MAR NEGRO

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Por Lorena Reis

O cinema de terror brasileiro está inserido num contexto histórico relegado ao submundo e a anarquia de filmes de baixo orçamento, presente em boa parte dos filmes de terror norte americanos dos anos 70/80. Porém, no Brasil, o gênero estaria ainda mais voltado para o underground e as táticas de guerrilha oriundas de um cinema de poucos recursos e reconhecimento.

Apesar das discrepâncias entre o cinema de terror nacional e o norte americano, é impossível analisar Mar negro sem o referencial óbvio de A noite dos mortos vivos, filme de 1968, com direção de George Romero, que definiu as regras básicas dos filmes de zumbi. Assim como em Mar negro, George Romero também filmou o que tinha tudo para dar errado, com poucos recursos e muita criatividade para suprir as falhas, nesse caso, optando pelo preto e branco, por razões econômicas ou para disfarçar a maquiagem barata dos zumbis e o sangue de groselha pouco realista. Não é o caso de Rodrigo Aragão, cujos zumbis estão muito bem personificados, e ele não economiza em litros de sangue, que, segundo o diretor, possui a cor negra em analogia ao petróleo, tendo sido esse o cunho político que definiria o filme. Outro ponto seria o protagonista negro em A noite dos mortos vivos e um protagonista albino em Mar negro, ambos, resguardadas as devidas proporções, contrariaram as convenções racistas relacionadas aos seus períodos históricos, respectivamente. Se isso fica evidente ou não, não importa necessariamente, mas revela uma necessidade intrínseca aos filmes de zumbi em tocar em temas sociopolíticos, apesar do vazio ideológico das superproduções atuais como a série The walking dead ouGuerra mundial Z, estrelado por Brad Pitt.

Sangue, sangue, sexo e um pouco mais de sangue. Trash que se preze não economiza no sangue excessivo e não se abstém de cenas de sexo, ou a simples referência a ele. No caso, Mar negro decidiu passar boa parte de sua trama dentro de um cabaré. A presença de carne é recorrente desde o princípio do filme. Da carne do animal que se compra para o alimento, e suas sucessivas aparições para o consumo, até a carne da prostituta, que também se consome. Por fim, a carne humana que é literalmente comida por zumbis. Se humano é aquele que consome carne animal, não seria incoerente a analogia dos vivos com animais disponíveis para o consumo alheio, seja na cama ou na mesa. Eu diria que Rodrigo Aragão poderia ter ido além, quando sugere que o próprio corpo humano é objeto consumidor e objeto de consumo, como fizera George Romero em Despertar dos mortos.

Assim como nos filmes de George Romero, ou na comédia recente Todo mundo quase morto, ou mesmo no cubano Juan dos mortos, não há explicação para a infestação zumbi. Penso ser essa uma das regras mais sagradas dos filmes deste gênero, levando em consideração que ela quase nunca foi contrariada. Em A noite dos mortos vivos, Romero tenta uma explicação pouco convincente e desiste dela completamente com a emblemática frase: “Quando o inferno ficar cheio, os mortos andarão sobre a terra”, proferida em Despertar dos mortos. Talvez ele tenha limitado qualquer explicação dos filmes futuros com essa citação. Mar negro não desconsiderou a frase e deixou em aberto também a razão pela qual as pessoas começaram a virar zumbis.

Entretanto, devemos ressaltar que, apesar da influência marcante dos clássicos de terror, Mar negro continua sendo um filme produzido num país em desenvolvimento, com uma produção precária de gênero, e inserido num contexto sociocultural que não pode ser ignorado por quem produz terror em terras tupiniquins. Nisso, o filme não falha. Nesse tropicalismo antropofágico, temos uma produção que, em vista da pouca tradição do gênero no país, tensiona uma linguagem e um estilo que ele acredita dialogar com a cultura brasileira, buscando uma identidade nacional para o gênero. Provavelmente, o grande equívoco seja o de se levar a sério demais neste projeto de redefinir (ou melhor, definir) o terror brasileiro utilizando elementos de sua mitologia. Isso parece por vezes forçado, uma busca homérica por uma assinatura diferenciada. Talvez, por isso, não creio que o filme funcione com qualquer plateia, a não ser a de alguns países da América Latina. Ao contrário de Juan dos mortos, filme cubano de zumbi, que, por não se levar tão a sério, conseguiu tocar em temas sociais e questões de cunho universal sem deixar de possuir a cor local de Cuba, Mar negro me parece incapaz de rir de si mesmo. Na verdade, em alguns momentos ele dá ares de ensaiar uma piada que, entretanto, não se conclui. Funcionaria muito mais se mostrasse de forma consciente suas limitações técnicas e conceituais através de auto-ironia.

Pelo final do filme temos a cena de uma baleia que surge na praia. Talvez uma referência literária a Moby Dick, que eu, entretanto, considero narrativamente desconexa. Mas se pensarmos de forma mais conceitual, pode ser que o animal represente a busca do cinema de terror nacional pela sua respectiva baleia branca. Penso, contudo, apesar de algumas falhas, que Mar negro é um passo significativo para sua captura.

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