Por Guilherme Sarmiento
MOSTRA SOY CUBA
O primeiro dia do Cachoeira Doc mostrou-se promissor ao abrir as portas do Cineteatro Cachoeirano para apresentar a visceral e melancólica mostra Soy Cuba, conjunto de cinco curtas metragens realizados por estrangeiros durante sua estada na prestigiosa Escola Internacional de Cinema e TV. Leandro Rodrigues, ex-aluno da UFRB, aproveitou sua residência na instituição para desembarcar no Recôncavo com um seleto e conciso cardápio fílmico especialmente pensado para o festival. Como o próprio curador deixou claro, o que o motivou a escolher estas obras dentre as mais de cem assistidas por ele fora que, no conjunto, forneciam um panorama diverso da produção estudantil cubana e, também, ajudavam a compreender um pouco da metodologia implicada em uma realização que rompia com o exótico e inseria o olhar estrangeiro na crua realidade social do país documentado. A maioria dos filmes da mostra tinha como realizadores estudantes em intercâmbio – uma iraniana, uma polonesa, uma mexicana e uma espanhola – ao mesmo tempo, destacavam-se por uma admirável inserção da câmera no cotidiano de pessoas comuns, fruto de uma cumplicidade pacientemente elaborada na convivência diária entre os cineastas e seus “personagens”.
Como se reconstruísse um itinerário de desencantos, a mostra iniciou-se com Abecê, de Diana Monteiro, um libelo contra a perda prematura da infância, e terminou dentro de um asilo de idosos onde os corpos caminhavam de forma inexorável, como zumbis, em direção à morte em Se continuamos vivos, de Juliana Fanjul. Cyntia Nogueira, professora da UFRB, observou muito bem durante os debates que o alinhamento dos filmes encaminhava-se de uma juventude perdida a uma velhice depauperada, impedindo o vislumbre de uma saída para os dilemas enfrentados pela sociedade cubana. Em Cenas anteriores, de Aleksandra Maciuszek, um dos mais impressionantes da mostra, o plano próximo das costas magras de um idoso asfixiado pela doença é contrabalançado pela bexiga vermelha, enchida com dificuldade por ele, como se esta aos poucos roubasse, a cada sopro, um pedaço precioso de sua vida. Em vez de ser o adereço de uma festa esperada, a bola de ar torna-se o anúncio de uma morte indesejada, mas a cada dia mais próxima. Este filme sintetiza, no meu entender, as escolhas da curadoria ao justapor o que a mostra como um todo deixou nos extremos: ao tempo que acompanhamos o findar de um ciclo de vida, temos ainda, na figura da criança, neto da personagem, a possibilidade tênue de um amanhã.
De uma forma um tanto oblíqua vemos surgir diante de nossos olhos uma crítica ao regime cubano através desses corpos que resistem à morte, apesar de todo sofrimento – eles representam a própria resistência de um ideal constantemente dado como morto, mas que se mantém encarnado por uma têmpera da qual se extinguiu toda a esperança. Mesmo a possibilidade de suicídio parece vedada quando em Tomada dois, de Pilar Alvarez, o ato desesperado de tirar a própria vida torna-se um interdito ocultado pela penumbra e, de certa forma, uma repetição sem consistência em um mundo cuja materialidade se esvai debaixo da chuva constante. Em O recesso, de Damian Sainz Eduardo, a figuração da distopia adquire contornos quixotescos e toda a encenação gloriosa encenada na sala se desmascara ao adentrar a cozinha, transformando-se numa farsa risível murmurada na coxia, atrás das cortinas.
Dentre as peças selecionadas por Leandro Rodrigues, a mais singular é A árvore, da iraniana Roya Eshraghi. Optando por uma linguagem ensaística e poética, foge dos ambientes fechados e intimistas e joga os espectadores nas ruas de Havana. Curiosamente, esta abertura à paisagem cubana não garantiu que se tornasse dentro da mostra o mais “pitoresco” e reflexivo da “realidade” urbana do país. Isso porque, curiosamente, a diretora utiliza Cuba como pretexto para falar de sua própria cultura e de sua família iraniana, como se escrevesse um diário íntimo. A árvore que brota do quinto andar de um sobrado abandonado e deita raízes entre tijolos úmidos, representa a resistência de um imaginário. Os olhos e a voz da diretora travestem a paisagem de tal forma que chegamos ao fim da película com a impressão de que estivemos em algum país do oriente médio em vez de hospedados na pequena ilha caribenha. Curiosamente, o filme mais “aberto” da mostra é aquele com a proposta mais “subjetiva”, referendando as possibilidades plásticas e expressivas do documentário contemporâneo e, também, alienando o corpo de seus estertores de morte.