Por Melissa Silsame
Este ano a curadoria do quinto Cachoeira Doc resolveu buscar do outro lado do mundo um grande nome do gênero documentário. Diretamente da China, a mostra especial Jia Zhangke trouxe para Cachoeira a oportunidade de conhecer um pouco da obra desse cineasta. Uma experiência singular nos privilegiando com filmes difíceis de serem encontrados.
Os dois primeiros filmes exibidos na mostra foram Dong (Dong,2006) e Inútil (Wuyong/ Useless, 2007), respectivamente nos dias 4 e 5 de setembro. Assistindo aos dois, já é possível se familiarizar e identificar as características que marcam o conjunto da obra do diretor ao longo dos anos.
Em Dong acompanhamos Liu Xiaodong, um pintor amigo do diretor por um trajeto que vai da região de Três Gargantas, na China, até a Tailândia. Nesse percurso passam por uma cidade em meio a ruínas, restos de um lugar que já foi habitado, mas evacuado pela construção de uma usina. Liu pinta os corpos dos operários locais em meio a paisagem rodeada pelo rio e pelas montanhas.
Na segunda parte do filme, onde acompanhamos Liu na Tailândia, ele pinta os corpos das moças da região. O cenário diferente do anterior, longe da neblina e das montanhas.
Poderia descrevê-lo como um filme que pouco fala, exceto pelo pintor, deixando que o cenário e seus personagens construam o diálogo através das imagens. As belas paisagens da China e Tailândia retratadas através de travellings, marcam o cinema de Jia.
O pintor conversa com uma câmera observadora, que não interage com o ambiente ao seu redor, tomando uma posição de mediadora entre o pintor, sua arte e o ambiente. É quase um convite para acompanhá-lo em sua viagem.
Dong é uma crônica não só da vida de Liu, mas também dos espaços por onde passou, mostrando realidades diferentes, porém unidas pela obra do pintor. Com planos longos e contemplativos que nos inserem sem pressa naquela realidade. Talvez uma forma chinesa de se fazer documentário, ou somente a forma de Jia retratar seu mundo.
Já em Inútil, o contraste dos corpos dá lugar ao contraste das roupas. Mais precisamente ao seu meio de produção. Assim, circulamos em três ambientes, passando por uma fábrica onde os trabalhadores costuram até a exaustão, o ateliê de uma estilista que produz peças que mantem a essência da natureza, enterrando-as, concluindo com pequenos alfaiates e costureiras do interior que levam adiante modos de produção artesanais.
A memória como viagem ao passado está contida nas roupas. Todos estes pontos extremos de confecção de um mesmo produto destacam a oposição entre a China que vive a industrialização e àquela presa a processos de produção mais tradicionais, revelando as resistências e contradições gerados pela inserção do país numa economia moderna.
O filme é embalado por um canto melancólico, que dá uma feitio ficcional as cenas realizadas durante o trabalho na fábrica e nos demais lugares . Pode até ser que seja esse o intuito. Todos os personagens trazem sua verdade recortada de maneira que caiba no universo de Inútil, onde a efemeridade se contrapõe a longa duração.
Ambos os filmes são apenas uma amostra do grande universo criado por Jia Zhangke, mostrando as facetas da China que são desconhecidas pela maioria dos países ocidentais. Por ora se perdendo no passado e refletindo sobre o que se passou e o que ocorre no presente, esse recorte de seu país preservado em seus filmes, tem muito a nos ensinar sobre uma forma contemplativa de se documentar o mundo.
Melissa Silsame é aluna do curso de cinema e audiovisual da UFRB, bolsista PROPPAE e redatora da revista Cinecachoeira.