SESSÃO DE ABERTURA
Por Matheus Leone
Nos folders e na vinheta antes da sessão, os realizadores do XII Panorama Internacional Coisa de Cinema exaltam as obras do diretor Hector Babenco, falecido este ano e o homenageado desta edição do festival. Seus filmes Lúcio Flávio, o passageiro da agonia; O beijo da mulher aranha, Coração Iluminado e Pixote: a lei do mais fraco serão exibidos em sessões especiais. No entanto, os filmes de Babenco, assim como a seleção de cópias restauradas de clássicos como 8 1/2 e Mélo, entre outros destaques no circuito de festivais nacionais e pelo mundo como Beduíno, de Júlio Bressane, e O ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, estão restritos à programação do evento de Salvador. A capital sempre foi a sede do Panorama – além do catálogo mais extenso de títulos, apenas lá serão ofertadas oficinas de produção executiva e escrita crítica e laboratórios com roteiros selecionados – e apenas há quatro anos que o festival também contempla Cachoeira, mas numa versão reduzida – e este ano ainda mais do que nos anteriores. O Panorama de Cachoeira possui a vantagem de ser integralmente gratuito, mas essa exclusão do público cachoeirano de parte do festival, julgado importante o suficiente para estampar os cartazes do evento, é certamente decepcionante – principalmente porque essas sessões especiais, pelo menos as três exibidas na abertura em Salvador, também foram gratuitas, com uma limitação de ingressos.
Ainda que compactado, o festival segue com o engajamento de trazer para o interior um plano geral do cinema brasileiro através das mostras Competitiva Nacional e Panorama Brasil, uma sempre importante seleção de títulos que geralmente ficam restritos aos festivais e “salas de arte” dos grandes centros do país. Na noite de abertura da edição de 2016, foram exibidos dois curtas e um longa da Competitiva Nacional, todos com alguma ligação, seja formal ou temática.
O primeiro deles, Confidente (dir.: Karen Akerman e Miguel Seabra Lopes. 12’), um curta que utiliza imagens de arquivo para propor uma espécie de viagem introspectiva de um eu lírico enquanto ele(a) nos apresenta alguns dos elementos de sua vida – sua casa, seu pai que o abandonou e ele(a) mesmo(a). Em seguida, Interdito (dir.: Leon Sampaio. 3’), um breve flagra de um encontro entre duas pessoas às escuras em uma praia. Ambos parecem querer revelar algo sobre seus objetos, mas, de maneira cifrada, as imagens que acompanham a narração de Confidente propõem uma versão subjetiva daquilo que o(a) narrador(a) relata – uma ideia de casa através da exposição de fachadas diferentes, a apresentação de si mesmo(a) através de um gesto – e o encontro de Interdito é realizado há uma certa distância da câmera, o suficiente para poder ser percebida a comunicação, mas sem que ela seja integralmente captada.
O último filme da noite foi Cinema novo (dir.: Eryk Rocha. 90’), vencedor do Olho de Ouro em Cannes, o prêmio de melhor documentário exibido no festival e suas mostras paralelas. Assim como o curta que abriu o Panorama, Cinema Novo também utiliza imagens de arquivo – de filmes, entrevistas e filmagens pessoais – e, através da montagem, evidencia o diálogo que existia entre os autores do movimento. Filme e diretor, que estava presente na sala para uma rodada de perguntas após a projeção, foram aplaudidos e recebidos com elogios, mas também com uma pontual crítica que, de maneira indireta, também joga luz sobre um crucial ponto fraco do filme: uma das estudantes na plateia apontou para o modo geralmente objetificado que os corpos femininos são mostrados na tela. Rocha reconheceu o machismo do Cinema Novo, mas contra-argumentou invocando a relevância da liberação dos corpos no cinema daquela época. Mas onde estão os corpos masculinos “livres” na seleção de imagens que compõe “Cinema Novo”?
Ao optar por deixar que os autores falem sobre si apenas no contexto daquela época, Rocha livra Cinema novo do antiquado padrão dos documentários que se apoiam demais em talking heads e deixa toda a articulação discursiva na montagem. O problema é que esse discurso carece de um ponto de vista que vai além da reverência ao movimento, tocando sempre nos mesmos pontos já bem estabelecidos, não apenas pelo Cinema Novo, mas pelas “novas ondas” dos anos sessenta no geral – da cooperação entre os autores, da busca por uma identidade própria do país que se opunha à hegemonia do cinema industrial dos Estados Unidos e da dificuldade de se conectar com o grande público.
Em uma de suas falas após a sessão, Rocha declara que sua intenção com o filme era muito mais de realizar uma obra com o Cinema Novo do que simplesmente sobre o Cinema Novo, mas, diferente dos pioneiros que formam o movimento mais referenciado do cinema brasileiro, falta em seu documentário a mesma avidez crítica das obras que seu filme cita. No entanto, o grande trunfo de Cinema Novo está em algumas falas pontuais dos diretores que, indiretamente, também foram comentários certeiros sobre a noite: a primeira, de Joaquim Pedro de Andrade, sobre a insuficiência de se posicionar como autor na sua experiência de realizar um filme que se baseia na montagem de imagens de arquivo, e a segunda, de Glauber Rocha, pai de Eryk, sobre os planos futuros de trazer o cinema “da câmara” para “a praça”. Funcionando não apenas como uma (talvez inadvertida) crítica sobre a falha do Cinema Novo como um movimento que não só fala de brasileiros, mas que conversa com esse público, a fala de Glauber é também pertinente ao primeiro dia do Panorama em Cachoeira, já que mesmo fora da “câmara” que são os espaços restritos do evento em Salvador, a plateia do evento era majoritariamente professores e estudantes de cinema da UFRB. A “praça”, assim como nos demais eventos de audiovisual da cidade abertos ao público, permanece distante.