A LINGUAGEM SECRETA

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Por Eduardo Nunes

Qual é a verdadeira potência do cinema como arte? Como podemos comunicar “numa forma única do cinema” com o nosso espectador?

Inicio este artigo para investigar a minha crença de que o cinema possui uma forma própria de se comunicar, uma “linguagem secreta”, ainda pouco explorada pelos realizadores de filmes. Não se trata aqui de fazer um juízo de valores, desprezar determinados gêneros e cinematografias em detrimento de outras; mas sim, entrar em caminhos ainda escuros, pouco explorados, e que podem levar o cinema a novas potencialidades.

Vamos começar por alguns primos, mais maduros como arte: a música e a pintura. A música instrumental tem a potência de transmitir sentimentos usando apenas o som, sua matéria prima. Para o ouvinte, não existe – necessariamente – uma racionalização da música que escuta. A princípio, não é preciso saber com que instrumentos ela está sendo executada, a sua inspiração, o tema principal, a melodia, o compasso, etc… O ouvinte simplemente escuta a música e a percebe. Ele sente uma música, como A Paixão de São Matheus, de Johann Sebastian Bach, como triste e melancólica. Mas não porque possui muitos graves, notas longas, etc, etc… mas sim porque é uma música triste e melancólica. Claro que, ao compor, o músico utilizou anos de estudos de composição, orquestração e as mais diferentes inspirações, mas o ouvinte não sabe, ou não necessariamente, precisa saber disso. O ponto é: a música transmite sentimentos que só podem ser transmitidos pela música. E isso, antes de tudo, faz dela uma forma de arte.

O mesmo acontece com a pintura: quando, por exemplo, estamos diante do quadro Barcos na Praia de Saints-Maries, de Van Gogh não precisamos saber o contexto do quadro, qual o seu lugar na história da pintura européia e mundial, etc, para admirá-lo… Claro que todas essas informações permitem uma leitura diferenciada da imagem, mas – estar diante do quadro – e senti-lo como cores e formas é o suficiente para transmitir os sentimentos do artista até o “consumidor” do quadro. Neste momento, o que podemos assinalar como relevante é: como o artista pode criar uma experiência tão íntima com o aquele que vai estar diante de sua obra a ponto deste se sentir parte da própria criação e dividir os mesmos sentimentos?

Talvez, tanto na música como na pintura, podemos tentar estudar o caminho da poesia (no sentido mais amplo); e buscar este caminho desde o princípio, pela trilha dos seus criadores. Podemos entender que a poesia é a base da criação artística; e, estudar a construção poética, é estudar a “linguagem secreta” que o artista utiliza para a criação.

Harold Bloom, em “Poesia e Repressão”, inicia seus estudos sobre a origem da poesia com a ideia de “sopro vital”. Citando Bloom:

No contexto da poesia pós-iluminista, um sopro vital é ao mesmo tempo uma palavra e uma postura para pronunciar tal palavra, uma palavra e uma postura individual próprias. Nesse contexto, o que chamamos de um poema é um tecido ou artefato, e sua função é representar, trazer de volta a vida uma palavra e uma postura individual. (…) Poetas fortes apresentam-se como procurando a verdade no mundo, empenhados numa busca na realidade e na tradição, mas tal postura, como disse Nietzsche, permanece sobre o domínio do desejo, dos impulsos instintivos.” (BLOOM, 1994, p.13)

Seria, então, a verdade a substância, o sopro vital da poesia responsável pelo elo entre o artista e aquele que usufrui da arte? Talvez esta verdade seja um sentimento comum, ou uma percepção comum do mundo, que – expressada pelo artista – encontra uma recepção especial naquele que a aprecia. E esta recepção acontece porque, de alguma forma, compartilham um sentimento que somente o artista tem a capacidade de despertar. Mas como se constrói esta verdade? E qual a relação dela com o mundo real?

Ainda citando Bloom: “Essa verdade, tendo sido estabelecida pelo homem, pode ser interpretada pelo homem.” E Bloom, citando o filósofo napolitano Giambattista Vico:

A ignorância, mãe do espanto, transforma em maravilhas todas as coisas aos olhos dos homens ignorantes de tudo. Daí resultou a linguagem poética: não em concordância absoluta com a natureza das coisas com que lidava, mas uma linguagem fantástica fazendo uso de substâncias físicas dotadas de vida, a maioria delas imaginadas como divinas. (…) O homem, em ignorância, fez de si mesmo a regra do universo, pois ele fez de si mesmo um mundo inteiro. (…) O homem transforma-se em todas as coisas por não compreendê-las, (…) porque quando o homem compreende, ele as cria a partir de si mesmo, transformando-se nelas.”

Vico avança da ideia da verdade para a ideia de uma verdade criada; que é a transformação das coisas para a sua própria compreensão: uma verdade poética.

A verdade poética, diferente da ideia de verdade como a conhecemos, seria a visão do artista criador sobre a vida. O cineasta russo Andrei Tarkovski entende esta verdade como necessária para a criação de um cinema como arte; e deselvolve o conceito de imagem artística. Citando Tarkovski, em “Esculpir o Tempo”:

É difícil imaginar que um conceito como imagem artística possa ser expressado através de uma tese precisa, fácil de formular e compreender. (…) Mesmo aquilo que se conhece como a ‘ideia’ da imagem, em sua multiplicidade de dimensões e significados, não pode, pela própria natureza das coisas, ser colocado em palavras. Porém, encontra expressão na arte. Quando o pensamento é expressado numa imagem artística, isso significa que se encontrou uma forma exata para ele, a forma que mais se aproxima da expressão do mundo do autor, capaz de concretizar o seu anseio pelo ideal.” (TARKOVSKI, 1990, p.122)

Voltamos aqui para aquele mesmo pensamento elaborado inicialmente, quando começamos a tratar da música instrumental: a imagem artística não pode ser colocada em palavras, encontra expressão apenas na sua própria arte.

A música, a pintura, o cinema… toda arte possui uma verdade artística própria, ou seja, uma poesia própria. Neste momento, entender o processo de criação da poesia pode ser uma importante chave. Este processo, encontra o primeiro passo no olhar do artista sobre a vida. Citando Tarkovski:

Se lançarmos um olhar, mesmo que superficial, para o passado, para a vida que ficou para trás, sem nem mesmo recordar seus momentos mais significativos, iremos nos surpreender continuamente com a singularidade dos acontecimentos de que participamos com a individualidade absoluta dos personagens com os quais nos relacionamos. Esta singularidade é como a nota dominante de cada momento da existência; em cada momento da vida, o princípio vital, único em si.” (TARKOVSKI, 1990, p.122)

A poesia existe na vida. O tempo todo e em todo o lugar. E ela é a base da construção artística, o ponto é: o que diferencia um momento poético de um não poético? É uma questão do momento em si ou de uma observação atenta sobre qualquer momento?

Acompanhando o raciocínio de Tarkovski, desenvolvemos um pouco mais esta questão:

O artista, portanto, tenta apreender esse princípio e torná-lo concreto, renovando-o a cada vez; a cada nova tentativa, mesmo que em vão, ele tenta obter uma imagem completa da verdade da existência humana. A qualidade da beleza encontra-se na verdade da vida, que o artista assimila e dá a conhecer de acordo com a sua visão pessoal. (…) A imagem é indivisível e inapreensível e depende da nossa consciência e do mundo real que tenta corporificar.” (TARKOVSKI, 1990, p.122)

Podemos entender que os momentos poéticos existem, e que uma percepção aguda sobre a realidade pode identificá-los. Talvez não possamos perceber o universo em sua totalidade, mas a imagem poética é capaz de exprimir essa totalidade. A imagem é uma impressão da verdade, um vislumbre da verdade que nos é permitido em nossa cegueira.

Indo para um exemplo concreto, Tarkovski cita o haicai japonês como uma “observação precisa da vida”, a percepção poética de um momento banal.

O haicai cultiva suas imagens de tal forma que elas nada significam para além de si mesmas, ao mesmo tempo que, por expressarem tanto, torna-se impossível apreender seu significado final. Quanto mais a imagem corresponde à sua função, mais impossível se torna restringi-la à nitidez de uma fórmula intelectual. O leitor de haicai deve se incorporar a ele como à natureza; deve mergulhar, perder-se em suas profundezas como no cosmos, onde não existe nem o fundo nem o alto. (…) Os poetas japoneses não se limitavam simplesmente observá-la, mas, com uma calma sublime, procuravam o seu significado eterno. Quanto mais precisa a observação, tanto mais ela tende a ser única, e portanto, mais próxima de ser uma verdadeira imagem. Como disse, Dostoievski, com extraordinária precisão: ‘A vida é mais fantástica do que qualquer fantasia’” (TARKOVSKI, 1990, p.124)

A construção de um haicai nos leva, justamente, ao ponto de que uma verdade observada é transformada numa verdade poética, possibilitando ao leitor uma nova leitura de ações cotidianas de nossa vida. Tomemos como exemplo o seguinte haicai:

Não, não para a minha casa

Veio o guarda-chuva tamborilante;

Foi para o meu vizinho.

A cena descrita neste haicai não tem nada de especial: apenas uma pessoa, como tantas que já vimos, procurando se proteger da chuva com um guarda-chuvas, e dirigindo-se “a casa ao lado”. Porém, o que vale aqui é o contexto emocional e único que o artista conseguiu exprimir nestes versos. Observemos a leitura de Tarkovski sobre estas linhas:

Os três versos são suficientes para nos fazer sentir o estado de alma: sua solidão, o tempo cinza e chuvoso que ele vê pela janela, e a esperança vã de que alguém viesse, por milagre, visitá-lo em sua casa solitária e desolada. Uma situação e um estado de espírito, meticulosamente registrados, atingem uma expressividade de extraordinário alcance e riqueza.” (TARKOVSKI, 1990, p.132)

E a riqueza, a que se refere Tarkovski está justamente na simplicidade dos versos, a observação poética da vida permite chegar “aos níveis mais distantes e profundos da recriação”. E esse é o aspecto mais doloroso do trabalho de criação: descobrir o caminho mais curto entre aquilo que se quer dizer ou expressar e sua reprodução definitiva na imagem consumada. A luta pela simplicidade é a dolorosa busca de uma forma adequada para a verdade conquistada pelo artista.

Se voltarmos aos nossos primeiros exemplos: o que significam, em termos funcionais, a música de Bach e o quadro de Van Gogh? Nada – não significam absolutamente nada para além do que eles próprios significam; e é esta a medida de sua autonomia. Eles percebem o mundo como se o fizessem pela primeira vez, como se não sentissem o peso de nenhuma experiência anterior.

Neste ponto, de uma forma prática, podemos refletir: por que precisamos das palavras no processo de criação de um filme? Já que este é formado por imagens e sons?

Num exercício de abstração, podemos entender que um filme surge como uma sequência de imagens e sons na cabeça do realizador; e chega como imagens e sons na cabeça do espectador. Ou seja, todo restante do processo – escrever o argumento e o roteiro, preparar a produção, filmar, editar a imagem e o som e (finalmente) exibir – só serve para que a imagem-som que surgiu na “cabeça do realizador” chegue na “cabeça do espectador”. Diferentemente de artes mais diretas, como a pintura e música, o cinema tem uma série de elementos atravessadores que participam (positivamente ou não) do processo de criação. A possibilidade desta imagem-som chegar – dentro de um caminho com tantos elementos, e da forma primeira como foi imaginada pelo realizador – ao espectador, é quase nula. Mas o que isso quer dizer exatamente? Devemos entender que o processo de realização de um filme, por si só, torna incapaz uma ligação direta entre o artista e o espectador?

Antes de procurar pelas respostas devemos entender um pouco melhor este caminho. Vamos partir do princípio que esta primeira ideia que surge na “cabeça do realizador” seja a imagem artística a que se referiu Tarkovski, ou a verdade poética defendida por Vico; esta imagem, como arte, só encontra sentido no meio em que ela foi imaginada: como uma narrativa por imagem e som. Qualquer representação por palavras desta ideia irá reduzi-la a uma reprodução limitadora deste outro meio: a escrita. Considerando que grande parte da manifestação de nosso pensamento vem através da organização das palavras (falada ou escrita) fica difícil imaginar um outro meio para apreender essa primeira ideia que surge como imagem-som. Uma das soluções possíveis é a de criar uma espécie de partitura (como fazem os músicos) para o filme. Uma “partitura” que seja composta por palavras, imagens, desenhos, mapas, sons, referências, etc… para que essa primeira ideia (imagem artística ou verdade poética) possa ser transmitida com fidelidade.

A preocupação com o material que constrói uma verdade poética já era uma questão que Ezra Pound manifesta em “ABC da Literatura”. Pound acredita que “o método adequado para o estudo da poesia e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber: exame cuidadoso e direto da matéria e contínua comparação de uma ‘lâmina’ com outra”. (POUND, 1990, p.23) Ou seja, a palavra, matéria-prima da poesia, não deve ser estudada em seu significado prático (descrita em dicionários), mas em seu significado poético, em contínua comparação com o seu uso em outros contextos. O que Pound quer evitar é o valor enganoso (ou o valor prático) que uma palavra pode dar ao leitor, se retirada de seu contexto poético. Observemos o exemplo levantado por Pound em “ABD da Literatura”:

Na Europa, se pedimos a um homem que defina alguma coisa, sua definição sempre se afasta das coisas simples que ele conhece perfeitamente bem e retrocede para uma região desconhecida, que é a região das abstrações progressivamente mais e mais remotas. Assim, se lhe perguntarmos o que é uma cor, dirá que cor é uma vibração ou uma refração da luz ou uma divisão do espectro. E se lhe perguntarmos o que é uma vibração obteremos a resposta de que é uma forma de energia, ou qualquer coisa dessa espécie, até que cheguemos a uma modalidade do ser e do não-ser ou, de qualquer modo, penetremos num terreno que está além do nosso alcance e além do alcance do nosso interlocutor.” (POUND, 1990, p.25)

Pound, citando Ernest Fenollosa no artigo “Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia”, diz que este tentava explicar o ideograma chinês como um meio de transmissão e registro do pensamento. “Fenollosa foi à raiz do problema, à raiz da diferença entre o que é válido no pensamento chinês e sem valor ou enganoso em uma grande parte do pensamento e da linguagem europeus.” (POUND, 1990, p.25)

A grande diferença é que os chineses ainda usam figuras abstratas como figuras, isto é, o ideograma chinês não tenta ser uma imagem de um som ou um signo escrito que lembre um som, mas é ainda o desenho de uma coisa; de uma coisa em uma dada posição ou relação, ou de uma combinação de coisas. O ideograma significa a coisa, ou a ação ou a situação ou a qualidade, pertinente às diversas coisas que ele configura. Se observarmos os caracteres primitivos chineses em uma coluna e os atuais signos tornados convencionais em outra, qualquer um pode ver como o ideograma para “homem” ou “árvore” ou “nascer do sol” desenvolveu-se ou “foi simplificado” dos traços essenciais do primeiro desenho de “homem”, “árvore” ou “nascer do sol”. Mas quando o chinês queria fazer o desenho de alguma coisa mais complicada ou de uma ideia geral, como é que ele procedia? Ele, por exemplo, queria definir o vermelho. Como é que pode fazê-lo em um desenho que não seja feito de tinta vermelha? Ele reunia as figuras abreviadas de:

rosa + ferrugem + cereja + flamingo

Desta forma, a “palavra” ou ideograma chinês para vermelho era baseado em algo que todos conheciam. Fenellosa explicava que, dessa maneira, a linguagem simplesmente tinha que permanecer poética, não podia deixar de ser e de permanecer; e, no mesmo sentido, uma coluna tipográfica ocidental tende a não permanecer poética, adquirindo um sentindo prático e utilitário.

Neste caminho, podemos pensar a composição de uma linguagem cinematográfica (imagem e som) em, pelo menos, duas formas: num sentido poético e num sentido prático-utilitário. Se tomarmos como exemplo uma montagem narrativa clássica baseada em causa e efeito, o encadeamento das imagens servirá para uma determinada ação com uma função prática na história narrada. Por exemplo: primeira imagem: homem observa pela janela; segunda imagem: numa janela em frente, uma mulher despe-se sem saber que esta sendo observada; terceira imagem: aquele mesmo homem, sorri. A mensagem é clara: homem diverte-se ao observar uma mulher despindo-se no apartamento em frente. Como a mensagem é transmitida? Na primeira imagem temos o homem observando pela janela, o espectador pergunta: para onde ele olha? Na segunda imagem temos a mulher despindo-se, o espectador pergunta: qual será a reação do homem? E na terceira imagem temos a reação do homem; e o espectador exclama: “Ah, é isso!”

O encadeamento das imagens está montado numa relação tão rígida de causa e efeito que é impossível para o espectador realizar qualquer leitura que não seja essa. As imagens adquirem apenas uma funcionalidade, sem nenhuma relação poética. Mas se conseguirmos retirar das imagens a sua funcionalidade e capturar o seu conteúdo poético, profundo e único de cada imagem, conseguiremos atingir o espectador com sentimentos que só podem ser transmitidos pelo cinema, e que ele vai entender como preciosos, como um “segredo contado”.

A contradição deste artigo é a de, justamente, pretender defender uma narrativa poética em imagens e sons utilizando, vejam só, palavras. Mas ao leitor, eu acredito que o mais importante seja instigá-lo a refletir sobre as potencialidades de uma narrativa criada a partir de imagens e sons, que existe para ser percebida, em seu espectador final, como imagens e sons; uma linguagem poética capaz de transmitir os mais secretos sentimentos.

Para finalizar, proponho aqui um exercício: a leitura de um exemplo, em literatura, dado por Tarkovski em seu livro “Esculpir o Tempo” (já aqui citado). A medida que a leitura avançar a proposta é a de tentar criar uma narrativa por imagens e sons. Certamente, cada leitor irá criar uma narrativa particular, própria, única em detalhes, cores, formas, ritmos, tempos… E o verdadeiro cinema seria a arte capaz de transmitir cada uma destas narrativas próprias para uma outra pessoa; um cinema capaz de compartilhar estas imagens poéticas tão íntimas de cada um de nós.

Vamos lá:

Examinemos um exemplo extraído da prosa: no final de A Morte de Ivan Ilych de Tolstói, encontramos um homem mau e limitado, que está morrendo de câncer, tem uma esposa horrível e uma filha indigna, e quer que elas o perdoem antes que morra. Nesse momento, e de forma totalmente inesperada, ele é invadido por tamanha sensação de bondade que sua família, sempre preocupada só com roupas e bailes, insensível e insensata, parece-lhe subtamente por demais infeliz, digna de pena a indulgência. E assim, em seu leito de morte, ele tem a sensação de estar rastejando por um túnel longo, negro e macio, semelhante a um intestino… Bem ao longe, parece tremular uma luz; ele se arrasta em sua direção e não consegue chegar ao fim, incapaz de superar a última barreira que separa a vida da morte. A mulher e a filha estão juntas ao leito. Ele quer dizer: ‘perdoem-me’, mas em vez disso, balbucia, no último instante: ‘deixem-me passar’. Sem dúvida, esta imagem, que nos faz tremer no mais fundo da alma, não pode ser interpretada e vista de uma só maneira. Suas associações vão mais longe, e atingem o que há de mais profundo em nossos sentimentos, evocando lembranças e experiências obscuras de nossa própria existência, abalando e afetetando a nossa alma como uma revelação. Correndo o risco de parecer banal – é tudo tão parecido com a vida, com uma verdade que já intuímos, que nos faz lembrar de situações pelas quais já passamos ou que secretamente imaginamos. Segundo a teoria aristotélica, identificamos como algo familiar aquilo que foi expressado por um gênio. O caráter profundo e multidimencional dessa indentificação dependerá da psique do leitor.” (TARKOSKI, 1990, p.126)

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 REFERÊNCIAS

 BLOOM, Harold. Poesia e Repressão. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1994.

 POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Editora Cultrix, 1990.

  TARKOVSKI, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1990.

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