eu me lembrei agora de A Erva do rato[7], eu não conheço os contos que você usou. Eu não conheço o ponto de partida, eu conheço só o filme. Mas o filme, quando eu vi e trabalhei nele, eu imaginei que era um filme sobre a superexposição. Uma pessoa que se apaixona pela sua própria superexposição. Eu achei que o personagem feminino tinha isso. Você falou de anacronismo, de coisas fora do tempo e eu achei que no filme A Erva do rato ele tinha uma coisa super contemporânea que é essa coisa da superexposição.

JB

Essas coisas todas são evidências que estão lá, senão você não sentiria. A coisa da imagem, como a coisa do som, é você dispor o que está proposto. Você propõe e cada um dispõe a sua maneira. Curiosamente não uma coisa para todo mundo.

VF

Esses dias de carnaval, eu li a Obra aberta, que eu achei que tinha muito a ver com o cinema moderno, a partir do moderno para cá, mas o livro me decepcionou um pouquinho.

JB

É, passou muito tempo, e o Umberto Eco caiu um pouquinho. Tudo isso tem um caminho que você vai de alguma maneira escrevendo uma experiência e transformando essa experiência nesses símbolos, que não são a experiência. São os símbolos que ela produz em você nessa experiência. Todas essas coisas o “canto de uma privação”, você faz para preencher uma coisa que você não tem. Justamente essa passagem é que é a passagem do som, quando você se apropria, quando chega a alguma coisa que você não tem e que precisa ter para estar vivo ainda. Para continuar ali, para dar o próximo passo. Nesse estado de espera. Tem um poeta (Pedro Kilkerry) que tem um verso que diz que quando ele ouve o passo da mulher vindo, o que dá inspiração a ele é o passo da mulher. Ele fica esperando no corredor para ouvir os passos dela. Os passos vão trazendo inspiração. “Um fantasma ao som que se aproxima”.  Ele fica parado, imóvel, como um fantasma à espera do som que vai chegar. “Asa que o ouvido anima”, são os passos dela. “Quedo-me como um Buda”, fica parado. É o novo que se aproxima que é essa palavra que vem da rima. Então, esse estado de espera, de expectativa, que você faz, que cria a coisa. O resultado, o que você dispõe, e o que você pode interpretar disso são muitas coisas. Depende das ferramentas que você tem, das experiências de leitura que você tem para poder tirar alguma coisa disso que são muitas coisas. 

VF

O coraçãozinho do bem-te-vi sobre a xícara, eu achei que eu estava dando voz a essa interpretação.

JB

Eu pensei, o pio do cemitério, e depois o outro, eu pensei no sinal da presença da coisa que é morte. A musa da Erva do rato é a morte. É a quem você canta e quem você espera. Essa é que é a força. Também tem uma coisa curiosa de caráter corpóreo. O bem-te-vi, o que levou essa sonoridade a essas palavras, não sei se por isso é que o bem-te-vi é um pássaro madrugador e indiscreto. O caboclo ia para o mato fazer as suas necessidades e o bem-te-vi cantava nessa hora. Era um pássaro madrugador e indiscreto. Eu botei a presença da morte, o chá devia ser de manhã, então estava o bem-te-vi ali vendo eles na cena da manhã. Porque o chá é a cena da intimidade não revelada. A cena da intimidade não revelada é quando você acorda, vai ao banheiro, se limpa. Todas essas necessidades que fazem parte da nossa fisiologia e que a civilização fez questão de banir, de retirar. Como a morte… A morte está proibida. Hoje, é como se a morte não…

VF

…Fizesse parte da vida.

JB: Então, não faz parte da vida, então não tem vida. A vida desapareceu nesse sentido. Momentos de sensação de intervalos de escravidão. Ou você está o tempo todo sufocado pelo trabalho, e no momento que não está nesse sufoco, está recebendo as sensações fortes, comprando coisas, comendo. Trabalhando e querendo relógios. Todo esse esforço está dirigido, como eu disse, para esse espetáculo da usura. Por outro lado, isso exige uma deseducação. Uma pessoa que terá estímulos sensíveis não será a mais indicada para essa… Em algum momento vai achar que esse consumo, que essa escravidão está ruim. Esse intervalo do sentido, o sentido se suspende. Ali não há só um intervalo do tempo, mas do sentido também. E ele faz aquilo no momento em que o sentido está suspenso. Você não tem um sentido. Se faz como se fosse uma outra coisa. Desde a morte do rato até o convívio dele com o esqueleto é como se o sentido estivesse suspenso. Para você poder ser praticamente uma outra pessoa naquele ambiente. Foi o que restou daquilo. Porque o osso ainda traz o nome. O osso não é a ausência total de significado, o nome ainda está no osso. Os ossos são o último escorregão do nome. Ali tem essa coisa. Agora, o Erva do rato tem uma coisa, como os outros, foi feito em uma semana, dez dias. Mas eu fiz uma coisa que foi a mais difícil. Aquilo ali ser resolvido de uma forma convencional, o estilo da convenção. Machado de Assis. Machado de Assis está inteiro ali; inclusive nos significantes. Todas as infâmias do mundo, todos os terrores da existência, mas você fazer um desenho quase que convencional. Justamente tendo o mais convencional, o mais comum, como material de início. E com ligação muito grande com o passado. Machado de Assis é um reescritor da língua. Ele fez uma síntese espetacular de sonoridade brasileira, e inventou um chorinho brasileiro genial dentro da língua portuguesa. Ele é um grande leitor da língua portuguesa. Os textos dele têm uma visão muito da ruínas da língua, do que sobreviveu. Toda uma galeria de gestos arcaicos. Toda uma tipologia, clichês, que saturaram no século XIX. E foi exatamente com essa saturação de clichês que Machado de Assis trabalhou. A ideia do filme era fazê-lo como se fosse uma historinha nenhuma. Uma natividade, um presépiozinho com uma vaquinha, como se fosse a coisa mais singela. Esse foi o lado estranho do filme.

VF:

O oposto do Filme de amor.

JB

O oposto, porque ali a fratura estava exposta. Um como se fosse o mar de tranqüilidade, e o outro justamente o contrário, o lugar da banalidade e várias fraturas acontecendo nessa banalidade. A banalidade se tornando insólita, surrealista. Mas eu acho que isso também depende muito da coisa da colaboração. Você sempre faz, seja o que for, as relações que estão em jogo naquele momento ali são sempre as relações suas com aquelas coisas, com as pessoas. O Godard dizia que era preciso duas pessoas, não era preciso mais. Mas eram necessárias duas pessoas para você poder conversar. A relação de colaboração é a relação mais difícil. O Borges dizia: “Toda colaboración es misteriosa”. Porque o mistério está em você ter que efetivamente criar o espaço para o outro dividir ali; e isso é o mais difícil. Porque você quer tudo na vida, menos o outro. O homem sozinho não se faz; ele se faz através do outro. Mas não porque ele se acha parecido ou porque ele gosta do outro, mas justamente por essa impossibilidade de ser outro, porque ele depende até para cuspir do gesto alheio. Mas é justamente isso é que ele não aceita. É preciso criar esse espaço; a tolerância, a necessidade impõe esse espaço de intromissão do outro. A colaboração misteriosa é difícil por isso. Independente dos temperamentos, dos gostos. Sejam diferentes, semelhantes ou paradoxais, isso é combinação. Isso não tem nada a ver. A questão de colocar duas pessoas para fazerem é uma coisa, é uma questão difícil.

VF

E isso também tem a ver com a relação do cineasta com um espectador…

JB

É, porque você faz assim. O que tem de absurdo nessas coisas todas é que não existe você fazer para um outro. Você não tem como imaginar a outra pessoa. Agora, há questão artística de que o artista é capaz de reproduzir mundos. Essa é que é a diferença. Você não pode imaginar que você faz para o outro e nem imaginar que você faz só para você. É só você porque tem um exército dentro de você. A questão individual é uma questão intransponível. Eu me lembro de um velho ditado que se dizia: “faço isso, mas não tem nada de pessoal”. O que tem de patológico nessa afirmação de que não tem nada de pessoal é que ela abole o individual. E isso é impossível no ser humano. Então, quando diz que não tem nada de pessoal é estritamente pessoal. Toda essa questão da impessoalidade ou da busca pela criação, isso, numa colaboração, é o terreno onde a coisa se organiza. Porque há um encontro de duas vontades, de dois gostos. Aí é que é a questão central. Porque o cinema, nesse sentido, é parecido com a pintura, ele é feito por muitas mãos. Tem o sujeito que faz o traço, o outro faz a coloração, o outro a moldura, tem o envernizador. É feito por muitas mãos. O cinema é assim também. Uma das aproximações do cinema com a pintura, não é só a herança da luz, mas também a questão da realização. É feito por muita gente. Todas essas mãos participam, todas estão ali dentro. E todas têm um campo de tolerância porque é coisa central de alguma geometria. A colaboração, nesse sentido, é decisiva ali. Ela não é uma colaboração, ela é parte da coisa.

VF

E tem a ver também com essa coisa que você falou do momento também. Naquele momento ela aparece.

JB

E tudo que se faz é aquele momento. O que você faz é em função daquela hora, daquele dia, das pessoas que estão em volta. É isso que está em jogo. Seja uma cena do Egito, seja num país do século XVIII, seja uma cena na lua. Quando se faz, aquilo que está em volta é que determina. E também o costume da época é que organiza as suas possibilidades, mais do que você queira.

VF

É impressionante como você pode ser moldado pelo costume de uma época.

JB:

Como você pode não, como você é, inevitavelmente. Você é em função do costume da época, você é em função do costume. Você é uma cera criada desde pequena e moldada aqui. Isso é Cassirer, o homem e o cosmos. O que controla é o costume.

VF

Na página 35 do “Deslimite”, você estava falando do Haroldo de Campos no livro “Galáxias”: “o som separado da imagem e combinado a ela em trânsito livre no imaginário, na vida, desautomatiza a visão, a representação, os sentidos, indo abalar todo o corpo sensível”.

JB

Desautomatiza a visão exatamente porque é caótica e inesperada. Todos os filmes que nós fizemos têm uma desautomatização. Sobretudo e até no campo fora. Você acabou de falar do pio do pássaro. Isso é uma imagem fora de campo. Mas sem o fora de campo não tem o campo. Se tem campo tem que ter o fora de campo. Então, quando se vê a coisa, tem que também ver o que está fora dela. Aquilo ali é até aonde foi possível enquadrar a janela. O que você falou do Haroldo?

VF

Você estava falando do John Ford…

JB

Esse texto do Haroldo acho que é do Godard, Mnemosine?

VF

É do Godard. “A questão do som tão engenhosamente esboçada na bela cena do microfone em movimento aproximativo resulta especial”. Eu não vi esse filme todo.

JB:

Ele está sentado no computador dele e a câmera lá, filmando ele sentado no computador dele. Outra coisa genial é que ele está sozinho, no computador, fumando e gravando. Pegando todos os filmes E o vento levou.., só clássicos, tanto que talvez esse filme não possa nunca passar porque oito longas-metragens e ele está sentado, filmando. E de repente entra o microfone, andando e aí fica num lugar que ele vai captar. Então, é uma imagem dedicada ao som, a mostrar o deslocamento, o que entrava ali não era a câmera, era o microfone. É o som que vai fazer o negócio. É espetacular esse negócio. E é um sinal dessa complexidade que é justamente a trilha, uma explosão estelar.

VF

Na Erva do rato tem também aquele plano de acústica que ela fala lá atrás e depois ele vem para a frente. O som vem para a frente. Ficou muito interessante aquilo também. Se bem que ali tem as imagens porque o personagem também se aproxima.

JB

Ali no filme tem também uma imagem fora de campo, que não aparece o que é. Você ouve o som. Aparece um corredor, uma janela, mas o que está acontecendo você não vê.

VF

Você se lembra daquele filme Por uns dólares a mais? O início do filme vem um cavalinho lá longe, tem um plano que você não sabe onde a câmera está porque você não vê chão. A câmera está no alto, aquele deserto, e você fica escutando um cara cantarolando e um pé arrastando numa terra. Em primeiro plano aquele som. É uma coisa estranhíssima. Porque o cantarolar e o assobiar poderiam ser daquele cavaleiro, mas o outro chão arrastando, não pode, é uma coisa estranhíssima. E de repente um tiro em primeiro plano. O cavaleiro cai e vai embora.

JB

Esse filme é espetacular. Têm outros, até que eles criaram um tiro com uma sonoridade diferente. Quem tirou muito proveito dessas doideiras foi o Pasolini. Ele fez muitas dessas loucuras. Até nós fizemos uma brincadeira do pássaro. O Pasolini tem um filme dele que eu acho que talvez seja o Édipo Rei ou outro, e tem lá um plano geral e de repente um pássaro lá na torre, lá no inferno, ele usou o som artificial de maneira cursiva… Toda uma peça artificial.

VF

Eu vi o Édipo rei há muito tempo. Mas quando a gente usou um trechinho do diálogo do Édipo e de sua mãe, que  tem uma cigarrinha no fundo, imagino eu, seja som direto do filme do Pasolini. E quando fui comentar filmes italianos de western numa mostra no CCBB, me perguntaram o que eu havia notado de extraordinário eu me lembrei das cigarrinhas, por que eles filmavam os Westerns todos na Itália, lá também tem a cigarrinha, e é a mesma do Pasolini.

JB: Anos 60, eram todos aqueles filmes de Roma. O mesmo som que você usava num filme, você usava no outro porque era o som que tinha ali. Isso tudo era num estúdio onde eram feitos os filmes. O Pasolini mais malandro, fazendo aqueles filmes em vez de fazer essa sonoridade moderna, ele trouxe aqueles móveis antigos e fez lá os arquivos de estúdio.

Virginia Flôres iniciou carreira no cinema em 1974 como continuísta e assistente de direção. Hoje é montadora e editora de som. Fez Especialização de Edição de Som.


[1] O trabalho de doutorado Além dos Limites do Quadro, o Som a Partir do Cinema Moderno, foi realizado na Universidade Estadual de Campinas, no Programa de Pós-Graduação Multimeios, no Instituto de Artes, sob a orientação do Prof. Dr. Claudiney Carrasco, de março de 2009 a março de 2013.

[2] Miramar: filme realizado em 1997, imagens em 35mm, som direto. A montagem de imagem foi feita por mim , assim como a edição de som. Montamos toda imagem numa moviola Steenbeck, com o som direto e músicas transcritos em magnético perfurado. Depois dos rolos de imagem divididos, telecinamos o copião para fitas Beta e digitalizamos o som direto para podermos iniciar o trabalho de edição de som na plataforma Sonic Solutions. Todos os outros sons, ambientes, ruídos foram incluídos aí. Mixamos na Rob Filmes no formato dolby SR. Como de costume, Bressane não fez uso de ruídos de sala (foley).

[3] Radar (Leovigildo Cordeiro) foi montador de Júlio em vários filmes, dentre eles: O monstro Caraíba (1975), A agonia (1976), O gigante da America (1978), Cinema inocente (1980), Tabu (1982).

[4] Dias de Nietzsche em Turim foi feito no ano de 2000, exceto as imagem em vídeo que Júlio colheu desde 1997 em Turim, em diversas vezes diferentes. Essas imagens foram capturadas sem o filme existir realmente, era uma vontade, um projeto. Depois quando Júlio pôde realizar o filme, e nós montamos a estrutura da imagem em 35mm, aí escolhemos os trechos desses vídeos para quinescopar para 35mm. Toda imagem foi montada numa moviola Intercinne, acompanhada da dublagem das falas de Nietzsche (Fernando Eiras), transcrita para Magnético perfurado e das músicas que também foram transcritas para magnético. O mesmo processo de Miramar se deu para a edição de som e mixagem no sistema Dolby Digital.

[5] Júlio refere-se a Ronel Alberti da Rosa, autor de Música e Mitologia do Cinema (editora UNIJUÍ) 2003, desenvolve programas interdisciplinares de Música e filosofia, lançou um CD A dissonância Trágica, composições de Frederich Nietzsche.