UM ASSUNTO MEIO DELICADO

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Por Guilherme Sarmiento

Assisti ao curta Um assunto meio delicado lendo Moedeiros falsos, de André Gide. Por isso não tenho como desvincular o pequeno tratado cinematográfico realizado por Marcelo Ikeda do romance de maior fôlego escrito pelo romancista francês, no início do século XX. Ambos estarão simultâneos em minha memória afetiva. Será que Ikeda leu Gide? Ou Gide sonhou com Ikeda? Não sei. Tudo é possível quando se quebra a linearidade do tempo para que obras tão diversas se comuniquem através de tuneis profundos, onde perdem a estatura e as figuras simplesmente se chocam para acender fagulhas, criar constelações que de pronto se dobram sobre si mesmas e somem no escuro. O fato é que a fina ironia e o deboche expresso pelas duas obras fazem com que se irmanem na melancolia de uma arte petrificada, mumificada, diante de sua imagem refletida. Gide usa a literatura para denunciar a frivolidade da vida literária – seus personagens, seu mercado editorial, sua herança simbolista –, Ikeda usa o cinema – mas não qualquer cinema: o cinema “acadêmico”, aquele surgido dentro das universidades brasileiras – para realizar algo parecido, embora o cinema só esteja ali para reforçar a impotência do protagonista. O que é ser livre? Quais são os limites da liberdade? São perguntas que reverberam dentro desta acusmática atemporal onde tantas vozes fazem eco, tantos escritores, cineastas, artistas, pois, essa não é uma pergunta qualquer. Quem leu Spinosa sabe que não é. Na verdade, quem foi expulso do paraíso não se cansa de fazê-la.

O curta acompanha a perambulação de dois amigos pela cidade de Fortaleza, Evan e Gustavo. Através de longos diálogos somos notificados sobre um drama: Evan tem um segredo e reluta em contá-lo à mãe por medo de ser rejeitado. Seu amigo escuta-o sem levá-lo a sério, com um leve ar de troça e impõe à cena as nuances de um comentário brechtiano. Esse primeiro interdito sobre a liberdade de fala – o medo da rejeição e a imposição do ridículo – seria a base do conflito do protagonista, mas aqui temos um corte onde a repressão deixa de ser um fator preponderante nas relações interpessoais e passa a ser um projeto abraçado pelas instituições. Esse corte joga a ação até então restrita a uma conversa de bar na arena onde o que está em jogo não são os sentimentos, sua relevância afetiva, mas a capacidade de estetizá-los. E quem cobra essa estetização é a academia, a universidade, pois Lúcio é estudante de cinema e apresenta para uma banca de professores qualificados o material que até então acreditamos ser fruto de sua experiência pessoal. Mas, como ocorre na vida, sua fala é rejeitada. Sua liberdade, tolhida. Seu filme trava.

É interessante perceber que com esse curta Marcelo Ikeda rompe de forma definitiva com o movimento que até então ajudou a projetar nacionalmente, junto com Dellani Lima, o Cinema de Garagem. Essa ruptura se inicia com seu filme anterior O homem que virou armário, onde o apuro cenográfico, os enquadramentos simétricos e a gestualidade coreografada já se desviavam das características do cinema de fluxo, sua obsessão por uma epifania do cotidiano e pelas qualidades indiciais da imagem. Interessado em criar um jogo de espelhos no qual o acontecimento se desdobra até se perder em suas amplitudes especulativas, Um assunto meio delicado também questiona esses valores ao teatralizar a realidade; ao mesmo tempo, preserva parte da veia garageira do autor observando a autorreferência excessiva através de um olhar crítico e mordaz. Essa crítica é tão corrosiva que não poupa nem o diretor ,que se torna personagem de seu próprio filme para, com palavras duras e bem argumentadas, destruir o projeto do jovem Evan e, consequentemente, o seu próprio, já que é o verdadeiro autor por trás desta farsa metalinguística. Não tem como não vir a mente agora a cena final de Conceição ou autor bom é autor morto, quando João Luiz Vieira,fantasiado de enfermeiro, joga uma pá de cal nas pretensões daqueles jovens e ingênuos diretores que acreditavam no poder do cinema e esculacha, destrói, um trabalho de dez anos com a constatação de sua precariedade. “Esse filme é irregular, mal feito”, diz o crítico e professor.

Mas seria Um assunto meio delicado um curta desesperançoso no poder do cinema? Seria um projeto temerário dispensar tanto tempo em uma peça feita para se autodestruir?A maturidade artística chega quando as obras se desapegam de sua ânsia por preservação ou reconhecimento e se transformam em um canal de contínuas falas e escutas, agregador de vozes e de lumes. Vão-se as obras, o homem fica. Por isso, quando um autor torna seu livro ou seu filme em uma bomba implosiva quer com isso valorizar a vida atrás da representação e, também, exaltar os afetos que são os feixes prévios à concepção criativa. Sufocado por não conseguir simplesmente dizer, Evan é o símbolo de uma geração vitimada pela liberdade institucional, mais preocupada em instrumentalizar homens pragmáticos ao invés de éticos. Ser livre nos dias de hoje é se contentar em passar adiante moedas gastas e falsas. Quebrar esse comércio, me parece, a função de toda arte desde Gide e assim será, enquanto os artifícios se interporem às genuínas razões de ser e de estar.

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