Por Erika Bastos Arantes
Cinema Negro e Africano
A África já foi amplamente retratada no cinema. No entanto, a maior parte dos filmes a que temos acesso mais facilmente (através das salas do circuito comercial de cinema, da televisão, etc.) contribuíram para reafirmar estereótipos reproduzidos desde os tempos coloniais. Como apontou Damasceno (2008), muitos desses filmes, a maioria produzidos por estrangeiros (especialmente entre as décadas de 30 e 50), buscavam documentar a vida e os hábitos africanos através de documentários etnográficos, como uma espécie de inventário sobre o comportamento dos povos africanos..1A autora aponta que esses filmes serviam como divulgador de um continente inóspito e distante no Ocidente, ao passo que os colonizadores europeus faziam o uso de imagens como meio de domesticar e civilizar os povos colonizados. (DAMASCENO, 2008).
Somente após as independências os africanos passaram a produzir seus próprios filmes, falando de assuntos pertinentes à sua história, às suas realidades diversas e às culturas dos diversos povos daquele imenso continente. Atualmente, a produção cinematográfica africana é impressionante. A Nigéria, por exemplo, é a 3º maior indústria de cinema do mundo, perdendo somente para os Estados Unidos e a Índia. Nesse país, o cinema só perde para a indústria petrolífera em termos econômicos. Burkina Faso também tem grande força em termos de indústria cinematográfica. Segundo Damasceno, o país montou um fundo para o desenvolvimento cinematográfico após a independência, nacionalizou as salas de cinemas e abriu uma escola técnica de cinematografia (DAMASCENO, 2008). Vale destacar que o governo compreende a indústria cinematográfica como importante, não somente para a economia e para a cultura nacionais, mas também para a criação de uma identidade que ainda é, para alguns, necessário criar nos países africanos.
Um dos filmes produzidos nesse contexto chama-se Keita! l’heritage du Griot (Keita! O legado do Griot) e coloca questões muito interessantes para pensar a produção do conhecimento em espaços/tempos diversos. O filme do cineasta, escritor e também griot2 Dany Kouyaté, foi produzido em 1995 em Burkina Faso, onde se passa a história.
Na narrativa, após um sonho, o griot Djelibá deixa sua aldeia em direção à cidade para cumprir sua missão de introduzir o jovem Mabo nas tradições de sua família, contando-lhe a história de seus antepassados. Estas tradições remontam à história de Sundjata Keita, fundador do Império do Mali, um Estado africano que durou cerca de 400 anos (aproximadamente entre 1230-1600) e é considerado um dos mais prósperos de todos os tempos. Djéliba havia sido o griot do pai de Mabo e o pai de Djelibá, o do avô de Mabo, sendo ele parte de uma família de griots oficiais da família Keita desde os tempos de Sundjata.
Em uma das primeiras cenas, o menino lê um livro em voz alta: “nossos ancestrais se pareciam com os gorilas e sua inteligência não era desenvolvida. O homem atual vem do homo sapiens e é mais inteligente.” É exatamente no momento da leitura que Djéliba chega e conta para Mabo que estava ali para contar a ele sobre seus ancestrais – que na sua rede de conhecimentos e significações não são os gorilas e, sim o Mansa3 do antigo reino do Mande: Mghan Kon Fatta Konatê, pai de Sundjiata Keita, de onde descende a família de Mabo. O menino se mostra bastante interessado e curioso e a narrativa se desenrola a partir dos ensinamentos do griot, que passa a narrar a história de Konatê e de Sundjiata Keita.
Chamado de velho por todos, mas velho aqui representa respeito e não desprezo como estamos acostumados, o griot é muito bem recebido pela família. No entanto, as diferenças entre a África moderna e a tradicional4– representada pela figura do griot – começam a aparecer logo no início. Primeiro em pequenas questões que não afetam em nada a missão do velho, como, por exemplo, o fato de ele preferir estender sua própria rede e dormir no quintal da casa dos Keita, apesar destes lhe oferecerem um quarto. Coisa parecida ocorre logo no primeiro almoço com a família em que é servido comida de branco nas palavras da mãe de Mabo e o griot não se entende com os talheres e pede água para lavar suas mãos e usá-las para comer. É no fim desta refeição que Djéliba conta aos pais de Mabo sobre sua missão de contar para o menino a sua história. A mãe do menino de início se mostra preocupada com a iniciação de Mabo nas tradições e o quanto isso poderia afetá-lo na escola. O pai diz achar importante que o filho seja iniciado e não dá ouvidos à mulher.
Logo os ensinamentos do velho ao menino começam a desagradar sua mãe ainda mais e, posteriormente, seu professor. Isso acontece porque o enorme interesse de Mabo pelas histórias contadas pelo griot faz com que ele acabe por se desinteressar pelo que aprendia na escola, causando insatisfação de seu professor, que busca a família para falar sobre a queda em suas notas. O pai, ao contrário, defende a todo custo que os ensinamentos prossigam, atribuindo grande importância às tradições. Ele diz que os Kouyatê são os griots da família Keita há séculos e sua mulher ri e diz que as coisas mudaram.
Essa é a grande questão do filme. As diferenças entre a memória preservada pela tradição oral e a história oficial ensinada pela escola – e que tem relação com as expectativas de uma África moderna – entram em conflito durante toda a narrativa.
Ao longo do filme o velho griot percebe que sua missão será difícil face às novas exigências da África moderna. Ele começa a perceber isso aos poucos. Em um momento do filme, por exemplo, os pais de Mabo saem de casa e uma empregada chega para fazer as tarefas. O griot fica espantado e pergunta ao menino se sua mãe não faz as tarefas e o garoto responde que sim, quando a empregada fica doente. Em outra cena, o marido pergunta à esposa se ela não viu a esteira de fazer orações e ela diz que não e que ele mesmo a procurasse. Djéliba não consegue compreender a partir de suas redes – aquelas tecidas na África dita tradicional, cujos costumes ainda são preservados em aldeias como a de origem do velho – as redefinições também do papel da mulher africana naquela nova sociedade.
A percepção dessas diferenças entre o moderno e o tradicional – que pode se traduzir também nas diferentes formas de conhecimento – se acirra ao longo do filme em diversos momentos. Em uma cena, a meu ver central no que diz respeito a essa discussão, o professor de Mabo retorna à sua casa e encontra o menino e o griot conversando. O diálogo que se enreda entre os dois se veste de metáfora do conflito entre conhecimento apreendido na escola, dito científico, e os outros saberes, estes tecidos através das histórias contadas pelos griots, remetendo à enorme importância da oralidade na produção do saber em quase todos os países africanos.
O professor quer convencer o griot não a parar com os ensinamentos a Mabo – o que evidencia o ainda presente respeito aos velhos e também à tradição – mas que o fizesse durante as férias, quando não precisaria competir com a escola, esta, sim, de grande importância para a inserção do menino na África moderna. Djéliba pergunta o nome do professor e quando este lhe responde que se chama Idrissa Fofana, ele pergunta o significado deste nome. Ao responder que não sabia o significado de seu próprio nome, Djéliba questiona o professor: “o que poderá ensinar às crianças se não sabe o significado do seu próprio nome?” E segue a conversa afirmando que ele, o griot, sabe a origem do nome Fofana, assim como sabe a origem de todos os 124 000 seres que existem entre o céu e a terra, excetuando dois deles: o carneiro e o sorgo. E pede incisivamente para que o professor não ensine mais a Mabo que seu ancestral parece um gorila, “pois o ancestral dele é um Rei! Magan Kon Fatta Konatê, mansa do Mande“.
Interessante perceber como o professor em nenhum momento ignora a importância do saber tradicional, apenas o coloca em segundo plano em uma escala de importâncias, alegando se preocupar com o fato de Mabo responder errado se a pergunta sobre os ancestrais for feita numa “prova”. O professor reconhece que o saber do griot é diferente do saber dele, nunca desqualificando totalmente o saber do velho. Entretanto, mesmo que não o desqualifique, o professor evidencia uma hierarquia entre os saberes, hierarquia na qual acredita parte da África moderna, representada no filme também pela figura da mãe do menino.
Notadamente, o saber do professor é o saber escolar, considerado científico, oficial. Para o professor e para a mãe do menino, não se trata de escolher entre um dos saberes, mas de priorizar um em detrimento de outro, o que fica evidente no momento em que se discute qual deve ser ensinado primeiro e qual ficaria para as férias do menino. Apesar de considerar este um debate rico e necessário, é preciso acrescentar que o tal “saber escolar” ou o saber produzido nas escolas não são somente aqueles contidos na matéria dada ou da disciplina. O saber escolar ultrapassa os limites da sala de aula e até mesmo os muros da escola e volta para dentro dela encarnado nos sujeitos que fazem parte e vivenciam o mundo escolar.
Djéliba continua o debate dizendo que “o saber tem muitos sentidos”, além de ser inesgotável e complexo. E conclui: o saber “pode estar no sopro dos ancestrais, no milho e na areia”, e ainda afirma serem truques o que o professor de Mabo o ensina na escola. Ao fim deste debate, a dificuldade do velho griot, representante da África tradicional, de compreender a África moderna fica evidente quando este não entende que o professor não pode modificar o calendário escolar porque quem decide isso é “o governo”. E o griot responde que então esperaria ali, sentado no chão de uma calçada, pelos dirigentes do governo para discutir com eles a alteração do calendário escolar. Assim, poderia seguir introduzindo Mabo na história de seus ancestrais sem a concorrência da escola. Nesse momento, o professor se retira, encerrando a conversa. Após outras confusões geradas pelo interesse do menino na escola e seu professor retornar a sua casa, desta vez com pais de outros estudantes que sentiam-se da mesma forma prejudicados pela contação das histórias reproduzidas para os colegas por Mabo, o griot decide ir embora.
Ciente de ter causado um drama familiar, já que a mãe do garoto dá um ultimato ao marido de que se Djéliba não fosse embora ela iria, o velho chama seu iniciado para uma última conversa antes de ir. Suas últimas palavras não poderiam ser mais significativas. Ele diz: “Mabo, sabe por que, nos contos, o leão sempre é vencido pelo caçador? Porque o caçador é quem conta a história. Se a história fosse contada pelo leão poderia ser diferente. (…) Lembre-se de que o futuro vem do passado”. E se vai antes de terminar sua missão de contar a Mabo o significado de seu nome.
O filme coloca na boca do velho griot um antigo ditado africano que nos leva a uma discussão a meu ver essencial para nós professores e para a sociedade em geral. A história que a maioria de nós conhecemos sobre a África, a história que há até bem pouco tempo era ensinada nas escolas, era a história da África sob o olhar europeu. Sequer levava-se em conta a diversidade do continente com mais de 50 países diferentes, que muitos pensam ser uma coisa só, um país. Assim, durante anos tivemos contato com o continente africano através de histórias de escravidão nas Américas ou da presença europeia no continente, sempre vista de forma positiva como aqueles que lá estavam para promover uma missão civilizatória em um espaço selvagem. E o cinema reforçou esta imagem através de filmes, sendo Tarzan talvez o mais conhecido e simbólico deles.
Descolonizando o currículo
Ao escolher trabalhar com filmes sobre África e feitos por africanos, objetivamos lançar olhares para espaços/tempos outros, ainda bastante desconhecidos por nós, mas de imensa importância para se pensar questões fundamentais da contemporaneidade, tais como cultura, relações raciais, interculturalidade e também diferentes formas de produção e transmissão do conhecimento. Penso que conhecer as imagens produzidas por cineastas africanos é um meio de descolonizar o pensamento sobre o cinema e ampliar o repertório de representações sobre o negro e o continente africano, a partir de um discurso produzido pelos próprios e não apenas por discursos sobre ele. Nesse sentido, é interessante pensar no Epistemologias do Sul, de Boaventura de Souza Santos, que usa a expressão como metáfora da exclusão e do silenciamento de povos e culturas que, ao longo da História, foram dominados pelo colonialismo, que imprimiu uma dinâmica de dominação política e cultural submetendo o conhecimento e as práticas sociais à sua visão etnocêntrica. O ensino de História no Brasil mantém essa visão eurocêntrica, dominante desde o XIX.
Stuart Hall (1997), em seu Identidade Cultural na pós-modernidade, atentou para as profundas mudanças socioculturais das últimas décadas, como o desmoronamento das certezas, o afloramento das diferenças culturais, a velocidade na circulação das informações, os cruzamentos entre o local e o global, etc. Essas percepções nos levam, com o autor, ao questionamento das verdades universais e ao entendimento da sociedade como fragmentada e plural. A crítica aos saberes totalizantes abriu caminho para novas formas de pensar e conceber o conhecimento, agora compreendidos em sua mobilidade e capacidade de transformação.
Nesse contexto de questionamentos das hierarquizações culturais e dos conhecimentos totalizantes, surge no Brasil a Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Segundo a lei, o ensino e aprendizagem incluirá o “estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional (…)”.5
No entanto, a inclusão da História da África nos currículos escolares, por si só, não resolve o problema do desconhecimento dos estudantes e da sociedade de uma maneira geral acerca da África. No caso das escolas, especificamente, enfrentamos um grande desafio: como ensinar história da África se os professores desconhecem a História da África? Vale ressaltar que os departamentos de História das Universidades até bem pouco tempo não tinham cadeiras em África, não sendo, assim, oferecidos cursos específicos em História da África (salvo raras exceções). Estudamos a África sempre a partir de uma perspectiva outra, que não a África em si mesma: para falar da expansão marítima europeia, para entender os africanos no Brasil, para tratar da descolonização europeia nos continentes asiáticos e africanos no século XX, etc. Ou seja, sempre tangencialmente. A História da África a partir de uma perspectiva africana começa a se estabelecer também a partir da lei 10.639/2003. E, ainda assim, de forma lenta e gradual. Ainda hoje, dez anos depois, muitas universidades não possuem em seus quadros professores concursados para a cadeira. Dessa forma, conclui-se que a maior parte dos professores de ensino fundamental e médio no Brasil não tiveram uma formação que incluísse a História da África e não é incomum que estes reproduzam em suas aulas estereótipos e preconceitos. Estereótipos e preconceitos estes que foram sendo adquiridos a partir do contato com imagens de África divulgadas nos diversos meios de comunicação, quase sempre prontos a divulgar apenas um lado, uma versão da história.
Para Pereira e Monteiro (2013), a lei 10.639 – bem como a 11.645/20086 – buscam superar a “perspectiva eurocêntrica”. Dessa forma, os autores concluem que incluir nos conteúdos relacionados às temáticas da história da África, dos africanos, dos afro-descendentes e indígenas, acarreta em um aumento de estudos e pesquisas, bem como nos obriga
“a pensar alternativas que implicam necessariamente numa redefinição e na reorganização da História ensinada em sua seleção de conteúdos e processos de didatização, e que implicam uma verdadeira “reinvenção” da História escolar e, consequentemente, de memórias constituídas a partir de visão crítica e intercultural” (PEREIRA e MONTEIRO, 2013, pg. 11)
É importante dizer que a promulgação das leis 10.639 e 11,645, como afirmou Gomes (2008), abriu um espaço institucional para discutir a diferença e o outro na instituição escolar. No entanto, para a autora a lei não é de fácil aplicação, porque trata de questões curriculares conflitantes, que questionam e desconstroem conhecimentos históricos considerados verdades tidas como inabaláveis. Para a autora:
o trato da questão racial no currículo e as mudanças advindas da obrigatoriedade do ensino de História da África e das culturas afro-brasileiras nos currículos das escolas da educação básica só poderão ser considerados como um dos passos no processo de ruptura epistemológica e cultural na educação brasileira se esses não forem confundidos com “novos conteúdos escolares a serem inseridos” ou como mais uma disciplina. Trata-se, na realidade, de uma mudança estrutural, conceitual, epistemológica e política. (GOMES, 2012)
Dialogando com essas questões, penso na necessidade de sintonizarmo-nos com o processo de implantação da Lei 10.639/2003. Cabe mencionar que, passados 11 anos da promulgação da referida lei, a África e as origens africanas da cultura brasileira ainda se mostram invisíveis para a maior parte da sociedade, não sendo diferente no âmbito escolar. Compreendemos que as imagens veiculadas em diversos meios (TV, revistas, livros didáticos, cinema) contribuem diretamente para a criação de estereótipos e de visões cristalizadas acerca do continente, cujo efeito mais sensível em nossa sociedade é o preconceito em relação aos africanos e afro-brasileiros.
Em uma palestra ministrada em 2009, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie nos adverte para os perigos de uma história única7. Entre as histórias contadas por ela, está a de quando ela deixa a Nigéria para estudar nos Estados Unidos. Conta que a sua colega de quarto na Universidade se admirou do seu inglês, das suas roupas e até mesmo da música que ela ouvia em seu Ipod (e se surpreendeu também pelo fato dela ter e saber usar um Ipod). A surpresa é produzida a partir da expectativa da colega americana em relação a uma africana, que, de acordo com o que aprendeu em suas inúmeras redes, deveria falar a língua nativa, usar roupas étnicas e escutar música tribal (nunca em um Ipod, que, em sua visão, não existe na África). É exatamente isso que nós, professores, devemos evitar. Essa história baseada em uma única visão, que estabelece estereótipos e restringe os seres humanos, também cria preconceitos e contribui para ações preconceituosas.
A meu ver, temos que assumir o compromisso de não nos conformarmos com essa única história contada (e reproduzida por muitos de nós) durante tanto tempo sobre a África. Não se trata de negar as histórias trágicas desse continente tão explorado. Todas aquelas imagens negativas reproduzidas exaustivamente pelos diversos meios realmente existem e devem ser conhecidas e discutidas. No entanto, é preciso questionarmos a história – e as imagens – que limitam e impõem uma visão una e generalizada.
Importantíssimo dizer que, aqui, a imagem negativa perpetuada sobre a África associa-se diretamente ao negro, perpetuando uma visão discriminatória. Assim, acreditamos que diversificar as visões de África, atentando para a diversidade do continente, não é somente abrir espaço para outras histórias frente à história única, mas também para outras histórias do negro e, assim, contribuirmos com a luta contra a discriminação racial. Tecer outras imagens dos negros é também contribuir para que os estudantes teçam outras relações entre si. Um estudante negro pode tecer outras imagens sobre si mesmo a partir destes filmes, imagens e narrativas, bem como outros estudantes podem questionar impressões que levam ao preconceito e que são naturalizadas por um grupo de pessoas.
Cinema e educação
A proposta de pensar o ensino de história e as possibilidades que o cinema africano traz para (re)pensar as relações étnico-raciais surge a partir de uma experiência de um curso de extensão em formato de cineclube sobre o cinema africano, realizado na Faculdade de Educação da Uerj (Rio de Janeiro), no segundo semestre de 2014. Nesse cineclube, que teve como público alvo preferencial professores das redes municipal e estadual do Rio de Janeiro – não apenas de História – foram apresentados filmes de diversos países da África, seguidos por debates. Os filmes apresentavam temáticas diversas e os debates giraram em torno, entre outras coisas, de como essas imagens cinematográficas produzidas no continente africano podem nos ajudar na introdução da história da África, bem como na reeducação das relações étnico-raciais nas escolas brasileiras.
Parto da ideia de que filmes possibilitam, por um lado, conversas nas redes educativas formadas pelos docentes e nas quais eles se formam. Por outro, possibilitam a ampliação dos conhecimentos e significações que circulam nessas redes (ALVES, 2010). No caso dos filmes que retratam países africanos e são feitos por africanos, estamos falando de filmes com temáticas, narrativas, cultura e estética ainda pouquíssimo divulgadas e, por isso mesmo não encontram eco, até o presente, entre os docentes. Dessa forma, julgamos que esses filmes podem nos ser muito úteis para pensarmos as construções de identidades e subjetividades no contexto diaspórico, refletindo sobre as relações históricas e culturais responsáveis pela perpetuação de heranças e tradições, mas também pela sustentação de estereótipos e preconceitos raciais.
A ideia é, sobretudo, pensar e discutir esses estereótipos e preconceitos e, a partir de atividades que envolvam narrativas fílmicas, conhecer e compreender os espaços/tempos culturais pelos quais circulam professores e estudantes, mais especificamente como se colocam em relação aos temas levantados nos filmes criados e desenvolvidos na África, e como estes podem implicar na sua prática curricular; espera-se, assim, também contribuir para a ampliação e o fortalecimento de práticas educacionais que possuem como característica principal a busca pela superação do racismo e de outros tipos de discriminação.
Erika Bastos Arantes é Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense e pós-doutora em Educação pela Uerj e professora da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro.
BIBLIOGRAFIA
ALVES, Nilda. Redes Educativas ‘dentrofora’ das escolas, exemplificadas pela formação de professores. In: SANTOS, Lucíola, DALBEN, Ângela e LEAL, Júlio Diniz Leiva (Orgs.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente: Currículo, Ensino de Educação Física, Ensino de Geografia, Ensino de História, Escola, Família e Comunidade. 66 ed. Belo Horizonte/MG: Autêntica, 2010, v. 1, p. 49-66.
BAMBA, Mahomed e MELEIRO, Alessandra. (orgs.). Filmes da África e da Diáspora: objetos de discursos. Salvador: EDUFBA, 2012.
CANDEAU, Vera Maria e OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. “Pedagogia Decolonial e Educação anti-racista e intercultural no Brasil”. In: Educação em Revista. Belo Horizonte, v.26, n.01, p.15-40 , abr. 2010.
DAMASCENO, Janaína. Revertendo imagens estereotipadas In: ComCiência: Revista Eletrônica de Jornalismo científico. Abr., 2008. Disponível em: http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=34&id=399.
GOMES, Nilma Lino. “Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos”. In: Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, Jan/Abr 2012)
HALL, Stuart. Identidade Cultural na pós-modernidade. DP&A Editora, 2007.
PEREIRA, Amilcar Araújo e MONTEIRO, Ana Maria. (orgs.). Ensino de História e cultura afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013.
QUIJANO, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. In: LANDER,
E. (Org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas
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SANTOS, Boaventura de Sousa e Meneses, Paula (orgs). Epistemologias do sul. S. Paulo: Cortez, 2010.
WALSH, Catherine. “Interculturalidad Crítica/Pedagogia decolonial”. In: Memórias Del Seminário Internacional “Diversidad, Interculturalidad y Construcción de Ciudad”, Bogotá:
Universidad Pedagógica Nacional 17-19 de abril de 2007.
NOTAS
1 Compreendemos que, embora muitos filmes retratem o continente africano de forma negativa, estes mesmos filmes são usados de formas variadas por seus consumidores, não produzindo sempre o efeito desejado. No entanto, neste texto, queremos destacar a contribuição inegável destes filmes para visões preconceituosas acerca da África.
2 Os Griot são os contadores de história responsáveis pela transmissão dos ensinamentos….
3 Mansa é um título que pode ser traduzido como Rei
4 Estamos chamando de África “tradicional” aquela anterior à colonização europeia e “moderna”, ao continente pós-colonial, onde se torna perceptível a influência da cultura europeia em diversos níveis. Cabe ressaltar que estamos cientes dos limites destes termos.
5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Expandindo ainda mais o debate e com intuito de ampliar a Lei 10.639, é sancionada a lei 11.645, de 2008, que inclui o ensino sobre a cultura indígena em todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e histórias brasileiras, com ênfase em sua luta e sua contribuição na formação da sociedade nacional (contribuição social, econômica e política).
6 A lei 11.645/2008…
7 Palestra da escritora em conferência realizada pela organização não governamental TED (Tecnology, Entertainment and Design) em 2009.