O HUMOR TRÁGICO DE WOODY ALLEN: FILOSOFANDO COM O MARTELO

802a925b793681d1957ab2523538f17d-0

Por Eduardo Portanova e Lisandro Lucas

Annie Hall começa mudo. Nenhum som: nem voz, nem música. Apenas os tradicionais – no cinema de Woody Allen – créditos de abertura. Essa característica inicial em Noivo neurótico, noiva nervosa (1977) denota aspectos de uma autoria que nos remete ao sentimento trágico da existência, aquele vivido entre o bem e o mal ou entre polos que se mesclam em uma realidade complexa, e não em uma (re)solução homogeneizante e finalista. Este é um dos aspectos a considerar neste artigo. Outro elemento, ligado ao primeiro (o sentimento trágico da existência), é o que considera o próprio diretor, que protagoniza o filme, um retrato do mito dionisíaco. Pois é Dionísio, um deus de várias coisas, que insufla, tragicamente, a desordem e o desregramento. Portanto, tentaremos estruturar este artigo da seguinte forma: (1) apresentando o filme, (2) falando de autoria como um sentimento observado pelo viés do trágico, no sentido filosófico, e (3) situando o mito dionisíaco no contexto fílmico de Annie Hall.

Apresentando o filme (1): a segunda piada na primeira cena do filme, na qual ele, o diretor, aparece olhando para a câmera e se dirigindo a nós, é a síntese, talvez, do pensamento de Woody Allen: “Não quero ser sócio de nenhum clube que aceite alguém como eu de sócio”. Esta frase é a essência do trágico pós-moderno, filosoficamente falando. O Eu, neste caso, gera uma angústia existencial por não se situar mais na fortaleza antes segura da individualidade. Dito de outra forma: o indivíduo, que acreditava no Eu soberbo, agora se desmantelou, assim como uma sociedade que procurava, no contrato social, a base da felicidade humana. A ideologia ruiu junto com o Muro de Berlim e o que parecia sólido acabou se desmanchando no ar, ideia, por ironia, de Marx. O homem trágico permanece, assim, preso a essa ambivalência entre o certo e o errado, entre a objetividade e a subjetividade, entre a pulsão e o regramento, entre o aqui e o agora, entre o próximo e o longínquo, entre o todo e as partes, entre o Eu e o Outro.

O pretexto para o diretor falar desse sentimento trágico da existência é o relacionamento de um homem (perto dos 40 anos de idade, ficando calvo e na crise da meia idade, o próprio Allen-personagem) com as mulheres. No entanto, como é próprio dele, a ironia disfarça esses incômodos, e afirma: “Não me preocupo em envelhecer. Não sou um desses tipos. Acho que quanto mais envelheço, melhor eu ficarei. Serei do tipo careca, viril, em vez do distinto grisalho. A menos que eu não seja nenhum dos dois”. Tudo isso para tentar saber o que aconteceu entre ele e Annie. Por que eles terminaram? Ele não consegue perceber qual foi o erro porque, afinal de contas, se considera “engraçado” e um cara que não faz o gênero depressivo, como ele próprio diz a respeito de si mesmo. Então, e esse é o argumento do filme, resolve voltar no tempo para tentar descobrir seu erro, lembrando-se, entre outras coisas, da sessão de psicanálise e, nela, de seu questionamento sobre a expansão constante do universo: “Um dia irá se despedaçar e será o fim de tudo”.

Passagem emblemática. Quando Nietzsche jovem falou do trágico em “A visão dionisíaca do mundo” e em “A origem da tragédia”, o sentimento era o de que havia um equilíbrio entre duas forças, a própria tragédia dionisíaca e, em contraposição, o mito apolíneo da Razão. No entanto, percebe-se, ao longo de seus ensaios, sua preferência pela tragédia, por representar o prazer em viver, o vitalismo, relegando a um segundo plano o instinto apolíneo, isso porque era Dionísio – cujo espírito se aproximava da alma do artista – que o interessava, e não Apolo. Este ponto, porém, é bastante controverso entre os intérpretes de Nietzsche. Mas ficamos, particularmente neste artigo, com a leitura que o filósofo italiano Gianni Vattimo faz do trágico em Nietzsche no seu “Diálogo com Nietzsche” (2010). Ora, a relação que tentamos fazer aqui é de um Woody Allen tão trágico quanto o artista sob a perspectiva de Nietzsche. O artista, segundo Nietzsche, não é só o autor estético, mas a pessoa que vive a imperfeição.

Por isso, Nietzsche diz que deveríamos viver a vida como obra de arte, assim como Woody Allen o faz se misturando ao protagonista num filme que é só dele. E como? Recorrendo aos dois temas obsessivos de sua filmografia: amor e morte. A cultura, através de subtemas como o sexo, a amizade, a filosofia e o cotidiano, está embutida no pensamento metafísico de Woody Allen. Este é o ponto em que podemos, agora sim, refletir um pouco mais sobre a dialogia. Percebe-se em Woody Allen, e, particularmente, neste “Annie Hall”, uma ambivalência entre as polaridades de um raciocínio dialógico. Se por um lado o menino, que faz o papel do diretor, tem o dever (objetivação) – e dever já nos remete a uma obrigatoriedade –, por outro não vê muito sentido nisso, já que o universo se expande (subjetivação) até, provavelmente, explodir. Este é um dilema comum no homem trágico. Morin situa a questão afirmando que o mundo é imperfeito, mas ela, a imperfeição, é a condição da nossa existência. Esse é, precisamente, o espírito da tragédia (na Filosofia).

O entendimento que Woody Allen tem do universo na terapia, pela fala do menino que é ele próprio, como uma espécie de analista da noosfera (noos, em grego, quer dizer “inteligência”, e esfera, o mesmo que no seu sentido próprio), torna seu raciocínio complexo, e essa complexidade (palavra-problema), resulta no que Wunenburger (1995, p. 51) considerará uma “área intermediária da experiência”. Poderíamos dizer, então, que o homem trágico vive exatamente nessa espécie de limbo, entre sua realidade interior e sua vida exterior (entre os instintos apolíneo e trágico). A dificuldade se resume, então, em “ser” estas duas realidades – ao mesmo tempo juntas e separadas. O terceiro elemento, que é seu caráter dialógico, situa-se no “entre dois”, o terceiro incluído, o imaginário. A objetividade de um filme, portanto, é relativa. E sempre foi assim na história do cinema. Os primeiros filmes dos Irmãos Lumière, por exemplo, eram cenas do cotidiano: realidade ou fantasia?

A autoria sob o viés trágico (2). Antes de abordarmos diretamente esse segundo ponto, é importante lembrar o seguinte. O trágico é dialogia. O que queremos dizer com isso? Que, ao contrário de uma dialética, a dialogia inclui um subjetivo terceiro plano. Por exemplo: se pensarmos qualquer aspecto da vida dicotomicamente veremos as coisas sob um ângulo binário. Ou isso ou aquilo. Tomando Truffaut como contra-exemplo do binarismo, sabemos que ele, considerado Melhor Diretor em Cannes (1959), variava de funções: ora era o próprio cineasta, ora produtor ou ator. A Trindade católica é dialógica. O cinema também, porque temos, de um lado, o filme; de outro, como ele é visto, e, finalmente, mais um terceiro aspecto: a subjetividade do espectador. Podemos observar a dialogia em todos os aspectos da sociedade humana. Em alguns movimentos do cinema, como a Nouvelle Vague, não seria diferente, conforme veremos a seguir.

Isso porque a Nouvelle Vague foi, em primeiro lugar, uma reação de críticos contra o que chamavam de estagnação do cinema francês, representado pela Tradição de Qualidade. Em um segundo momento, os ex-críticos utilizaram – quando eles, críticos, se transformaram eles mesmos em cineastas – uma técnica cinematográfica (vale dizer, várias técnicas) para desafiar as leis de uma narrativa tradicional. A principal queixa de Truffaut, por exemplo, era contra o chamado psicologismo dos filmes baseados em obras literárias. Para Truffaut, nem sempre uma passagem do livro poderia ter seu equivalente fílmico, isto é, poderia alcançar um resultado cinematográfico compatível com a literatura, porque era preciso perceber as limitações de cada meio. Talvez por isso, mas é uma hipótese nossa, a literatura foi tão presente nos filmes de Truffaut, a fim de apresentar empiricamente (e o empírico de um cineasta é seu filme) seus argumentos contra a Ancienne Vague (Velha Onda).

Assim, o fato de ter havido tanto aquela reação dos críticos (polo 1) quanto uma técnica que desafiava a lei da narrativa tradicional (polo 2) gerou o terceiro elemento (polo sintético, mas não no sentido de uma resolução) que foi a tese de designar o cineasta que respeitasse suas preocupações mais íntimas – sem um modelo apriorístico de elaboração de filmes – de um diretor-autor. E esse diretor-autor não recebia essa denominação por uma técnica exuberante (mas também podia sê-lo, como em Hitchcock, que Truffaut descobrira e com ele fizera uma entrevista com mais de 50 horas de duração, em 1962), e sim por uma empatia entre o que determinado espectador, como ele, sentia em relação ao papel – determinante ou não – do cineasta atrás da câmera para obter um resultado estético A ou B. Essa intimidade do cineasta exposta em seu filme, algo incomensurável, e esse era o aspecto poético da Nouvelle Vague, motivara o cinema dos ex-críticos de revistas como a Cahiers du Cinéma que passaram a ser diretores.

Woody Allen é um desses diretores autorais. Mesmo com altos e baixos (quem, na verdade seria capaz de afirmá-lo?), um diretor-autor sempre terá a simpatia de críticos como Truffaut por sua “debilidade”. Uso essa expressão, aqui, no sentido do Pensamento Débil, uma ideia da filosofia que se contrapõe ao Pensamento Forte, aquele que acredita na Razão, na Força e no progresso linear, acima de tudo, desqualificando qualquer ideia de sociedade pluralista. Um dos expoentes desse Pensamento Débil ou Fraco, em contraposição ao Pensamento Forte, representativo de um estatuto monista, é o filósofo italiano Gianni Vattimo, autor, entre outros, de “O fim da modernidade” e “Depois da cristandade”. Por que me refiro a Vattimo? Porque Vattimo é um dos maiores especialistas da obra de Nietzsche, e Nietzsche, como vimos, é o filósofo do trágico. Para Vattimo, Nietzsche e Heidegger sãos os pais fundadores da pós-modernidade, uma pós-modernidade cujas características encontram ressonâncias, da forma como sugerimos, em Woody Allen.

Nietzsche, que faz de seu Zaratustra o personagem do Gentil Homem em seu sentido intelectualizado, afirma que se colocar acima do bem e do mal, como faz organicamente todo espírito trágico, é admitir o erro que, “como condição da vida é rebelar-se contra os atuais conceitos de valor” (NIETZSCHE, 2009, p. 15). Woody Allen procura organizar o espaço da mesma forma que um arquiteto. Conforme Teixeira Coelho, “organizar o espaço e mesmo, mais que isso, criar o espaço: assim, efetivamente, se pode descrever a arquitetura” (COELHO, 2014, p. 20). Não seria dessa forma que poderíamos descrever, também, o cinema?

O cinema de Woody Allen segue uma regra: a filosofia do martelo. Essa expressão é o subtítulo de Nietzsche para Crepúsculo dos Ídolos (2006). O martelo é o utensílio para destruir o “socratismo da moral”, assim como Woody Allen destrói o politicamente correto. Para Nietzsche, Sócrates é o filósofo que introduziu na Grécia Antiga o racionalismo. Esse racionalismo era revestido de uma moralidade entre o que é certo e o que é errado. Os homens, segundo Sócrates, tinham de desconfiar dos deuses, porque os deuses, na opinião dele, queriam enganá-los. Por isso, Sócrates foi a julgamento e condenado à morte. Nietzsche, no livro referido acima, procurou investigar de que idiossincrasia provinha a equação socrática Razão = Verdade = Felicidade. Para o filósofo alemão, Sócrates, como dialético, era um tirano, porque esse método de interrogação socrático expunha o adversário ao vencê-lo. “A dialética é apenas uma forma de vingança?”, perguntava-se Nietzsche (NIETZSCHE, 2006, p. 20).

Quem é Dionísio? (3). Este é o terceiro e último ponto da nossa argumentação. Este Deus, que é Baco para os romanos, é associado à festa e à embriaguez, também de viver. É ele que é seguido pelas Bacantes nas florestas e representa o desregramento na vida cotidiana. Perseguido por Hera, Dionísio passa a cultivar os vinhedos e se torna, por isso, o Deus da Viticultura. Não se trata aqui de nos aprofundarmos sobre a leitura mitológica de Dionísio, e sim compararmos as características desse Deus andrógino a uma vitalidade no cinema de Woody Allen, isso porque as bacantes são tomadas de um delírio nas procissões orgiásticas promovidas por Dionísio. Woody Allen, da mesma forma que Dionísio, é um transgressor, atuando, no duplo sentido do termo, de forma barulhenta. Sim, Woody Allen é intelectualizado, individualista, irônico e paranoico, mas dele podemos retirar, também, aspectos como o vitalismo e um impulso vital no cotidiano.

Para finalizar, podemos considerar, com Nietzsche, que Woody Allen é um espírito livre. E o que é o espírito livre, para Nietzsche? A explicação está lá, no capítulo quatro “Da alma dos artistas e escritores”, em “Humano, demasiado humano” (2005). Trata-se daquele artista (no sentido ampliado do termo, mas, considerando o caso de Woody Allen, servem-lhe as duas acepções) que “não quer ser privado das brilhantes e significativas interpretações da vida e se guarda contra métodos e resultados sóbrios e simples” (NIETZSCHE, 2005, p. 107). O espírito livre diz adeus à razão, adeus à verdade e adeus às estruturas fixas. Woody Allen nos faz tornar suportável a visão da vida, a exemplo do que dissera Nietzsche a respeito da importância do artista. O homem recuperado, na opinião de Nietzsche, é aquele que faz da vida uma obra de arte, sem, como ele próprio diz, aqueles “traços de resmungo e teimosia, característico de homens há muito acorrentados”.

Eduardo Portanova Barros Pós-doutor pela Sorbonne e pela Unisinos, autor de “Maffesoli: entre a ciência alegre e o demasiado humano. Aproximações de uma Sociologia Anarquista (2014) e “Truffaut, o homem que amava o cinema” (2013). Integrante do Grupo de Estudos sobre Comunicação e Imaginário – Imaginalis. Pós-doutorando (PNPD/CAPES) junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unisinos (PPGCSU).

Lisandro Lucas de Lima Moura Cientista Social formado pela UFRGS. Mestre em Educação pela UFPel. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Imaginário, Educação e Memória (GEPIEM/UFPel). Professor de Sociologia do IFSul – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense – Câmpus Bagé.

REFERÊNCIAS

BARROS, E.P. Maffesoli: entre a ciência alegre e o demasiado humano. Aproximações de uma Sociologia Anarquista. São Leopoldo: Oikos, 2014.

______. Truffaut, o homem que amava o cinema. Canoas: Ed. da Ulbra, 2013.

COELHO, T. A construção do sentido na arquitetura. 6ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2014.

MAFFESOLI, M. A sombra de Dioniso. Contribuição a uma sociologia da orgia. São Paulo: Zouk, 2005.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Instituto Piaget: Lisboa, 1991.

NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Um livro para espíritos livres. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

______. Crepúsculo dos ídolos. Ou como se filosofa com o martelo. São Paulo: Iluminuras, 2006.

______. Para além do bem e do mal. Prelúdio de uma filosofia do futuro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

______. A origem da tragédia. Lisboa: Guimarães Editora, 2002.

______. A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

TRUFFAUT, F. Truffaut-Hitchcock. São Paulo: Brasiliense (s/d).

VATTIMO, G. Diálogo com Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

______. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. Depois da cristandade. Por um cristianismo não religioso. Record: Rio de Janeiro, 2004.

WUNENBURGER, J.J. A razão contraditória. Ciências e filosofias modernas: o pensamento do complexo. Instituto Piaget: Lisboa, 1995.

Um comentário sobre “O HUMOR TRÁGICO DE WOODY ALLEN: FILOSOFANDO COM O MARTELO

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *