Por João Marciano
Concebido pelo sueco estreante David Sandberg, Kung Fury é um curta-metragem de 30 minutos que faz uma paródia aos filmes independentes em VHS da década de 1980. Contando com um sistema de financiamento coletivo, apoiado por um dos maiores ícones da época, David Hasselhoff, e ganhando um espaço inusitado de exibição em Cannes para posteriormente ser lançado abertamente no Youtube, Kung Fury é sem dúvidas um filhote de um novo sistema de produção que está se formando. O financiamento coletivo permite que inúmeras pessoas doem para um determinado projeto e tem se mostrado muito eficaz para aqueles que sabem encantar os internautas. Independente do processo de como o curta se bancou, o interessante é seu conteúdo bem pobre, exagerado, mas que extraordinariamente provoca a sensação de “lógica interna” que quase o torna um subgênero, ou melhor, que o enquadre numa nova linha trash saudosista e maneirista que começa com Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, especialmente se lembramos do projeto conjunto deles, o Grindhouse. Invés dos rolos em desgastados dos exploitations, Kung Fury vai direto na geração VHS e tira proveito da tendência contemporânea de revisar, relembrar e homenagear à década do exagero. O tratamento da imagem e até mesmo da repetição dos elementos cinematográficos e de alguns efeitos especiais da época (outros facilitados com o CGI) impressiona, se não fossem alguns detalhes seria capaz de convencer que realmente se trata de um VHS perdido.
Com seus restritos 30 minutos, o roteiro é fraco e nada sustentável, despreza orgulhosamente qualquer lógica ou coerência realista numa mistura caótica de elementos de sucesso exaustivo e antigas modas: videogames, explosões, frases de efeito, tecnologia retro, artes marciais, nazistas, dinossauros, viagens temporais, mitologia, policial, propagandas e muito mais que se imagina caber nesta meia hora. O curta tira sarro de tantos clichês que, além de optar pela figura de Adolf Hitler como o mestre kung fu e viajante do tempo antagonista, supera qualquer noção de previsibilidade. Personagens se acumulam sem lógica aparente, num roteiro tão atropelado que faz graça ao nem tentar convencer o espectador que dinossauros e vikings conviveram numa mesma época (nota especial para a existência de um “laserraptor”, um velociraptor que atira laser pelos olhos), e que se alguém atirar pelo telefone as balas saem pelo outro lado da chamada. Se filmes como Duro de matar, A hora do rush e Braddock já causam desconfiança, em Kung Fury as leis da física simplesmente tiram férias.
Como paródia, é possível reconhecer certas semelhanças com Loucademia de polícia, Austin powers e Top Secret! – Confidencial. Já que se trata de uma comédia baseada na sátira, numa sátira bem abrangente por sinal, podemos dizer que cumpre estranhamente bem sua proposta. O trailer do projeto prometia um material que, para o público da internet, é um prato mais que cheio. Mais do que uma comédia, estamos presenciando o nascimento inusitado de um novo gênero de filmes que comemoram o exagero em detrimento de um enredo racional, afinal, não se trata de um produto comercial feito pelos grandes estúdios para o máximo consumo, e sim de uma produção independente realizada com baixíssimos recursos, patrocinada pelos próprios consumidores e lançada gratuitamente num veículo cuja repercussão pode não ir muito longe. Toda comédia é crítica, mesmo exaltando o nonsense, Kung Fury levanta também um real questionamento (provavelmente não intencional) sobre o que realmente é um padrão de qualidade e a libertação dos filmes da sala de exibição graças à internet. Não se trata de uma resistência ao padrão hollywoodiano, mas um atestado de um novo modelo alternativo derivado do trash. O ressurgimento deste subgênero merece uma reflexão visto que o público tem se tornado incrivelmente receptível e crescente.
Kung fury não apresenta nenhum recurso inovador, nenhum conteúdo novo, mas abre as janelas da possibilidade, mesmo que as escancarando para uma experiência completamente singular e inusitada em plena overdose MTV. Como dito anteriormente, o curta segue fielmente sua própria lógica interna reforçada muito pelo estilo e pelas referências apreciadas, que são realmente numerosas. Mesmo que não seja considerável próprio para um “olhar refinado” é reconhecível logo no primeiro minuto que existe uma estrutura por trás. Uma estrutura caótica, absurda, porém que em nenhum instante se contradiz. Não se trata de reconhecer apenas o esforço de todos os envolvidos, e sim de ver que um antigo modelo se atualizou e retorna cada dia com mais força e possibilidades, afinal esta tão peculiar história sem sentido ganhou seu espaço num dos mais consagrados eventos cinematográficos do mundo. Na exaustão do grande mercado cinematográfico é quando brotam essas realizações, respondendo um chamado quase que desesperado por novidades, independente do quão improvável e estranha venha a ser. Nos dias de hoje, é a internet que dita às tendências, que cria o espectador, e Kung Fury é um dos reflexos mais claros e perceptíveis de possíveis saídas de uma suposta crise interna do consumo do audiovisual.