Por Rosana de Jesus Andrade
O ato de ir ao cinema é uma prática que pode ser datada historicamente e possui uma série de códigos e valores passíveis de reflexão. Como aponta Schvarzman (2005), esta ação é um hábito que expressa uma série de aspectos de determinada cultura, através dos quais podemos apreender a concepção que determinada sociedade possui da arte, da relação entre realidade e ficção, imaginação, distinção social, apropriação de ideias e valores que circulam neste espaço, seja através da tela ou da interação social. Neste sentido, apesar da organização deste espaço passar por inspiração exógena, este assume características próprias do local onde se estabelece, resultante das experiências sociais e culturais inerentes ao espaço em que este se encontra.
Assim sendo, é bastante relevante conhecermos as especificidades do cinema em Cachoeira, uma vez que estudar este espaço em nível local nos permite entender as peculiaridades que ele adquiriu a partir de suas particularidades: histórica, social e interiorana. Portando o objetivo desse texto é descortinar um olhar sobre a inserção do Cinema na cidade de Cachoeira, olhar que “salta” da tela para as salas, o espectador, as práticas sociais, a percepção que esta sociedade possui do entretenimento e da arte. O estudo tem como ponto de partida as memórias de moradores que frequentaram ou exerceram alguma função neste espaço. 1 Não obstante, constitui-se fundamental na discussão apresentar o processo de surgimento do cinema e, a partir daí, apreendermos as particularidades do cinema em Cachoeira.
Em fins do século XIX e início do século XX, o Brasil estava passando por uma série de transformações, perpassando desde as hierarquizações sociais até o sentimento de proximidade ou distanciamento das relações humanas. Neste sentido, estas mutações se imprimiram na forma de comunicação, na produção e relações de trabalho e, na sua amplitude, na própria percepção da realidade das pessoas, pois afetaram noções de tempo e espaço, cotidiano, convicções e hábitos. Tais transformações, conforme expressa Nicolau Sevcenko (SEVCENKO, 1998 pp. 7-48) resultaram de uma nova dinâmica econômica no cenário mundial, produzida pelo advento da Segunda Revolução Industrial.
Dentro do contexto de surgimento de novas tecnologias de entretenimento e lazer, o cinema se destacou como um grande porta-voz da modernidade. Com forte apelo popular, o cinema acrescentou imagem ao som, ou segundo Eric Hobsbawm (HOBSBAWM,1998,pp.332-333), domesticou a imagem em movimento e revolucionou os gêneros de espetáculo em sua era. Dentro desta perspectiva, podemos salientar que a observação da vida por meio de uma tela mudou a percepção visual das pessoas e a forma de expressão da arte.
No Brasil, o cinema chegou no contexto da modernidade, que foi um dos projetos políticos defendidos pela República, que estava em processo de consolidação. A sua primeira exibição foi realizada na cidade do Rio de Janeiro, em 1896, através de uma companhia itinerante (BERNADERT, 2004. p. 126). As novas elites brasileiras2, que estavam dispostas a apagar o passado colonial e escravista, aspiravam modernizar o Brasil “a todo custo” e inserir o país no tempo global, o tempo das novas tecnologias e potenciais energéticos. As elites, apropriaram-se do cinema, como um veículo de disseminação do ideal de um país moderno, pois o cinema representava, naquele momento, um dos grandes símbolos deste novo tempo. Assim, o cinema no Brasil se tornou um grande porta-voz deste discurso modernizador e industrializante (SEVCENKO, 1998. p. 14-15).
Em relação a este processo no contexto baiano, Salvador protagonizou as primeiras exibições do cinematógrafo que ocorreram dois anos depois de sua estreia ocorrida em Paris, no ano de 1895. Dionísio Costa e Feliciano Batista foram os que apresentaram aos soteropolitanos a novidade (FONSECA, 2002). A partir de 1897, o cinema passou a fazer parte da vida dos baianos.
Quanto a Cachoeira, esta enquadra-se na situação descrita acima, pois a histórica cidade, localizada geograficamente à margem esquerda do rio Paraguaçu, no Recôncavo da Bahia, a partir do final do século XIX, foi aos poucos sendo “invadida” pelos novos símbolos da modernidade, a exemplo da estrada de ferro, o telégrafo, o navio a vapor e, por último, porém não menos importante, o cinema. Tais elementos modernizantes tiveram grande repercussão na sociedade cachoeirana. Nesta circunstância, temos a primeira exibição cinematográfica em Cachoeira no ano de 1899, realizada através do cinema itinerante, intitulado Cinema Edson. Após o cinema volante, foi instalada na cidade a primeira casa de cinema, que data de 1914. Pouco tempo depois esta casa foi destruída por um incêndio. Já em 1919, foi a vez do Cine Elegante encantar a sociedade cachoeirana com suas exibições fílmicas, o qual, também, não teve vida longa. (MELLO, 2001).
Em 1923 foi inaugurado o Cine Teatro Cachoeirano, de propriedade da família Vacarezza3 O prédio onde funcionava o cinema é uma réplica de uma sala existente em Florença, na Itália, sendo que o projeto do prédio foi doado pelo governante desta cidade ao então prefeito de Cachoeira Cândido Eupíldio Vacarezza (MELLO, 2001. p. 121), que, em visita a Florença, expressou seu desejo de fundar um cine teatro em sua administração. Assim, o governante de Florença mandou construir uma planta do prédio em uma proporção menor, adaptável a cidade.4
Ao contrário da proposta global, de criação de um entretenimento das camadas populares (CHARNEY; SCHWARTZ, 2004) ), o cinema cachoeirano, que foi inaugurado em 1923, surgiu como um espetáculo e, em suas primeiras décadas, serviu às pessoas mais abastadas da cidade e aqueles que possuíam um nível de escolaridade elevado, funcionando como um mecanismo de exclusão das camadas populares. Neste contexto, o simples ato de ir ao cinema era considerado um elemento de distinção social.5
Na década de 1950, os proprietários do prédio do cine teatro arrendaram o espaço para uma companhia de cinema chamada Cine Glória, que possuía vários cinemas no interior da Bahia e na capital.6 Tal companhia, pertencia ao senhor Frederico Maron, que empreendeu uma série de reformas no espaço e, em quinze de maio de 1952 foi reinaugurado com o nome de Cine Teatro Glória. Neste momento, o cinema alcançou maior visibilidade em termos de público, atraindo pessoas das cidades vizinhas.7 Foi também a partir deste período que se deu a abertura do cinema a um público mais amplo. A partir de então, o cinema vivenciou um processo de popularização, ou seja, passou a ser amplamente frequentado pelas camadas populares. Nota-se que o processo de popularização era visto por alguns indivíduos como uma decadência, já para outros, o mesmo acontecimento trazia em si uma positividade.
Ora, cada indivíduo fala a partir do lugar social onde está inserido (CERTEAU, 1982), pois, aqueles que interpretam a popularização do cinema como declínio, são pessoas que ocupavam lugar privilegiado na sociedade cachoeirana, já quem vê na popularização um fator positivo são indivíduos que não frequentavam com assiduidade o cinema, passando neste período a usufruir do espaço de entretenimento.
Nesse sentido, a abertura do cinema para um público mais amplo, seu acesso, antes um elemento de distinção social, sofreu um processo de reformulação e passou a se concentrar e ser reproduzida no interior desse espaço. Esses mecanismos de distinção no interior do cinema se explicitam na organização da programação, onde as atrações e os dias são direcionados a públicos distintos, onde os dias e horários mais nobres eram direcionados a “classe nobre” da cidade, já os dias de semana era os “mais humildes”; na configuração da estrutura do próprio espaço, onde existem cadeiras reservadas a uma elite da cidade e aqueles que ocupavam cargos de importância, a exemplo do delegado da cidade, ficando as cadeiras laterais reservadas ao novo público, como expressa um dos entrevistados: “Lá em cima tinha a cadeira para os delegados que era separado. Tinham os lugares separados no cinema, as laterais que era tipo, geral.”8
Contudo, o espaço do cinema em Cachoeira não era o único a reproduzir tais distinções, se constituindo uma característica da própria sociedade cachoeirana do período. Assim, temos outros espaços da sociedade marcados pela distinção social, a exemplo dos clubes de carnavais, a exemplo da Associação Educativa Desportiva do Paraguaçu9, conhecida por A Desportiva10, 10onde a entrada e a associação de negros e pobres era proibida.11
Ao final da década de 1960, o Cine Glória foi transferido para o senhor Osmundo Araújo, gerente do local, que passou a se chamar Cine Real. A partir deste período, o cinema cachoeirano vivenciou um processo de instabilidade, começando sua direção a vagar pelas mãos de vários proprietários, tendo suas atividades interrompidas e retomadas inúmeras vezes, até que em 1993, o cinema é novamente fechado para uma reforma e, devido a uma série de supostas disputas políticas, suas atividades foram dadas como encerradas.12
O cinema, além do clube particular A Desportiva, era o único espaço de entretenimento da cidade, sendo também utilizado para outras finalidades, pois como este funcionava como cine teatro, havia exibição de peças teatrais tanto para adultos quanto infantis. Os filmes exibidos eram de natureza diversa, comédias, romances, dramas, coleções nacionais, filmes de caubói sendo que os que mais agradavam o público eram os clássicos como E o vento Levou, e religiosos, a exemplo do filme O Manto Sagrado, que foram sucesso de bilheteria. Para além do fato do cinema funcionar também como teatro, o espaço era ainda local de recreação e de shows de inúmeros artistas, tais como: Orlando Silva, Ângela Maria, Luiz Gonzaga, Adelaide Quioso, Emilinha Borba e Marlene. 13 Além dos cantores, apresentação de calouros nas matinês de domingo, recitais, exibição de jogos de futebol, o cinema recepcionava diversos eventos importantes, como os que ocorreram em 1983 e 1984, o cinema recepcionou um importante evento no campo cinematográfico nacional: a Jornada Brasileira de Curta-Metragem, em suas 12 e 13 edições.14
No que se refere ao público alvo do cinema, este era diversificado, formado “pela classe média com a classe alta, altos comerciantes e tinha os mais humildes e, sempre tinha uma clientela erudita, eram os intelectuais da época os jovens estudantes, universitários para entender a mensagem”.16 Contudo, “apesar de acessível ao mercado, as pessoas iam ao cinema porque também não era para todo mundo, não era todo mundo que ia ao cinema”.17 Este público tinha gostos culturais diversos, que se expressavam nas programações: “os filmes de cowboy, bang-bang, era o pessoal mais humilde que acompanhava; a alta sociedade era o filme mais romântico e era essa classe que frequentava filmes épicos, bíblicos, como Sansão e Dalila, Ben Hur, A Bíblia”.18
Segundo Bourdieu (2007), o funcionamento da sociedade é pautado em um sistema de relações simbólicas e de poder em que as distinções servem de fundamento para o julgamento social. Assim, o gosto ou preferências de cada indivíduo expressa as distinções existentes entre grupos sociais, uma vez que suas escolhas representam uma oposição as opções de outros, sendo que cada espaço cultural tem uma maneira específica de apropriação, por parte dos grupos sociais, constituindo-se imprescindível compreender o contexto em que os consumidores desses bens e gostos foram forjados. 19
Ao trabalharmos com o cinema em Cachoeira, compartilhamos da ideia sustentada pela historiadora Izabel Melo (2009), de que “cinema é mais que um filme” esta percepção nos possibilita refletir sobre o cinema a partir de uma rede de complexidades e significados. A despeito da construção de mundos autônomos da realidade, o cinema se constitui como um espaço de socialização e interação social, de construção de práticas sociais e históricas, incorporando ao mesmo tempo interesses comerciais e projetos culturais e bem como de troca de experiências. Entender o cinema cachoeirano para além dos sons e das imagens nos permite apreendermos a dinâmica de funcionamento da própria sociedade cachoeirana, como ela se configurava. Por fim, as memórias dos nossos entrevistados nos permitem ter acesso a uma profundidade de significados relacionados ao cinema em Cachoeira, o que demonstra que este espaço é um “lugar de memória”.20
Rosana de Jesus Andrade é estudante do Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia. Bolsista FAPESB.
BIBLIOGRAFIA
BERNADERT, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2004.
BORGES, Eduardo José Santos. Modernidade negociada, cinema, autonomia política vanguarda cultural no contexto do desenvolvimentismo Baiano. (1956 -1964). Dissertação de mestrado. Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2003.
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CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
CHARNEY, Leo; SCHWARTZ, Vanessa R. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 17
FONSECA, Raimundo Nonato da Silva. “Fazendo fita”: cinematógrafos, cotidiano e imaginário em Salvador, 1897-1930. Salvador: EDUFBA/ Centros de Estudos Baianos, 2002.
HOBSBAWM, Eric. A era dos Impérios: 1875-1914. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1998.
MELLO, Francisco José. História da Cidade da Cachoeira. Cachoeira: Radami, 2001.
MELO, Izabel de Fátima Cruz. “Cinema é mais do que filme”: uma história do cinema baiano através das jornadas de cinema da Bahia nos anos 70. Dissertação de mestrado. Universidade Federal da Bahia: Salvador, 2009.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. Revista do Programa de Estudos. São Paulo, nº 10, 1981, pp. 7-29.
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SCHVARZMAN, Sheila. Dossiê Cinema, Literatura e Sociedade. Cadernos de Ciências Humanas – Especiaria. v. 10, n.17, jan./jun., 2007, p. 15-40. Disponível em http://www.uesc.br/revistas/especiarias/ed17/sheila_schvarzman.pdf. Acesso: 11/06/2011, 23h: 11min. p. 5.
SEVCENCKO, Nicolau. “O Prelúdio Republicano, astúcias da Ordem e ilusões do Progresso”. In: NOVAIS, F. A. História da Vida Privada no Brasil. vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 7-48.
NOTAS
1 Em respeito a um dos pressupostos do Comitê de Ética, ao qual a pesquisa em curso está submetida, e bem como para evitar problemas futuros de qualquer ordem, optamos por usar pseudônimos no uso das fontes orais.
2 Segundo Sevcenko essa “nova elite” era composta por intelectuais, artistas, políticos e militares, que ficou conhecida convencionalmente por geração 1870. SEVCENKO, op. cit. p. 18.
3 Esta família possuía grande prestígio na cidade de Cachoeira desde o final do século XIX, sendo que seus membros além de serem grandes comerciantes da cidade, ocupavam cargos de natureza pública.
4 Entrevista realizada por Rosana de Jesus Andrade ao Sr. Francisco, na residência do entrevistado na cidade de Cachoeira, Bahia, em 14/09/2011. Equipamento utilizado: gravador de teClefone móvel em formato MP3.
5Entrevista ao Sr. Francisco, op. cit.
6 Como por exemplo, as cidades de Santo Antonio de Jesus, Salvador e Itabuna, Vitória da Conquista, Ibicaraí.
7 Entrevista realizada por Rosana de Jesus Andrade ao Sr. Alberto, na residência do entrevistado. Cachoeira, Bahia. 23/11/2010. Equipamento utilizado: gravador de telefone móvel em formato MP3.
8 Entrevista ao Sr. Alberto. op. cit.
9 Este clube foi fundado em 1925, cujos associados eram as pessoas mais abastados da cidade de Cachoeira. Ver melhor em: MELLO, op. cit.
10 Entrevista realizada por Rosana de Jesus Andrade a Sr.ª Antônia, na residência da entrevistada. Cachoeira, Bahia. 23/11/2010. Equipamento utilizado: gravador de telefone móvel em formato MP3
11 Além destes, existiam outros espaços excludentes na sociedade cachoeirana, como as filarmônicas.
12 Entrevista realizada por Rosana de Jesus Andrade a Sr.ª Ana na residência da entrevistada. Cachoeira, Bahia, 24/11/2010. Equipamento utilizado: gravador de telefone móvel em formato MP3.
13 Entrevista realizada por Rosana de Jesus Andrade a Sr.ª Augusta na residência da entrevistada. Cachoeira, Bahia, 31/08/2011. Equipamento utilizado: gravador de telefone móvel em formato MP3. Entrevista ao Sr. Alberto, op. cit.
14GOMES, Felisberto. Cachoeira volta a sediar a XIII Jornada Brasileira de Curta-Metragem. A Cachoeira, Cachoeira, 09 de setembro de 1984, p. 1.
15Entrevista ao Sr. Alberto. op. cit.
16 Entrevista a Sr.ª Ana. op. cit.
17 Entrevista ao Sr. Alberto. op. cit.
18 Entrevista realizada por Rosana de Jesus Andrade ao Sr. Alberto, na residência do entrevistado. Op. cit.
19 Ver em: NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto História. Revista do Programa de Estudos. São Paulo, nº 10, 1981, pp. 7-29. POLLAK, Michael. Memória e identidade social. In: Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, nº 10, 1992. pp. 200-212.