MANGUE NEGRO

MANGUE NEGRO (78)

Por  Chantal Durpoix

A primeira cena do filme Mangue negro, de Rodrigo Aragão, instala a dúvida: um documentário sobre alguma comunidade do manguezal brasileiro? Enganei-me de sessão, seria esse o filme de terror prometido? Os tambores da trilha de abertura deixam pairar a dúvida.

Mas as primeiras notas da orquestra, música típica do gênero de terror com a aceleração da imagem me confortam. Eis meu filme.

Eis a força de Rodrigo Aragão, ambientar os seus filmes num contexto local, o manguezal, repleto de lendas e crenças populares que nutrem o imaginário e envolvem o espectador. O rosto da morte aparece ainda na abertura, uma caveira que confirma os perigos do mangue mal-assombrado.

A dúvida não permanece por muito tempo, logo teremos todos os ingredientes do filme de terror, ou melhor, de horror, pois a natureza do perigo é logo informada, não é desconhecida, vemos logo corpos boiando na lama, o mangue é o próprio perigo. Ela se apoia na repulsão, repulsão provocada pelos personagens, a lama, o plano fechado sobre um caranguejo ameaçador, e, finalmente, no corpo boiando no lamaçal.

O diretor domina totalmente a linguagem do gênero, uma pincelada de envolvimento do espectador pelo tema local, duas colheres de repulsão, e toneladas de choque visual com os tons violetas do mangue, cor de morte, a maquiagem e efeitos especiais que é a sua grande arte.

Outro traço característico do filme de horror é o ambiente inquietante, o espelho no qual se mira o jovem herói é envelhecido, manchado, os personagens tenebrosos, o pai da heroína cadeirante lembra um pouco Freddy Krueger pela pele e a voz, a mãe cega que permanece deitada trancada num quarto e vítima de pesadelos aparenta ser um personagem do filme de 1973, de William Friedkin, O Exorcista.

O elemento surpresa é também presente, mesmo que em pequena dose, a mão tocando a bunda da heroína chega a assustar, a faca cortando o limão, a aparição do morto-vivo, a heroína aspirada por uma mão dentro da cabana, mesmo se a cena se repete três vezes, enfraquecendo o efeito surpresa.

O suspense se mantem: o herói conseguirá pegar o cartucho para se livrar dos zumbis canibais que atacam a cabana? O casal de heróis se salvará das legiões de zumbis que os perseguem? A heroína atrasa o desenrolar da história, por não acreditar no herói, pelos seus desmaios sucessivos, pelo afeto pela mãe. O que gera mais suspense.

Falta mais um ingrediente à perfeita receita do filme de horror: o teor sexual muitas vezes presentes, do domínio dos impulsos primitivos. Raquel é o nome pronunciado, sussurrado, gritado, desde o início do filme, a única jovem do lugar, bela, a única que não foi atingida pelo processo de apodrecimento que domina o mangue, objeto de todos os desejos masculinos. O zumbi canibal na choupana dos pais passa lascivamente uma língua enorme no seu rosto, muito mais preocupado em satisfazer o seu desejo rejeitado logo no início do filme do que em devorá-la.

Na receita do bolo, sobrevive um dedo de ironia, pelo aspeto caricatural dos personagens, que enfraquece a narrativa mas, a meu ver, salva o filme, um tom levemente humorístico, com a brincadeira do segredo não dito que leva o espectador, ironia que se revela no ditado local proferido pela velha curandeira, “sangue do cristo tem poder”, no meio dessa profusão de sangue provocada pelos mortos-vivos. Sangue em demasia, pois são uma hora e quarenta de sangue, de zumbis e de efeitos especiais, são zumbis que não acabam mais. Rodrigo Aragão domina a arte da maquiagem e do efeito especial, apesar de dispor de poucos recursos para um cinema dito de Bordas, e não poupa em nos mostrar o seu savoir-faire.

Mas o que mais me parece interessante é que se o temor da morte e sua inevitabilidade é normalmente a mola do filme de horror, em Mangue negro a ameaça se dá pela podridão, assim como anuncia uma voz quase profética da velha curandeira, personagem chave do filme, “estamos num lugar que já morreu, não dá mais para ficar vivo aqui”. A morte não é temida, o marido falecido da curandeira continua vivo no balanço da cadeira, a heroína depois de tomar o veneno do peixe baiacu vai ao seu encontro e volta à vida, pois nessa vida, tudo é possível, diz ainda a velha.

Mas a podridão é o verdadeiro monstro, ela tomou conta do mangue e dos seus habitantes, corrompe as relações sociais e familiais, assim, a jovem se vê agredida pela mãe que tanto ama, a mãe que depois de virar zumbi é dotada de uma força sobrenatural que ela não possuía enquanto “viva”. Esse me parece ser a força do filme de Rodrigo Aragão, um aviso sobre o apodrecimento do mundo, das relações, no qual só o amor salva. O monstro e o monstruoso eram definidos como uma coisa e não um homem, ressalta o blog dos Cahiers du cinema tratando da questão em web artigos como “Le monstre et le monstrueux” em philociné, cinema et pensée”:

« De tout temps et encore aujourd’hui le monstre est perçu comme une chose et non un homme. Il est très difficile pour l’homme de s’associer à l’image de quelqu’un de différent de lui. Selon le dictionnaire Larousse : « un monstre est un être vivant présentant une extraordinaire malformation ». C’est cette malformation extraordinaire qui fait que l’homme ne peut associer la personne monstre au même genre que lui. Il ne peut non plus lui trouver des ressemblances avec une bête ou un animal même si très souvent on retrouve des ressemblances entre le dit monstre et un animal »

A figura do monstro evoluiu no decorrer dos séculos, transformou-se, mas o monstro sempre foi aquele com o qual o homem não pode se assemelhar, nem próximo do homem, tampouco do animal. Ele é o diferente, um “ser vivo apresentando uma extraordinária malformação” Mas hoje, diz ainda o artigo, a característica do monstro não é mais física, mas antes psicológica: o monstro é o serial-killer, o pedófilo etc. Um outro artigo nos descreve o monstro Le monstre, objet obscur d’une fascination de Roger Bozetto, como objeto de fascinação, cuja relevância do seu aspeto estético que na modernidade permite ao “impensável social de tomar forma”.

Le monstre moderne, en effet, peut être appréhendé sous divers angles. Au plan sociologique par exemple, et sur le modèle de l’objet phobique selon Freud, il donne une figure à l’impensable de toutes les angoisses. Il permet à la violence de l’impensable social de prendre une forme visible.”

O monstro age no plano psicológico, mas também político, o monstro revela uma angustia diante do mundo, mas também uma certa recusa de valores impostos. Ele teria um aspeto transgressor que permite ao homem se conscientizar sobre o que ele é:

 « Le monstre aurait ainsi un aspect décapant : il montrerait alors à l’homme occidental le visage sous lequel il apparaît, et peut-être lui ferait-il prendre ainsi conscience de ce qu’il est. »

Assim sendo, Rodrigo Aragão recupera uma figura do monstro em uma filmografia de horror densa, no entanto, a sua originalidade, ao ambientar o enredo num contexto local, é questionar sua figura, o que afinal ele representa, psicologicamente e politicamente.

[vimeo 85655263]

 

Um comentário sobre “MANGUE NEGRO

  1. Nancy

    O Terror nacional anda de vento em polpa com a empresa PubliGibi que vai lançar ainda este ano um filme com TONINHO DO DIABO e trilha sonora da banda EXCOMUNGADOS com letra de PEKINEZ GARCIA, o vocalista (nudista e vulgar) ateu e “afilhado” de ZÉ DO CAIXÃO!

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