por Toni D´Angela
tradução Fernanda Aguiar C. Martins
“O sono da razão engendra monstros.”
Goya
Não pode existir crítica completa de um autor sem uma necessária consideração a respeito das determinações sociais e tecnológicas, da conjuntura histórica, do background técnico, em suma, da mecânica ou, se preferimos, do anonimato ou da gênese passiva, que constitui retrospectivamente o filme e a subjetividade desse autor. Todo diretor é conduzido pela força do determinismo, escrevia André Bazin. O gênio surge da fusão de um núcleo, da explosão de um sol que nasce da estrutura da arte e da sociedade que o cerca. A tradição dos gêneros é sempre uma reserva de possíveis, ao modo das convenções da ficção científica ou do horror, cujas coordenadas iconográficas e narrativas são reveladoras de um esboço da atualidade política e cultural. Joe Dante, mesmo enquanto cineasta independente, é conduzido e comprometido com o sistema hollywoodiano. Sua autonomia não reside na importância de seu budget ou na escolha de uma produtora mas, sim, na aceitação da lógica da “técnica”, através da qual ele próprio critica, de maneira dialética, a dominação da tecnologia e o devir-espetáculo do mundo através das mídias. Sob a forma de quadrinhos, supera a “realidade” da ficção.
O Herói não Triunfa (Nunca)
Uma citação wellesiana abre Piranha, filme com roteiro escrito pelo diretor independente John Sayles (como em Grito de Horror\The Howling, 1981) e produzido por Roger Corman, no qual o meio familiar (o curso de água diante da casa, o banho do campo de verão para crianças) se torna o elemento perturbador, à maneira dos vizinhos bem arrumados de Meus vizinhos são um terror (The burbs, 1989). Piranha introduz imediatamente o espectador em um mundo do qual ele espera frissons e sobressaltos.O cineasta joga com o gênero, situando-se no auge da transgressão das mais constrangedoras para o terror: proibido passar! Os jovens se afastam da casa deles, infringem a interdição, a ordem pune a infração, o herói conduz a enquete, o mal (um coronel corrompido que pratica a especulação imobiliária e cria mutações genéticas para assegurar a supremacia dos Estados Unidos no mundo) faz promessas insidiosas (antes que o herói se ligue à equipe, para em seguida lhe aconselhar o silêncio, depois terminar por jogá-la na prisão), e o herói (que são, de fato, ao menos dois: o reacionário alcoólatra e o detetive) combate e presta socorro, numa dialética narrativa entre o “vá” do suspense e o “vem” do selvagem in extremis à la Griffith. Um cinema puro de contestação da autoridade. Os representantes da ordem corrompida são ridículos e ingênuos (os policiais), brutais (o coronel) ou cínicos (a cientista Barbara Steele). Somente o cientista carimbado e idealista, encarnado por Kevin McCarthy, tem um sobressalto de culpabilidade, mas a imagem a mais horrível e violenta desse filme de horror irônico e ritmado não é a dos peixes assassinos, corroendo até o osso os calcanhares das crianças, a nadar felizes (pois sem saber deles) na água. A imagem a mais aterradora, a mais corrosiva politicamente, é a dessa festa, desse espetáculo estúpido (metáfora da América), desse parque de atrações à margem do rio, sob o vulcão, a dois passos da catástrofe (como em Matinee, uma sessão muito louca/Matinne,1993), organizado pelo ator fetiche de Dante, Dick Miller, protagonista em vários filmes de Corman. Os banhistas no início da cena não se dão conta do banho de sangue, continuam a beber, a tomar sol, a se divertir, como a abelha que continua a aspirar o pólen mesmo após ter sido mutilada. Os personagens encantados (ligados?) com a sua participação nessas fracas atrações ocasionais não têm consciência de seu meio e, além de tudo, não possuem “consciência do mundo”. Após o dia de festa, cheio de esperança que foi Woodstock, resta apenas essa infeliz junção de imbecis, indo direto para o abatedouro, tais como os cegos de Bruegel ?
A Monstruosidade do Espetáculo
As formas (discurso) e as transformações (narrativa) caracterizam igualmente Grito de horror. O filme começa com distorções de ondas de rádio e crepitações de transistor. Um ruído de fundo que acompanha o encontro da jornalista (e seu instinto de transgressão) com a bestialidade primitiva, o instinto primário de possessão e de abuso, a máscara assassina do desejo de eternidade ou, melhor ainda, de uma identidade que não pode se afirmar senão negando o outro, lhe devorando ou lhe acolhendo, no seio do grupo contaminando de um dom exclusivo e excluidor: os lobisomens moram numa colônia isolada. Todavia, mesmo os produtores de televisão tendem a desfigurar a realidade e a fabricar uma monstruosa ficção televisiva! Ademais, a confrontação com essa violência bestial permanece até o fim unicamente espetacular, irreal e irrealista. A realidade, a mais brutal, torna-se um programa de tv: da tv realidade. Todavia, sentimos um desespero, uma dor, uma fadiga e um esgotamento nesses seres monstruosos, por sua vez, manipulados pelo cientista. Por exemplo, quando John Carradine, pensativo na praia sob o luar, amaldiçoa seu sofrimento, sua velhice e sua solidão, ninguém mais tem interesse por ele (nem pelo grande e glorioso cinema que ele representa). Um canto pungente que distingue tanto a veia trágica e autodestrutiva do licantropo assassino em série: ele parece não mais poder suportar sua condição, como a câmera subjetiva hesitante sugere sua aproximação da pequena casa da jornalista.
Dante transpõe o tenebroso palácio cormaniano drapeado pelo estofo do tempo e seus subterrâneos do pesadelo no espaço aberto da floresta (feérica em Viagem ao mundo dos sonhos/Explorers, 1985), domínio do fantástico onde se condensam os vapores do terror, as brumas da angústia, e onde tomam corpo as obsessões e pulsões reprimidas, como no cinema de um Stroheim ou de um Losey, e suas estranhas atmosferas primitivas. O desejo do marido da jornalista (que assiste no início do filme, passivamente, à desventura “espetacular” da mulher que ele ama), é violentamente despertado até assumir a forma selvagem da ferocidade, acossada e interdita (de um ponto de vista freudiano) pelo conforto e mal-estar da civilização. É revelador que o encontro entre a jornalista e o licantropo assassino tenha lugar em uma sex shop, perante a projeção desse que se parece com um snuff. Essa forma de sexo é banida da sociedade: o lobo é perseguido, porém, permanece sendo o aspecto do filme mais inquietante e eficaz, mais subversivo e potencialmente irônico, politicamente superior e lúcido. Mesmo a “crítica social” com a transição das mídias torna-se um espetáculo, esvaziando de seu sentido duro e cruel a mensagem que a jornalista queria transmitir. O meio permanece, pois a mensagem, a despeito do conteúdo, e de suas boas ou más intenções, dito isso Karl Marx não passaria na televisão nos dias atuais. No final (falso final), os espectadores, por sua vez, tornados “animais”, sorriam e se divertem, prontos para serem devorados – tanto por seus lobos quanto pelo espetáculo. Melhor ainda, a serem fritos e consumidos como hamburgers, e a se tornarem imagens, gremlins lutando para conquistar a civilização das imagens, tal como no programa de reivindicação política – televisiva com certeza ! – do experimental e corrosivo Gremlins 2, a nova turma (Gremlins 2 – the New Batch,1990). Nesse último, o controle se dissemina, penetra nas redes das próteses elétricas e digitais que, mesmo quando aumentam o poder do corpo, reforçam o controle estendido ao conjunto do network que é o sistema tecnológico-nervoso do olho eletrônico. Uma mise en scène crítica do devir-espetáculo do mundo e do triunfo do capital (ver Pequenos Guerreiros/Small Soldiers, 1998) explorando em seu favor as transformações e as mutações numa lógica pós-fordista.
Eis nossa nova realidade do horror. Mídias de massa e política-espetáculo, cinismo dos jornalistas e homens políticos se mesclam na crítica da subculture sofisticada de Masters of Horror – Homecoming, episódio do seriado de 2005. A representação depurada se torna o jogo de uma realidade sensual, transformando a dor em espetáculo, a angústia em retórica eleitoral. Mas, enfim, para concluir, essa representação é vencida (temporariamente apenas) pela revanche de um real sujo e pútrido, o retorno polêmico dos zumbis, dos soldados mortos, assassinados numa guerra criada pelas mídias. Uma mise en scène dura, homenagem a Tourneur e a Romero, onde o horror da guerra se reflete no rosto inchado e angustiante dos zumbis e, ainda mais, nos esforços de dissimulação repugnantes dos políticos, que passam os detratores aos lança-chamas (como em Matinee, uma sessão muito louca), reunindo assim terroristas, zumbis e oponentes.
O cinema de ação de Joe Dante dá a seus heróis a missão de escapar à degradação do estado humano ao de animal, até Looney tunes – de volta a ação (Looney tunes, back in action, 2002), no qual o conselho de administração de uma multinacional projeta a transformação de homens em macacos (consumidores de imagens) a fim de lhes vender algumas mercadorias (imagens) estragadas. Até mesmo o acrobata e o ator interpretando o agente secreto devem sair de seu papel e experimentar o perigo da ação para além da ficção, como a jovem do exploitation movie, rodado no Boulevard Hollywood. Seu cinema é o da aventura, um percurso iniciático que libera da ficção, quer ela seja midiática (No Limite da Realidade/The Twilight Zone – the Movie, 1983) ou fantasmática-psicológica (The Hole 3D, 2009).
O Homem e a Natureza
Contra as mídias e a virtualização do real, Joe Dante perturba as transmissões eletro-magnéticas de The screwfly solution, episódio de 2006, frustrando os homens-caçadores tendo matado todas as mulheres (esposas, garotas e mães) do planeta, reduzidos à sua animalidade tal como em Grito de horror, mas não podendo ainda elaborar um plano de luta para a perda das imagens, as quais eles decididamente não podem renunciar. A alteração do frágil equilíbrio – falocêntrico – entre sexualidade e agressividade, os efeitos catastróficos da tecnologia e a vontade de pleonexia (a afirmação de sua identidade pela submissão da diversidade) entram em jogo novamente em seu cinema político através de um roteiro último e apocalíptico, que apenas pode retomar a interrupção do curso das imagens nas quais se manifesta o mundo. A imagem, ou melhor, a contra-imagem da distorção do sinal elétrico, se torna o símbolo da desaprovação. Esse signo de pontuação não é mais um simples indicador sintático, mas possui igualmente uma dimensão semântica. Ele não facilita mais a transmissão de uma imagem a outra, porém, ao contrário, representa uma defasagem, uma quebra, uma desarticulação que interrompe a ordem do mundo, seu passo rumo ao precipício, e o fluxo das imagens. Essa figura fílmica tece a estrutura narrativa de The screwfly solution, e pode resgatar e liberar um potencial novo, como o mostra o plano final da heroína sobrevivente em meio às rochas primitivas, ao contato desse solo que o homem tirânico quis desviscerar e domesticar, até a destruição. Como o ensina Murray Bookchin, a dominação do homem sobre a natureza e sobre seu próximo (ou próxima) estão interligados: a lógica da dominação implica uma epistemologia, uma crueldade da razão que culmina no império da tecnologia. Capturada pelos dispositivos tecnológicos – aí inclusos os da televisão, conferir o telefilme The second civil war –, a realidade torna-se fluida e indefinida. A imagem do ecrã turvo e a da ligação reencontrada entre a carne do corpo e a “carne” da terra constituem a força e o sentido dessa narrativa definitiva, símbolos de um dinamismo ainda possível, que pode afinal ultrapassar a alegria de um pensamento puramente mecânico.
Guerra íntima
Socializar a recíproca medida de adaptação entre o homem e a natureza, remontar à origem, não significa defender de maneira excessiva e obtusa as tradições locais, sempre imaginárias, de todo modo, nunca puras e identitárias e, sim, híbridas. O excesso intolerante é o produto da esquizofrenia contemporânea, que sobreimpressiona o arcaico e o high tech, desencadeando irracionais movimentos xenófobos, que enfraquecem o espírito de cooperação entre o homem e a natureza, o homem e a mulher, o homem e o homem. É a mise en scène incrível do telefilme The second civil war, obra-prima irônica e violenta, a síntese poética de Dante e de seu pensamento político. Quando o solo se torna uma questão de sangue, ao invés de unir, divide e marca irremediavelmente o fim da exceção americana, traduzida pela bandeira estadunidense dominando os estúdios de televisão infernais, a base desconstruída de Jasper Johns: a bandeira que envolverá o corpo dos zumbis de Masters of horror – the screwfly solution. A Estátua da Liberdade, em ruínas, queima. Esse solo defendido pelo interesse e pelo oportunismo, está pressionado pela imposição violenta e “abstrata” de uma ordem universal (a globalização), desapropriação fundamental pondo tudo no mesmo nível. Anulando as diferenças, essa imagem (equivalente geral de todas as mercadorias) não brinca com elas, mas as põe umas contra as outras. Essa globalização universalmente artificial, percebida como estrangeira e não respeitosa das especificidades dos “territórios”, nasce como reação a individualismos cegos, chauvinismos tão violentos quanto um autismo generalizado, personificado por essas alucinações voluntárias da Guarda Nacional de Idaho. Às intrigas entrelaçadas somam-se as dores do capital financeiro internacionalizado, os fluxos migratórios perturbadores, o deslocamento das produções industriais e o desenvolvimento de uma força de trabalho sempre mais precária. Aos despossuídos apenas é oferecido um falso encontro com o mundo, em terreno imaginário, fictício, reconstruído, filtrado e depurado de suas misturas. Uma ilusão do encontro igualmente presente no corpo indubitavelmente misto e bastardo da Guarda Nacional, defendendo a pureza cultural contra a invasão dos estrangeiros, mas no qual ao menos pululam os Chineses!
As mídias não se contentam com substituir o real (Grito de horror: elas o fabricam). Se ela não é o ecrã, a realidade não existe. Até mesmo as ações humanitárias em favor dos mais fracos devem se tornar uma farsa para ter efeito, transformando-se em demonstração de individualismos e fantasmas, ambições e oportunismos. É o reino da imagem: o grau mais elevado da acumulação do capital e do controle político. Até mesmo durante The second civil war, Dante pontua sua narrativa com a imagem do sinal de televisão alterado, porém nesse caso a falha da imagem desenvolve uma dupla função, a um só tempo dialética e ambígua. Ela pode assumir o caráter, seja de censura, arranjo e ajuste do real; seja de sabotagem da comunicação, que apenas informa para formar e deformar. As mídias abrangem todos os aspectos da vida em comunidade, fabricam o real, esvaziam os acontecimentos de sua consistência, os liberam de sua substância para produzir informação, depois projetam esses mesmos acontecimentos isolados e artificialmente reunidos numa cena irreal, num espaço desintegrado. Um scoop que, como uma bomba de hidrogênio, absorve nossa substância para restituir apenas uma imagem virtual: o esqueleto que as piranhas deixaram. Toda nossa existência se torna espetáculo – uma soap opera que nossa dependência da ficção nos habitua a contemplar. Uma ficção independente de nossa vontade, que transforma nossos desejos em fantasmas. Em Viagem insólita (Innerspace, 1987), Martin Short, para evitar o choque de uma experiência que tira seu corpo do conforto patológico, liga a televisão. Uma televisão que Dennis Quaid deve fazer voar em pedaços para fazer o empregado sair da indiferença da ação. É a assinatura de Dante. Os homens ensinam a assistir à televisão até mesmo a pequena criatura terna dos Gremlins. E não é por acaso se o face a face final situa-se em um centro comercial – como em Despertar dos mortos (Dawn of the Dead, 1978), de Romero. Uma nova metáfora da substituição de um mundo sensual lutando por sua imagem abstrata e alucinatória: um cinema do imaginário.
Cinema meu amor
Ao contrário, a alegria delirante e inventiva que encontramos no imaginário real do cinema é bem diferente e mais sublime. Dante lhe rende uma homenagem apaixonante e divertida em Grindhouse (programa duplo) Hollywood Boulevard e, sobretudo, em uma de suas obras-primas: Matinee, uma sessão muito louca. Um ato de amor eufórico que desvia a monstruosidade da bomba atômica e as mutações produzidas pela tecnologia, a fim de produzir um uivo liberador de energia e de imaginação. Ainda e sempre uma sabotagem, uma irreverente dessacralização do controle hipócrita e mascarado que, para proteger a instável segurança dos cidadãos, alinha treinos nucleares numa terrível cena de manobras. O poder esmaga os direitos e a dignidade para impor disciplina e obediência aos corpos. Para sobreviver à ameaça atômica e ao inimigo é preciso saber obedecer! Matinee, uma sessão muito louca é a representação da catástrofe a bordo da orgia consumidora, sob o sol opulento da Flórida, ou a neve de conto de fadas do “alegre” Natal pós-Dickens de Gremlins. Um curto-circuito de imagens, uma montagem mental: um soco.
As barreiras de coral e as palmeiras luxuosas são apenas maquiagem, um artifício, como os papéis que endossam os falsos moralistas (John Sayles e Dick Miller, sulfuroso), bons sem serem pagos pelo produtor John Goodman (um pouco de Lucas, um pouco de Corman, um pouco de Ed Wood) para excitar o desejo de transgressão e de evasão e vencer a concorrência sensacionalista da televisão. O inimigo está em nós. É ao mesmo tempo via a política pedagógica de Joe Dante e de seu cinema de gênero, caixa de ressonância do clima político, mas também via uma grande mestria fílmica, que Matinee reúne os repertórios de um cinema menor, e de minoria, fora de Hollywood, com sátira e auto-sarcasmo, celebrando a sétima arte como uma festa, uma experiência que anula a dominação espetacular das imagens. Uma experiência coletiva, catártica e emocional. Uma sublimação do medo e uma recusa da realidade, que faz dele um filme ruim, e que não cessa de gerar o terror. A usina de imagens e de sonhos (Goodman a postos e local de Dante) abre o bunker no qual nos refugiamos devido ao medo da realidade.
O cinema desse autor sagaz e mordaz se sustenta na ideia corrosiva de representar a vida cotidiana sob o aspecto de uma continuação da guerra com outros meios. O plano da vizinhança sob todas as relações de Meus vizinhos são um terror (The ´burbs´, 1989), em uma anônima cidade pequena de província, é um campo de batalha. No abrigo de um bunker que deve servir de muralha contra a violência exterior, descobre-se o mal no interior do forte, o mal-estar em um meio familiar. Essa vizinhança, encenada nas trajetórias visuais diretas ou provenientes de várias fontes, aparece como um campo de força reativo: um tecido de olhares e de objetos que constroem uma armadilha, uma tela de aranha transformando em estado de espectros os personagens devorados pelas imagens e, ao mesmo tempo, um sistema de controle reversível. É a forma televisiva da relação, o monstro que nos espreita, e que nós mesmos espreitamos, como um dia Serge Daney escreveu. Até a explosão final e catártica que faz ecoar a retórica paranoica: a casa dos outros.
Aventura do Imaginário e Imaginário da Aventura
O verdadeiro e autêntico sonho de Viagem ao mundo dos sonhos é um manejo salutar em oposição ao parque de atração lúgubre de Piranha. Ele transforma uma loja de objetos usados em um espaço cheio de mistérios e um bricabraque em um recurso de emprego intelectual, uma linha de fuga à la Méliès, na mediação espectral das imagens, em particular as da televisão que, como um vampiro, sugam a seiva vital da imaginação. Os adultos endurecem com a realização de sérios compromissos, perdendo o brilho do precioso tesouro da imaginação, que reverte o real baseado na pontualidade e no utilitário. Dick Miller, o piloto de helicópteros, desperta e se apaixona por esses tesouros preciosos que as crianças possuem, capazes de transformar os destroços de uma existência consumida em naves espaciais da imaginação. A luz do universo, o clarão ardente da nave, são uma fenomenologia do fogo interior, um cume inacessível para o adulto ocupado que, por um lado, joga fora os brinquedos das crianças e as obriga a crescer, a parar de estar sempre nas nuvens e que, por outro lado, se refugia no ecrã alucinatório da soap opera, uma ficção bem ruim.
Dito isso, esses tesouros devem permanecer secretos, porque os adultos descobrem sua existência (como acontece com duas crianças extraterrestres repreendidas por um pai, que se parece com todos os pais) e se desfazem deles, tomados por tantas maravilhas que o tempo lhes fez esquecer, testemunho intolerável que “o ser” não é apenas o que se tem sob os olhos, mas também o que é possível. É a lição política e filosófica de Viagem ao mundo dos sonhos. Por meio da aventura do imaginário e o imaginário da aventura, as crianças escapam de sua dependência dos adultos que, como remédio último, empregam a televisão para ocupar e submeter rebeldias e obstinações. O desejo de autonomia e vontade de conquistar um lugar nesse mundo choca-se com as proibições adultas.
O desaparecimento da infância é determinado pelo desaparecimento da dimensão de mistério, à qual se substitui a onipresença das imagens televisuais. Uma fragmentação que confunde a infantilização e o seu contrário, fazendo os adultos regredirem ao estado infantil e projetando as crianças numa condição forçada de imitação das atitudes dos grandes: é o terceiro segmento de No limite da realidade (Twilight zone, the movie –1983), terrível e inquietante.
A imaginação rebelde das crianças de Dante é uma contestação da economia, a afirmação de uma ordem alternativa, inalienável, que não se pode trocar com um outro objeto como num sistema econômico. Os tesouros nascem das sombras e do sonho. O circuito que permite River Phoenix construir a nave espacial vem de um sonho de Ethan Hawke. É a evasão de um mundo não acolhedor. A imaginação antecipa a realidade, a ultrapassa, a enriquece de sentido; ela é estimulante, sustenta-se na conquista da autonomia, abre ao futuro e rompe com o mundo da indiferença nos quais as crianças não podem inventar milagres. Somente o velho Dick Miller, na precisão, utiliza a imaginação como refúgio das ilusões perdidas, uma reserva de possíveis.
O cinema amplia o visível abrindo a fresta do invisível. Uma viagem do imaginário liberador, como na cena final de Pequenos soldados: crítica de um poder que se introduz no corpo das crianças, um controle baseado nos gestos e enraizado nos comportamentos e nos hábitos de consumo, para melhor pôr em andamento o futuro. As crianças da história permitem suprimir a violência e anular a legitimidade, afirmando o valor do jogo e do sonho. Uma luta no centro da qual até mesmo a família decomposta encontra sua força e sua unidade, transferindo a esfera sensível do Merkwelt (percepção do mundo) no mundo concreto do Wirkwelt (visão objetiva do mundo) sob o efeito da ação. Mas a batalha não começou ainda. Com efeito, antes do fim, o capitalista cínico conseguirá corromper os adultos, e se prepara para transformar o jogo em violência. Os Gorgonoides, programados para se esconder e serem vencidos, resignados ao fracasso, combatem e ganham sem ocupar nenhum território, escolhendo no final das contas lançar uma nova aventura no coração dos grandes espaços da Natureza, exploradores do imaginário e do visível preservado. Eles se interrogam: o que há além do horizonte e ainda mais longe? Aí está a abertura do cinema de Dante: a incitação a se voltar para um mundo infinito.
Sem dúvida, trata-se de uma política revolucionária, que ensina a sair do conforto e da segurança de um mundo bastante pobre e limitado. Um mapa político, uma dominação submetida aos cálculos do mundo racional do capital, que o mundo do imaginário contesta e reverte. De todo modo, a cena final não é de forma alguma tranquilizadora: os Gorgonoides vão embora, se afastam de uma realidade pouco encorajadora, e sobre a qual se esboça a sombra sinistra de um capitalista tão descarado como Steve Martin no impetuoso Looney tunes – de volta à ação, manifesto em favor da imaginação e do movimento.
A Vida Nova
Esse filme, onde se encontram Daffy Duck e Bugs Bunny, é um hino à alegria da imaginação, da faculdade de intercambiar as imagens, de as transformar e de efetuar uma montagem inesperada. Ação imaginativa, explosões e interrupções de imagens, apagamento das imagens falsas e feias: tudo está no imaginário. Eis o nome do cinema de Joe Dante, convite para a evasão e a dispersão, para a experiência da novidade, uma imaginação sem imagens, essas imagens criticadas por Guy Debord e que determinam a separação entre o homem e suas capacidades. Os filmes de Dante são uma aspiração a imagens novas e diferentes, ao movimento das imagens registradas. Uma viagem que inverte o curso natural dos acontecimentos, a ordem visível que, por esgotamento ou interesse, nós costumamos supor estável, inequívoca e única. Sua pedagogia é a do imaginário da época da dominação da televisão, que reduz o saber e sua transmissão a uma sequência evanescente e doentia de imagens aparecendo e desaparecendo na superfície de um ecrã, que Dante desfigura mais de uma vez. A televisão, a imprensa e as mídias de massa não têm direito de montagem. A televisão assimila o real antes pela visão do que pela interpretação e compreensão. Ela rompe e fragmenta o real sem preocupação com os raccords e o ritmo narrativo, transformando a cultura e a representação do real em um desejo provisório, não deixando nenhum lugar para a razão. Um espaço ocupado pelo espetáculo e jornalismo sensacionalista (Grito de horror, The second civil war), que possui como único princípio a ausência de lógica e de toda narração (ver Walter Benjamin). O desejo desorientado e desregrado de “news and games” (fórmula de Jerry Lewis), intensificado pelas imagens, é apagado no cinema político de Dante por uma imaginação sem imagens, pela pedagogia da professora que, no terceiro episódio de No limite da realidade, salva a criança do horror de um mundo se transformando em desenho animado. Porém Harvey Pitnik (do episódio Critic’s corner em Cheeseburger film sandwich), americano médio mergulhado em seu canapé, descontraído, pendurado no seu controle remoto, morre asfixiado pela indiscrição da televisão que, aliás, o empregado acolheu em seu lar. Como O buraco (The Hole 3D, 2009) nos ensina, não nos recuperamos do medo causado pela bruxaria tecnológica ou traumas infantis acendendo uma luz elétrica, mas apenas por meio de uma ação liberadora. Não podemos responder à questão “Onde estamos?” porque não nos referimos a um mapa, como um homem que imaginaria viver num andar apenas. É preciso, ao contrário, buscar o ser até em suas profundezas, no porão de O buraco, para se liberar dos obstáculos e reconquistar seu elo vital.
Com Dante, entramos numa vida nova e saímos da caverna do medo que devora a alma (O buraco). Ele nos convida não apenas à realidade do jogo, mas também à viagem (Pequenos guerreiros). Um convite à viagem da imaginação, pura forma da narrativa, uma aventura, uma viagem imaginária (Looney tunes – de volta à ação) através dos espaços infinitos (Viagem ao mundo dos sonhos, Viagem insólita) e a obscuridade glacial das potências subterrâneas, para voltar para o calor original (O buraco). O cinema de Joe Dante é audacioso e de alto nível, mesmo quando ele explora um mundo em miniatura (Gremlins, Viagem insólita, Pequenos guerreiros), ele encontra e ativa as forças e a matéria, a energia expansiva que libera a vontade aprisionadora, encantada e encadeada no espetáculo das imagens: é o excursus do terceiro episódio de No limite da realidade. O mundo como imaginação é o antídoto prometeico ao devir-imagem do mundo.
Seu cinema é uma inversão das perspectivas, uma irrupção no minúsculo, que faz engrandecer as imagens até as fazer se diluir. Viagem insólita representa essa mise en scène da liberação das exigências das proporções, à custa dos cientistas e dos malandros devotados ao dinheiro. Uma escrita que reúne os núcleos de sentido e amplia o mundo, o dotando de múltiplos estratos, reduzindo o espaço ocupado pelas imagens que obstruem o imaginário e a liberação de forças, em uma aventura que se quer iniciática, como em O buraco. Seu último e extraordinário filme, entre desenho animado e expressionismo, metáfora da profunda angústia de ter que se defrontar com os fantasmas que habitam nossa casa, nosso espaço no mundo. É mais uma viagem que nos faz transgredir o no trespassing do início.
O cinema de Dante é o cinema dos limites, das situações limites entre catástrofes e ultrapassagens, como numa novela de Edgar Allan Poe. Uma realidade expressiva, um dinamismo único e inovador, uma imaginação sem limites, do infinitamente pequeno ao infinitamente grande.
Toni D´Angela é professor de filosofia e história, crítico de cinema, curador de cinema e escritor. É o fundador e editor chefe de La Furia Umana, revista trimestral on-line de teoria e história do cinema. Escreveu vários livros e artigos. Alguns de seus artigos foram traduzidos para inglês, português, espanhol e francês. Entre os seus livros há Raoul Walsh o dell’avventura singolare (Roma 2008), John Ford. Un pensiero per immagini (Milano 2010), Orson Welles, l’infinito (Roma 2011), Nicholas Ray. Bellezza e convulsione (Roma 2011), Western, una storia dell’Occidente (Roma 2012), Il cuore dell’essere e il pensiero sensibile. L’atto del vedere di Stan Brakhage (Roma 2013), Jerry Lewis o l’impossibile (Roma 2014).
Fernanda Aguiar C. Martins é professora adjunta do Colegiado em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Editora da CineCachoeira – revista de cinema da UFRB, coordena o grupo de pesquisa AIS – Análise da Imagem e do Som (CNPq), possui publicações recentes em Directory of World Cinema: Brazil (Reino Unido/Estados Unidos, 2013) e Voix et images de la diversité (Paris, 2013).